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CAPÍTULO 3 AS PRÁTICAS ESPACIAIS DO MTST/PE NA REGIÃO

3.5. Limites e contradições

Como Souza (2009b, 2010a) já afirmou e nós também já corroboramos em Santos (2010b), “o melhor amigo não é aquele que sempre concorda, mas aquele que alerta os desvios e as incoerências de seu companheiro!” É importante, assim, no que diz respeito aos

estudos sobre os movimetos sociais, não apenas apoiar as práticas dos movimentos, mas também criticá-las construtivamente, sempre no intuito de contribuir para o seu crescimento.

Mesmo com o inegável caráter de classe e a grande capacidade de transformação, a luta do MTST/PE encontra muitos percalços e a postura de alguns dos sem-teto, vez ou outra, contradiz aos seus discursos. Neste item, elencaremos quais são esses limites e essas contradições presentes na atuação do MTST/PE, mas, como dito, sempre na perspectiva de contribuir para o fortalecimento desse movimento.

3.5.1.O imaginário bestializado

O primeiro e, talvez, o mais importante percalço à plena realização da luta do MTST/PE na RMR corresponde, sem sombra de dúvidas, ao baixo nível educacional e ao forte grau de alienação31 ao qual se encontra uma parte considerável das famílias.

Embora aparente ser bastante polêmica esta afirmação, não há dúvidas de que essa alienação atrapalha, quando não engessa totalmente, a luta do movimento. Para a plena realização de suas práticas e para o combate sistemático ao modelo hegemônico de produção do espaço, o MTST/PE necessita de uma eficiênte atuação das famílias coordenadas. Entretanto, muitas delas não conseguem compreender inteiramente alguns valores e algumas ideias-força da luta, mesmo com os cursos de formação oferecidos pelo movimento e com os constantes processos educativos inerentes à própria luta.

Nas entrevistas, quando interpelados sobre algumas questões cruciais à luta do movimento, muitas famílias foram incapazes de oferecer uma resposta satisfatória. Muitas simplesmente não sabiam o que responder a respeito de ideias basilares como Reforma Urbana e o papel social da propriedade, demostrando um completo desconhecimento sobre esses assuntos.

Não estamos tentando atribuir às famílias a culpa pelo surgimento e permanência desse imaginário bestializado, pois sabemos que ele é decorrente, antes de tudo, do alto nível de precarização social ao qual se encontra as famílias. Muitos sem-teto possuem uma história de vida bastante penosa, voltada apenas para a garantia do sustento. Por isso, muitos deles não possuem nenhum grau de escolarização ou são simplesmente analfabetos. A pouca ou nenhuma educação, aliada à um cotidiano violento e sem perspectivas de ascenção social,

31 A noção de alienação que nos referimos aqui não diz respeito àquela costumeiramente utilizada pelo senso comum, ou seja, aquela atrelada a um sujeito estúpido, incapaz de tomar consciência de sua situação concreta no mundo. Quando falamos de alienação, portanto, estamos nos referimos ao processo de construção de um certo torpor político, de um imaginário embrutecido e inerte frente às investidas do modo de produção dominante.

mesmo que submetidos às mesmas perspectivas de consumo das classes médias, resulta num comportamento aturdido e, frequentemente, numa postura tola diante de questões importantes da vida social, como a atividade política.

Um imaginário ingênuo, por sua vez, é presa fácil para as igrejas neopentecostais que, em troca de dinheiro e da completa alienação, prometem uma fórmula redentora para se livrar dos pecados, dos vícios e para superar a precária condição de vida. Assim, mesmo presentes na ocupação, atuantes junto ao corpo coletivo do movimento, muitos sem-teto não compreendem bem alguns aspectos da luta e alguns valores presentes na própria bandeira do MTST/PE.

3.5.2. O mercado informal hiperprecário

Grosso modo, o comércio de moradias e de solo urbano no Brasil sempre foi realizado por duas diferentes vias: uma que chamamos de formal e outra informal. A primeira ocorre em conformidade com as leis e com a ordem jurídica hegemônica, já a segunda se realiza às margens das leis, engendrando uma ordem jurídica subalterna. A separação entre esses dois modelos não é muito rígida, pois há frequentes intersecções entre eles. Mas, ainda assim, tratam-se de dois diferentes modelos. Cabe ainda registrar que a grande maioria dos excluídos urbanos promovem o desenvolvimento do segundo tipo de comércio de solo urbano. Por isso, sempre foi comum esse segundo modelo na realidade urbana brasileira.

Ademais, outro importante percalço que embarga a plena atuação do MTST/PE é o comércio de barracos no interior das ocupações aos moldes do modelo informal. Esse comercio faz com que haja uma enorme rotatividade de moradores nas ocupações, dificutando a consolidação da coesão social necessária à própria permanência do território.

