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Nos rumos do capitalismo contemporâneo, a cidadania se move por regras de mercado, única coisa universal. E é dentro dessa lógica que a política de saúde reprodutiva se define como um lugar de muitas invisibilidades. O cerceamento de acesso de homens e mulheres a direitos e a serviços de saúde pública garantidos por lei acontece de forma silenciosa. A vasectomia, na prática, se expande numa rede informal formada por homens para acesso a tal serviço, reforçando a lógica do mercado, como verifiquei no decorrer da pesquisa34. São trocas, muitas das vezes, tímidas e silenciosas, mas que favorecem o processo de tomada de decisão. Ao narrarem como haviam conseguido efetuar a esterilização (vasectomia), os homens registram que obtiveram informações e acesso à vasectomia através de “conhecidos”. Os caminhos percorridos por homens em busca desse acesso demonstram muito das interações que se formam nessas redes. Acompanhar esses percursos é, conforme Carla Almeida (2004b, p.3), “[...] ao mesmo tempo identificar as lógicas que excluem e incluem as pessoas aos serviços públicos de saúde, de tal modo que este acesso está longe de ser universal”. No caso, as redes são formadas como um modo de resposta frente às deliberações do Estado. Criadas em “[...] espaços informais, as redes são iniciadas a partir da tomada de consciência de uma comunidade de interesses e/ou valores entre seus participantes. [...] Independentemente das questões que se busca resolver, muitas vezes a participação em redes sociais envolve direitos, responsabilidades e vários níveis de tomada de decisões” (MARTELETO, 2001, p.73). A política de saúde reprodutiva, conforme expressa Carla Almeida (2004b, p.3), “[...] experimentou nos últimos 20 anos, aqui no Brasil, mas não só, uma intensa mobilização no sentido da ampliação dos direitos sociais e culturais na saúde”. Contudo, as práticas sociais e institucionais revelam a necessidade de superação dos modelos costumeiros.

34 Com esse sentido, vamos utilizar a noção de rede social que Bott subscreve de John Barnes: “Cada pessoa

está, por assim dizer, em contato com um número de pessoas, algumas das quais estão diretamente em contato com cada uma das outras e algumas das quais não estão... Acho conveniente falar de um campo social deste tipo como uma ‘rede’ (network). A imagem que possuo é a de um conjunto de pontos, alguns dos quais ligados por linhas. Os pontos da imagem são as pessoas, ou às vezes os grupos, e as linhas indicam que pessoas interagem com as outras” (BARNES, 1954, p.43 apud BOTT, 1976, p.107).

Homens são apartados dos serviços de saúde reprodutiva, profissionais de saúde reforçam a lógica pela qual reprodução é “coisa de mulher”, médicos criam critérios diferenciados de elegibilidade para a realização das cirurgias de esterilização masculina e feminina, gestores de políticas não criam mecanismos para efetivação da Lei do Planejamento Familiar, e assim por diante. Os embargos à efetivação dos direitos no campo da saúde reprodutiva colocam em cena as políticas privadas de saúde – reforçando o “mercado” de vasectomias e laqueaduras, apresentando as várias faces do sistema de proteção social e a urgência de políticas voltadas para homens e mulheres. Como se vê na figura abaixo, coletada na Internet, há uma tentativa de desqualificação da rede pública de saúde para preservar interesses privados de um mercado médico altamente vantajoso.

Fonte: www.bluebahiaocio.net/26/humor/vasectomia.jpg

Um mercado protegido e altamente lucrativo de vasectomias é favorecido pelo descumprimento da Lei. Segundo informes colhidos nas salas de planejamento familiar do HUAP, o preço da esterilização masculina tem variado de R$ 900,00 (novecentos reais) a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) e a feminina entre R$ 350,00 (trezentos e cinqüenta reais) a R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais). Isso se confirma em entrevista com um urologista, quando indagado sobre o preço cobrado para a realização da vasectomia:

“Oscila muito. Oscila muito dependendo de onde você faz, [o valor] vai de quinhentos reais até mil e quinhentos reais por aí. Depende, se ele [o homem] fizer em uma clínica, tem as taxas da clínica, então, ele paga mais um pouco; se ele fizer num ambulatório é mais simples, ele gasta menos. Então, depende do local onde ele faz”.

Antes da regulamentação da lei de esterilização, a prática usual era a realização da vasectomia em clínicas particulares, mediante pagamento. Quando se restringem as vasectomias a umas poucas unidades de atendimento diante das demandas existentes, força-se a busca de soluções privadas e, assim, burla-se o que determina a lei do planejamento familiar posta pelo Ministério da Saúde. Isso revela um pouco das invisibilidades nas quais se escondem a negação de direitos reprodutivos e a cidadania.

Há mais problemas a enfrentar. As unidades de saúde não recebem insumos (métodos contraceptivos) em quantidade suficiente para o atendimento da demanda, de certa forma, contribuindo a favor de decisões por esterilizações. Atrelado a esse mercado, vem se expandindo o clientelismo eleitoral – mulheres obtêm a cirurgia de esterilização e, são levadas a votarem no referido candidato. E hoje podemos admitir que também, os homens tentam conseguir a vasectomia por este caminho, pois num depoimento, um entrevistado, quando indagado de que forma pode fazer a vasectomia, falou de uma de suas tentativas: “[...] eu tenho um primo que é político, eu conversei com ele para ver se conseguia encaminhar através dele35”. Um dos modos de favorecer as vasectomias – trata-se de registro de uma reunião – está na oferta que algumas empresas fazem dessa cirurgia a seus empregados de graça. Essas condutas reforçam o mercado privado de esterilizações.

Um dos impasses vividos pelas ações de planejamento familiar na região no dá-se com a suspensão da realização de cirurgias de vasectomia pela direção HUAP em dezembro de 2002. Oficialmente, essa suspensão foi atribuída ao não credenciamento do HUAP no Ministério da Saúde para realizar tal cirurgia, mantido, até então, por referir-se a um outro código de procedimento médico coberto pelo convênio com o SUS. Desde janeiro de 2003, as vasectomias estão suspensas, redefinindo-se responsabilidades dessas ações: o município de Niterói referenciou o Hospital Municipal Orêncio de Freitas, no Barreto, para atender às demandas de vasectomia e o CPN (Centro Previdenciário de Niterói), ao lado do HUAP, para as de laqueadura. Mesmo assim, os homens são atendidos pelo programa de saúde reprodutiva/planejamento familiar do HUAP: agendados para participarem das reuniões que antecedem a intervenção cirúrgica, são encaminhados do hospital para essas unidades da rede

municipal de saúde para sua realização. Embora, direito de homens e mulheres, a esterilização vem sendo negada por procedimentos assistenciais que estabelecem limites de acesso ao mesmo. O HUAP, ao promover esse acesso, ficara em posição isolada frente a todas as tensões que cercam essa questão. A negação e a restrição de direitos a homens e mulheres fazem com que a vasectomia e a laqueadura, por conta própria, constituam-se em mecanismos de transgressão a esses limites.

3.2 VASECTOMIA, RELAÇÕES DE GÊNERO E SILÊNCIOS QUE ENVOLVEM O