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Conquanto não se tenha a pretensão de exaurir a temática, urge tecer algumas considerações acerca dos limites materiais apostos às emendas à Constituição, tendo em vista o mister de perscrutar a constitucionalidade da DRU – obra do exercício do poder reformador. Com efeito, o texto constitucional alberga, em seu artigo 60, §4º187, as denominadas cláusulas pétreas, que são obstáculos materiais impostos pelo constituinte originário. Deveras, o poder de reforma, enquanto poder constituído, não pode, na sua legítima função de acomodar o texto às novas conjunturas, pretender criar uma nova Constituição; erigem-se, destarte, as cláusulas de imutabilidade como uma prevenção ao “processo de erosão” da ordem constitucional, de sorte a proteger a integridade e identidade do projeto originário.188 Rodrigo Brandão assevera com argúcia que

[...] o poder de revisão logra conciliar as pretensões de continuidade e alterabilidade da ordem constitucional, na medida em que viabiliza a alteração juridicamente institucionalizada, de uma ou várias disposições constitucionais, mantido, todavia, o núcleo que confere identidade ao regime constitucional.189

Decorrência natural deste núcleo de superconstitucionalidade190 é a possibilidade de controle das emendas constitucionais, sendo certo que de nada adiantaria dotar certas cláusulas com o atributo da intangibilidade se não se admitisse o respectivo controle judicial do poder de reforma. Nesse esteio, e repisando a axiomática distinção entre os constituintes originário e derivado, o STF já teve a oportunidade de rechaçar o controle de normas constitucionais originárias, considerando juridicamente impossível, no ordenamento brasileiro, a tese das normas constitucionais inconstitucionais capitaneada por Otto Bachof.191

187 Art. 60, § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

188 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 122-123.

189 BRANDÃO, Rodrigo. Direitos Fundamentais, democracia e cláusulas pétreas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 25.

190Expressão utilizada por Rodrigo Brandão para se referir às cláusulas pétreas.

191 STF. Tribunal Pleno. ADI nº 815-3. Ministro Relator Moreira Alves. Julgado em 28.03.1996. DJ de 10.05.1996.

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De outra toada, desde o advento da Primeira República, a Corte tem se proclamado competente para controlar a legitimidade material das emendas constitucionais.192

Sob a égide da Constituição de 1988, esta competência foi ratificada e, pioneiramente, em 1993, declarou-se a inconstitucionalidade da emenda constitucional que instituíra o IPMF no que tange ao afastamento das regras relativas à anterioridade tributária e das imunidades, por considerá-las insculpidas no artigo 60, §4º, IV, isto é, intangíveis ao poder de reforma.

Não se pode descurar, no entanto, da aparente tensão entre controle de constitucionalidade e democracia que, observa-se, é ainda mais pungente no que concerne ao controle judicial do poder reformador, à vista de que, em constituições rígidas – como a brasileira –, exige-se um processo legislativo mais dificultoso para a aprovação das emendas constitucionais.

De acordo com Rodrigo Brandão, os problemas de justificação do controle de constitucionalidade em um regime político democrático envolvem dois matizes, um de caráter temporal e outro de caráter semântico. À luz da primeira dificuldade, tem-se um conflito intergeracional, posto que decisões levadas a efeito no passado, isto é, por ocasião da assembleia constituinte, condicionam as deliberações potencialmente ad aeternum. É de dizer, aquelas normas jurídicas alçadas à categoria de cláusula pétrea só poderiam ser revisitadas em caso de ruptura da ordem constitucional vigente, implicando uma espécie de “governo dos mortos sobre os vivos”.193

O problema de caráter semântico remete à famigerada dificuldade contramajoritária, traduzida no argumento de que agentes não eleitos (juízes) não deveriam obstaculizar decisões de órgãos referendados pelo voto popular. Conforme destacado alhures, este aparente estorvo é exacerbado no âmbito do controle do poder de revisão, visto que, no Brasil, exige-se

192 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 125.

193 BRANDÃO, Rodrigo. Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas Pétreas: uma proposta de justificação e de aplicação do art. 60, p. 4, IV, da CF/88. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE. Salvador, n. 10, abr./maio/jun., 2007, p. 7-8. Disponível em <http://rbrandao.adv.br/wp-content/uploads/2017/05/DFs.-Clausulas- Petreas-e-Democracia-uma-proposta-d-e-justificacao-e-aplicacao-do-art-60-4-da-CF88.pdf>. Acesso em 06 jun. 2018.

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uma supermaioria para a aprovação de emendas constitucionais, qual seja, quórum qualificado de 3/5, na Câmara dos Debutados e no Senado Federal, em dois turnos cada casa194.