Como afirmamos, o cotidiano dos sem-teto, com exceção dos momentos de luta, é semelhante ao de todo indivíduo imerso na realidade urbana capitalista. Assim, eles também trabalham, estudam, aspiram riqueza e anseiam possuir e negociar bens de todo tipo. Por isso, quando detém a posse de um barraco no interior de uma ocupação, mesmo que isso seja de maneira provisória, alguns sem-teto buscam comercializar esses espaços no intuito de auferir algum lucro.

Ao vender essas moradias, portanto, esses sem-teto engendram o desenvolvimento de um comércio de moradias informal extremamente precário, onde não há garantias de pagamento, nem compromissos formais perante a lei, pois tudo é definido de maneira tácita. Este mercado informal, entretanto, mostra-se muito mais precário que o tradicional mercado informal de moradias e de solo urbano, pois geralmente envolve terrenos inóspitos ou

barracos de madeira inabitáveis, lugares inteiramente impróprios para a sobrevivência humana (Figuras 14 e 15). Além disso, o não cumprimento dos acordos de negociação pode ocasionar em perdas irremediáveis, pois as formas de exigibilidade geralmente envolvem investidas violentas contra os inadimplentes.

Figura 13: Aspectos da segunda Ocupação Campo Grande (Favela de Plástico); Foto: Otávio Santos, 2013; Nota: Vielas extremamente estreitas e intransitáveis, muitas vezes, são os únicos espaços disponíveis para a

circulação de pessoas.

Figura 14: Aspectos da segunda Ocupação Campo Grande (Favela de Plástico); Foto: Otávio Santos, 2012; Nota: Na fotografia, note-se a grande quantidade de lixo e dejetos em local onde já se localizou uma moradia.

3.5.3. A relação com o Estado

Conforme já destacamos em Santos (2012b), mesmo defendendo os bordões da auto- gestão e da autonomia frente aos ditames do poder econômico e politico-institucional, o MTST/PE ainda sustenta uma relação de forte dependência com alguns governos de cunho progressista, como o petista. Essa dependência é decorrente, como dissemos no item 2.3, devido ao fato de o MTST ter nascido de uma conjuntura política formada a partir de duas importantes organizações, o MST e o PT. Assim, depois que o PT conquistou a prefeitura do Recife e a presidência da república, o MTST/PE desfrutou de um período de muito bom relacionamento com os governos, o que possibilitou algumas conquistas. Mas com o fim do segundo mandado de João Paulo (2004-2008) na prefeitura do Recife e com a instauração, no plano político e econômico, de um período de poucos avanços relativos à política urbana, o MTST/PE passou a conhecer um período de poucas conquistas e, em alguns casos, muitos retrocessos. Ainda assim, o movimento não procurou fazer frente a essa conjuntura, preferindo permanecer no momento de refluxo em que se encontrava.

Mesmo diante dos desavindos que ocorreram entre o movimento e o governo de João da Costa (PT) a partir de 2010, a relação entre o MTST/PE e o PT permaneceu estreita e condescendente. O MTST chegou a romper com o PT em Recife em 2012, apoiando a candidatura de Geraldo Júlio (PSB) nas eleições, mas ainda assim continuou apoiando o partido no plano estadual e nacional. Assim, sempre houve uma relação muito complacente entre o MTST/PE e os governos, de modo que quase inexiste uma crítica mais profunda e uma luta mais sistemática contra os quadros de opressão desencadeados pela associação Capital-Estado hoje tão atual graças ao período de forte desenvolvimento econômico que o país atravessa.

Como já haviamos apontado em Santos (2012b), há uma série de percalços na atuação do MTST/PE que são desencadeado pela maneira com que esse movimento se relaciona com o Estado e com os governos. Um desses entraves se trata da forma através da qual é concedida a moradia para os sem-teto. A respeito disso afirmamos:

A forma pela qual é concedida a própria moradia pelos governos, por intermédio dos programas habitacionais, não leva em consideração que a casa deve ser o reflexo da individualidade de quem a possui, atendendo às suas necessidade materiais e espirituais mais íntimas. Quase nunca os sem-teto são ouvidos no processo de assistência por algum programa habitacional, como se eles não fossem capazes de saber e externalizar do que eles mesmos necessitam (SANTOS, 2012b, p. 52).

E ainda acrescentamos que esse pouco protagonismo era ocasionado:

[...] pela própria postura do movimento e das lideranças que, por "debaixo dos panos", compactuam indevidamente com secretários e/ou articuladores sociais dos

governos para que as famílias desocupem áreas e recebam em troca uma habitação qualquer (SANTOS, 2012a, p. 52).

Portanto, esse apoio a qualquer custo prestado pelo MTST/PE a certas posturas governamentais tende a limitar sua atuação, pois geralmente ocasiona uma incoerencia entre as demandas populares e os posicionamentos gerais do movimento.