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3. O CALOR DA DISCUSSÃO

3.1.1. Light versus Ônibus

As deficiências do transporte eram conhecidas das autoridades desde os primeiros tempos em que os bondes da Light começaram a trafegar. Os jornais se

regulação para ônibus do período anterior. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

402 THOMPSON, E. P. Algumas considerações sobre classe e a “falsa consciência”. In: As

enchiam de queixas de passageiros sobre escassez de itinerários e precariedade das frotas. A partir de 1919, a cidade passou a contar com o serviço de ônibus, quando a Diretoria de Obras Públicas do Estado do Ceará resolveu importar dois carros para substituir os bondes puxados por burros no itinerário do Benfica até Parangaba403.

Em 1926 já existia o tráfego regular de um ônibus Dodge Brothers importado pelo Matadouro Modelo para garantir o transporte de seus funcionários e dos habitantes da vila operária no Barro Preto ao Centro da Capital404. O ônibus do Matadouro Modelo rodou por apenas um ano, mas acabou servindo a toda a população da região mediante a cobrança de tarifas, fazendo-se uma das primeiras experiências de transporte coletivo automotor da cidade405.

Naquele ano, a possibilidade de flexibilizar o monopólio de transporte da

Light foi alvo de discussões dos deputados da Assembleia Legislativa do Ceará.

Instigados por Fernando de Alencar Pinto, que pedira autorização para explorar o serviço de ônibus em Fortaleza, os parlamentares, embora considerassem que “serviços há que, dependendo de avultado capital dificilmente seriam realizados sem a concessão de monopólio durante certo tempo”, constataram que era “deficiente e não satisfaz as necessidades da coletividade a rede de tramways elétricos existente entre nós”, pois a cidade estava em face de “crescente desenvolvimento”. Portanto, resolveram autorizar a Câmara Municipal de Fortaleza “a contratar em concorrência pública e com quem mais vantagens oferecer, o estabelecimento do serviço de auto-ônibus na cidade de Fortaleza e seus arrabaldes, concedendo ao contratante o privilégio da sua exploração por vinte e cinco anos”406.

Entregar o transporte às empresas privadas foi a solução para o quadro de escassez. Se por um lado a ideia ameaçava a hegemonia da Light no transporte, por outro ela garantia a proteção para que cada linha fosse explorada

exclusivamente por uma companhia, através de um mecanismo de concorrência

403 Correio do Ceará, Fortaleza, 5 abr. 1919. 404 Diário do Ceará, Fortaleza, 31 jul. 1926. 405 Gazeta de Notícias, Fortaleza, 31 ago. 1927.

pública. Dessa forma, logo no início, o caminho percorrido pelo carro do Matadouro Modelo ficava preservado da concorrência407.

Mas ônibus eram produtos caros e a exploração de transporte em grande escala exigia investimentos que, até então, somente a Light conseguia mobilizar. Era preciso incentivar a criação de empresas na cidade, diversificando as opções de locomoção, ampliando itinerários. Talvez por isso, no ano seguinte, o Governo cuidou de isentar impostos:

Art 1º. É concedida a isenção de todos os impostos estaduais, excetuadas as taxas de água e esgoto pelo prazo de três anos à empresa de auto-ônibus Ribeiro e Pedreira desta capital entendendo- se livres de taxações estaduais cada um dos carros pertencentes á mesma empresa.

Parágrafo único: Os favores da presente lei são extensivos a qualquer outra empresa de auto-ônibus que montar nessa capital o serviço de transporte por meio de tais veículos, dentro do prazo de um ano, a contar da data da publicação da presente lei.

Art 2º. Fica a Câmara Municipal de Fortaleza autorizada a conceder isenção de impostos municipais àquela empresa bem como a qualquer outra que esteja isenta pelo Estado, nos termos do parágrafo único do artigo anterior408.

O plano de dotar Fortaleza de transporte a gasolina parecia traçado. Mas, como era de se esperar, ele encontrou resistências dos ingleses, que buscaram no contrato com o Governo mecanismos para evitar o tráfego de ônibus.

As suas faltas [da Light], notadamente a de material fixo e rodante, motivando a impontualidade dos horários influíram, sem dúvida, no aparecimento de uma empresa auto-ônibus em concorrência com os bondes elétricos, caso não previsto na concessão409.

Em comparação com os custos do material rodante importado dos

tramways, os ônibus sem impostos eram muito mais viáveis. Assim, surgiram as

407 Anais da Assembleia Legislativa do Ceará, 75ª Sessão, em 1º de outubro de 1926. 408 Lei Estadual n. 2.565, de 5 de novembro de 1927.

409 Relatório do prefeito Godofredo Maciel apresentado à Câmara Municipal de Fortaleza.

primeiras companhias organizadas de ônibus de Fortaleza. No final, a própria

Light sucumbiu e resolver adotar automotores em sua frota410.

