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Limites da Interpretação

Capítulo 5 — Discussão

5.2 Limites da Interpretação

A teoria winnicottiana do amadurecimento põe em relevo um dos limites da teoria psicanalítica tradicional. Ao prestar atenção aos momentos iniciais da vida dos

bebês e aos relacionamentos ambientais, compreendendo a fundamental importância destes na constituição dos indivíduos, Winnicott alcança a compreensão de distúrbios (as psicoses e a tendência anti-social), que a psicanálise em seu início não conseguiu abarcar.

De fato, Freud entendeu que a psicanálise contava com alguns limites em relação ao tratamento de patologias, em especial com relação as psicoses:45

Não tardou em estabelecer-se a diferenciação geral entre as chamadas ‘neuroses de transferência’ e as afecções narcisistas, sendo as primeiras (histeria e neurose obsessiva) o objetivo propriamente dito da terapêutica psicanalítica, enquanto as outras, as neuroses narcisistas,46 se bem que passíveis de investigação com ajuda da análise, opõem dificuldades fundamentais à ação terapêutica. (Freud 1910, p. 82)

Winnicott, por sua vez, não apenas compreende a etiologia de novos distúrbios, como formula novos modos de tratamento. Ele entende, por exemplo, que, ao atender pacientes com distúrbios primitivos (psicóticos), realiza algo muito diferente da psicanálise tradicional nomeando esse trabalho análise modificada. Nele, dá-se conta de que a interpretação, considerado o principal instrumento psicanalítico, não é suficiente para o atendimento das necessidades dos pacientes. Isso acontece não apenas porque a natureza desses distúrbios é diferente daqueles atendidos pela psicanálise tradicional, sendo resultado de interrupções na continuidade de ser em momentos primitivos do desenvolvimento emocional, como também porque a origem desses distúrbios data de uma época na qual o indivíduo ainda não alcançou a capacidade para representação, simbolização ou relacionamento objetal, não alcançando também a capacidade para a verbalização:

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Essa compreensão foi sugerida pelo professor João Augusto Pompeia, em aula do curso de graduação em psicologia da PUC/SP no ano de 1997, porém, em outro contexto.

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Mesmo assim, Freud considerava que o desenvolvimento da psicanálise poderia levar à compreensão e ao tratamento de outros tipos de distúrbios.

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É possível observar que estou levando vocês para um lugar onde a verbalização perde todo e qualquer significado. Que ligação pode então haver entre tudo isso e a psicanálise, que se fundamentou no processo de interpretações verbais de pensamentos e idéias verbalizados? (1968d, p. 81).

Assim, como a origem dos distúrbios primitivos é anterior à verbalização, a interpretação não alcança essa origem e não pode atender sozinha ao que é necessário em tais casos, mesmo que muitas vezes sua utilização seja imperativa.47 Para esse atendimento, Winnicott propõe que o analista atue principalmente no manejo: “A respeito desse (...) grupo [psicóticos],48 a ênfase recai mais freqüentemente sobre o manejo, e por vezes passam-se longos períodos em que o trabalho analítico normal deve ser deixado de lado, o manejo ocupando a totalidade do espaço” (1955d, p. 375).

Nesses casos, Winnicott também considera necessário que o paciente possa regredir ao momento da falha ambiental para, através do holding fornecido pelo analista, retomar seu desenvolvimento emocional do local onde estacionou:

A regressão representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos aspectos do ambiente que falharam originalmente possam ser revividos, com o ambiente desta vez tendo êxito ao invés de falhar na sua função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer (1965h, p. 117).

Como vemos, o trabalho proposto para o atendimento de pacientes psicóticos é muito diferente daquele dos pacientes psiconeuróticos. Mas a modificação do trabalho não termina aí. Também com relação aos distúrbios da tendência anti-social, há novos elementos. Nesses casos, o trabalho se dirige para a administração do ambiente com o fornecimento de um apoio contínuo ao ego, a

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Vale lembrar que Freud, em situação semelhante mas não idêntica, propôs o uso da construção para atender aos casos que contavam com amnésia infantil. Entretanto, também a construção é de ordem verbal e, portanto, não atende do ponto de vista winnicottiano às demandas dos distúrbios primitivos.

fim de recuperar a confiabilidade ambiental perdida por ocasião das deprivações sofridas: “O terapeuta é impelido pela doença do paciente, ou pela metade esperançosa que há nela, a corrigir e continuar corrigindo a falta de apoio ao ego que alterou o curso da vida do paciente” (1960a, p. 149).

Desse modo, fica patente que, no trabalho voltado aos distúrbios psicóticos e à tendência anti-social, as interpretações têm outro lugar. Nesses casos, o fundamental é o oferecimento de um ambiente que permita ao paciente regredir e ser atendido em suas necessidades maturacionais (psicoses) ou recuperar o relacionamento ambiental (distúrbios da tendência anti-social), de forma a retomar o desenvolvimento emocional desde o ponto onde foi interrompido. Sem dúvida, esse trabalho necessita de interpretações, mas estas, ainda que cumpram um papel específico no atendimento, não são suficientes para atender às necessidades dos pacientes. Ou seja, as interpretações, voltadas à compreensão da origem dos distúrbios, ao cuidado referente às intrusões e às situações traumáticas, ao acolhimento das ansiedade vividas, não solucionam por completo as questões que nascem dos problemas relativos às falhas ambientais. O atendimento a essas questões se dá principalmente no relacionamento ambiental especial que o analista dispõe ao paciente: o holding. É a partir do holding que os processos integrativos que ficaram impedidos nas psicoses podem ocorrer, ou que a confiabilidade ambiental perdida na tendência anti-social pode ser recuperada.

Essa insuficiência da técnica interpretativa também pode ser observada na distinção entre interpretação e outros modos de intervenção verbal. Ou seja, no atendimento psicanalítico, especialmente nos casos psicóticos e dos distúrbios da tendência anti-social, surge a necessidade de intervenções verbais não- interpretativas. Essas intervenções estão relacionadas ao holding, dedicando-se a sinalizar o ambiente sustentador e a atender às necessidades maturacionais dos pacientes, as quais permanecem congeladas na doença como resultado das intrusões e deprivações sofridas. Podemos citar, como exemplo, a intervenção

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realizada no caso referente ao atendimento da tendência anti-social, descrito no capítulo anterior. Essa intervenção: “Então eu lhe disse para nunca, nunca mais duvidar e disse-lhe que, se alguma vez ele sentisse dúvida me fizesse lembrar de dizer outra vez” (1958c, p. 136-137), teve por objetivo sinalizar ao paciente a efetividade do ambiente sustentador, atendendo à sua necessidade de recuperar a confiança ambiental perdida.

Portanto, ao falarmos do tratamento de distúrbios psicóticos ou da tendência anti-social, estamos em um local onde a interpretação encontra seu limite. Nesse campo, o holding é um instrumento fundamental. Esse instrumento é prioritário até o momento em que o analisando retoma o amadurecimento e alcança a condição dos relacionamentos interpessoais, quando a interpretação clássica pode ser usada. Mesmos em tais momentos a atitude do analista (holding) é sempre necessária.

5.3 Diferenças e Semelhanças entre as Interpretações em