Sem embargo, conforme lição de Luís Roberto Barroso, haure-se a legitimidade do controle judicial de constitucionalidade da própria força normativa da Constituição, a significar que, enquanto norma jurídica, deve ser interpretada e aplicada pelo Poder Judiciário. Ademais, o poder constituinte originário afigura-se como auge da soberania popular e, como instituidor de um novo ordenamento, subordina todos os poderes constituídos. Nesta senda, ainda que se reconheça que os limites materiais, não raro, desvelam abstração semântica e densidade política e moral, o Poder Judiciário também se encontra subordinado à Constituição, demandando-se que a interpretação apoie-se em critérios e métodos jurídicos, como a observância do dever de fundamentação e dos princípios que regem o sistema constitucional.195

Em suma, o controle judicial das emendas constitucionais, ao descortinar a vontade do constituinte originário - que nada mais é do que a mais alta expressão da soberania popular – está, em verdade, a proteger o projeto constitucional de maiorias parlamentares eventuais. Mister, neste contexto, trazer à baila as abalizadas palavras de Luís Roberto Barroso acerca da já comentada196 imprescindibilidade de se compreender o princípio democrático para além da

regra da maioria:

A democracia não se assenta apenas no princípio majoritária, mas, também, na realização de valores substantivos, na concretização dos direitos fundamentais e na observância de procedimentos que assegurem a participação livre e igualitária de todas as pessoas nos processos decisórios. A tutela desses valores, direitos e procedimentos é o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional. Partindo dessas premissas, parece plenamente possível conciliar democracia e jurisdição constitucional, quer se defenda uma noção procedimental de Constituição – que privilegia a definição das regras do jogo político, cuja observância legitimaria os resultados produzidos –, quer se opte por um modelo substancialista – no qual certas opções materiais já estariam predefinidas.197

194 Art. 60, § 2º: A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

195 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7 ed., São Paulo: 2016, p. 56-60.

196 Remete-se ao capítulo 1.1., no qual defendeu-se a possibilidade de levar-se a efeito o controle concentrado do orçamento, com espeque numa interpretação constitucional do princípio democrático.

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Em verdade, ante a sedimentada tradição brasileira de admitir a sindicabilidade das emendas constitucionais, a tensão entre o controle em comento e a democracia ostenta contornos mais interessantes no que concerne aos lindes das cláusulas pétreas. A questão que ora se propõe perquirir pode ser sintetizada nos seguintes termos: quando a Constituição estatui que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (i) a forma federativa de Estado, (ii) o voto secreto, universal e periódico, (iii) a separação de Poderes e (iv) os direitos e garantias individuais, o que isto quer significar? Obstam-se quaisquer emendas que tangenciem estas cláusulas?

A resposta adequada, e consonante com a jurisprudência do STF198, indica que não. À guisa de permitir uma prudente contemporização do projeto constitucional com os cambiantes anseios e necessidades do povo – sendo certo que um total engessamento tende a exortar vozes que promovam a ruptura da ordem vigente –, estarão talhadas com a pecha da inconstitucionalidade tão somente aquelas propostas de emenda que se prestem a amesquinhar os direitos e princípios insculpidos nas cláusulas pétreas. Neste esteio, insta lançar luzes sobre os ensinamentos de Flávio Novelli, em escorço da premissa que conduzirá o deslinde da análise acerca da (in)constitucionalidade da DRU:

A dita inviolabilidade dos direitos fundamentais ou a dos princípios estruturais do Estado, não significa, desenganadamente, pura e simples imodificabilidade, isto é,

inemendabilidade. De fato, acorrendo-nos à exata observação de CARL SCHMITT

há pouco lembrada, uma tal rigidez não faria sentido já ante a simples conceituação correta do poder de emenda. Acresce que os limites desse poder têm hoje, conforme se sabe, no consenso da melhor doutrina Constitucional - sem prejuízo, é claro, do seu histórico papel de garantia do legítimo interesse privado e da autonomia individual (na medida em que restringem a liberdade do próprio legislador constitucional) - uma predominante dimensão institucional e funcional: ordenam-se eles, primordialmente, no plano hermenêutico, mediante o ponderado equilíbrio e a

conciliação da diversidade dos valores fundamentais, aos fins sociais e coletivos adotados pela Constituição. Quer dizer: ordenam-se ao fim supremo de garantir a

Constituição mesma, visto que, resguardando-lhe a identidade e a individualidade, resguardam-se, em conseqüência, os próprios direitos fundamentais e os princípios estruturais, enquanto esses constituem elementos configuradores daquela, com ela

198 Vide, neste sentido, excerto do voto de lavra do Ministro Sepúlveda Pertence por ocasião do julgamento do MS 23.047-3: “Reitero de logo que a meu ver as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, §4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originaria, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. Convém não olvidar que, no ponto, uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionarias ou dar pretexto fácil à tentação de golpes de Estado”. In STF. Tribunal Pleno. MS nº 23.047- 3/DF. Ministro Relator Sepúlveda Pertence. Julgamento em 11.02.98. DJ de 14.11.2003.

84 afinal se identificam, e traduzem, na prática, o que P. LUCAS VERDÚ chama a "fórmula política", o minimum constitucional inviolável.199

Os tópicos que se seguem tratarão de perscrutar a DRU à luz das normas dotadas do atributo de superconstitucionalidade, notadamente a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e os direitos sociais, oportunidade em que serão minudenciados alguns aspectos ínsitos ao núcleo essencial das respectivas cláusulas pétreas.