Ainda em 1927 apareceram dois carros da Empresa Ribeiro & Pedreira e levaram a concorrência entre os auto-ônibus e os bondes às ruas411. O tema era controverso, justamente pelo contrato de exclusividade da empresa inglesa. Baseada nisso, em fins dos anos 1920, a Light travou intensas batalhas judiciais contra os ônibus. Em seu favor, usava da precariedade do calçamento de Fortaleza, uma vez que a instalação dos trilhos, anos antes, exigira melhorias e deixara as ruas por onde rodavam bondes as melhores vias da cidade. Nas outras rotas era difícil passar com carros. Por isso, os ônibus do senhor Oscar Pedreira andavam nas rotas calçadas, disputando passageiros com os bondes e causando prejuízos à inglesa.

No dia 30 de agosto de 1928, o “assunto na cidade fora o despacho favorável que o dr. Livino de Carvalho, Juiz de Direito da 1ª vara dera ao interdicto proibitório requerido pela Ceará Tramway afim de que os auto-ônibus não pudessem trafegar em suas linhas, determinando que a multa para cada infração seja computada em 10:000$000”412.

A proibição causou um rebuliço de grandes proporções. No cair da tarde, a população simpática à Ribeiro & Pedreira “não apenas por ser nacional, como também porque nos servia melhor e mais comodidade” juntou-se no Passeio Público, em frente à sede da companhia inglesa, bradando “morras à Light” em protesto. “O povo, depois, dirigiu-se à Praça do Ferreira, onde alguns exaltados tentaram arrancar e rasgar as safenas de alguns tramways que ali se achavam”413. No desenrolar do processo, Ribeiro & Pedreira recorreu da decisão do juiz, mas seus ônibus continuaram proibidos de trafegar sobre os rails dos bondes elétricos.

Desde suas primeiras experiências, o serviço de locomoção por ônibus em Fortaleza teve a maior parte dos problemas resolvida no judiciário. É certo que até a metade do século XX não havia uma política pública ligada ao transporte

410 Gazeta de Notícias, Fortaleza, 10 fev. 1929. 411 Idem.

412 Correio do Ceará, Fortaleza, 31 ago. 1928. 413 Gazeta de Notícias, 31 ago. 1928.

coletivo de passageiros em Fortaleza. Os contratos formalizados de permissão diziam respeito à gestão da Light. Por isso, ônibus e caminhonetes que circulavam nas ruas eram submetidos a poucas regras. A grande maioria não estava ligada a empresas regulares. O acompanhamento público se baseava, grosso modo, nas vistorias esporádicas da Inspetoria Estadual de Trânsito que visavam, sobretudo, organizar os ritmos ou fluxos de deslocamentos e a conservação física dos carros. Não priorizavam o planejamento ordenado da mobilidade na cidade através de veículos coletivos. Com isso, quando os problemas desdobravam-se em agitações, o poder público lançava mão de intervenções pontuais e medidas mais ou menos improvisadas que redundavam em resultados pouco duráveis. As medidas da Inspetoria de Trânsito “enfrentavam barreiras ante a realidade”414 e, por vezes, chegavam a ser completamente ignoradas:

Trata-se da obediência aos horários na parte da noite. Como é de conhecimento público, a partir de 21 horas os ônibus saem da Praça do Ferreira de meia em meia hora, até as 24 horas, obrigatoriamente. Contudo, os ônibus da linha Benfica não ligam importância a essa determinação da Prefeitura. Fazem o horário que entendem415.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a situação do transporte coletivo de Fortaleza se agravou para os passageiros de bondes e ônibus, principalmente por conta das políticas de racionamento de combustíveis e dos obstáculos para a importação de peças e insumos. Surgiram então as primeiras tentativas de solucionar o problema do transporte coletivo de Fortaleza através de novas regras e de transformações no sistema de concessão pública do serviço. Em 1945, o prefeito nomeado, Plácido Castelo, tomou novas medidas para facilitar a instalação das empresas e ampliação da oferta de coletivos:

Impõe-se a criação de novas linhas. [...] O sr. Plácido Castelo aboliu as restrições existentes para a instalação das empresas de ônibus. Qualquer pessoa poderá montar um serviço de transporte, desde que se comprometa a apresentar veículos novos e modernos416

414 JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Op. cit. 415 O Povo, Fortaleza, 23 jul. 1954.

O incentivo às empresas de ônibus ficou maior com o fim do conflito internacional e o fortalecimento da economia brasileira. Fortaleza se transformou num espaço fértil de alternativas de negócios, embalada por novas ordenações urbanas e embates de sujeitos sociais, que acabaram por alinhavar os contornos para os serviços públicos. Nesse movimento, de acordo com o jornal O Povo de 11 de julho de 1951, o número de ônibus em circulação na cidade cresceu de 50, em 1946, para 228, em 1949417.

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