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Limites e possibilidades para interseccionalidade do gênero no Território dos

Através da manifestação identitária das quebradeiras de coco babaçu tornam-se visíveis questões relacionadas à subordinação, desigualdade e à violência do gênero sofrida pelas mulheres. Para as organizações do governo isso significa trata-las como sujeitos sociais que se encontram em situação de vulnerabilidade social56. Para o movimento social, isso implica em conflitos sociais que mobilizam e organizam grupos sociais na defesa do reconhecimento e garantias de direitos no campo das políticas públicas.

Para autoras como CRENSHAW (2002), a extensão total da vulnerabilidade interseccional das mulheres ainda permanece desconhecida e pouco fomentada no debate público. Exemplo concreto é a experiência das mulheres do Território dos Cocais, pois arrisco-me a dizer que são, até certo ponto, negadas. Quando o governo fomenta o debate sobre políticas públicas polariza as questões conflitantes em torno das diferenças entre poder público e sociedade civil, quando muito, nas desigualdades do gênero (homens e mulheres), e não na vulnerabilidade que os diferentes grupos sociais representados nos espaços públicos de poder podem acumular, como as mulheres extrativistas do babaçu. Portanto, concordo com CRENSHAW (2002), quando chama a atenção para a necessidade de dar visibilidade a extensão total da vulnerabilidade interseccional das mulheres, começando a partir do zero. Para esta, as garantias de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da

56Vulnerabilidade social compreendida no sentido sociológico que designa os grupos sociais e os locais dentro de

uma sociedade que são marginalizados, aqueles que estão excluídos dos benefícios e direitos que todos deveriam ter dentro de um mundo civilizado. Refere-se então a condição em que se encontram as classes mais pobres e menos favorecidas da sociedade.

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proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas pelas quais o gênero intersecta-se com determinada gama de outras identidades e, ao modo pelo qual essas intersecções se somam para aumentar a vulnerabilidade de diferentes grupos de mulheres.

Particularmente testemunhei as dificuldades inerentes ao reconhecimento da extensão da vulnerabilidade interseccional das mulheres quebradeiras de coco babaçu quando observei as mobilizações e as articulações dentro do Território dos Cocais. Em sua luta pelo ―livre acesso aos babaçuais‖, essas mulheres acionam marcações identitárias de acordo com os diferentes espaços em que estabelecem relações. Essas marcações, por vezes são consideradas ou não, produzindo, ou não, efeitos sobre seus interlocutores. No Conselho Territorial, não são reconhecidas por serem negras, analfabetas, idosas, ou mesmo, quebradeiras de coco babaçu, mas pela diferença do gênero/mulher, anulando, do ponto de vista da categorização da política, outras marcações e não interseccionando uma e outra.

Em princípio, quando estão no Conselho, não diferentemente de outras mulheres, as quebradeiras de coco babaçu são identificadas como agricultoras familiares. No limite, nesse campo de forças, não há permissão para que essas mulheres acionem outros marcadores de diferenciação social como, a raça, a geração, etnia etc. Em nenhum dos eventos observados ouvi mulheres, ou mesmo homens, proferirem discursos em defesa de alguma ação ou projeto evocando identidades que fizessem referência direta a cor, tais como: ―nós as mulheres negras‖; ou a geração: ―nós, mulheres idosas ou jovens‖, etc. No geral, os discursos fazem referência a categorias convencionais de agricultora familiar. De certa forma são falas que reforçam a orientação do governo para universalizar a todos dentro da categoria de ―agricultor familiar‖, como é prevista nas ações e projetos dentro da estratégia de desenvolvimento territorial. Em detrimento do recebimento dos benefícios públicos, os sujeitos sociais do lugar terminam por internalizar essa forma de identificação, porém, como já argumentei anteriormente, há marcadores de diferenças que inevitavelmente são evocados para que grupos identitários distintos tenham garantias de direitos, como foi o caso das mulheres extrativistas.

Para CRENSHAW (2002), uma das razões pelas quais a interseccionalidade se constitui em desafio é que ela pode colaborar para a percepção das diferenças e a desigualdade que ela pode produzir dentro da própria diferença e, não negá-la. Como o Conselho é a esfera pública de poder articulada e normatizada a partir da lei do Planejamento Participativo e da PNDRSS, nem sempre preveem que grupos minoritários distintos acionem

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outros marcadores de diferenciação além dos estabelecidos na própria política. Pois o reconhecimento de identidades sociais que não estão previamente previstas na lei, incorreria em instabilidade no produto final das ações, projetos, programas e seus orçamentos já previamente definidos. Quando isso ocorre há discrepância entre o que as mulheres vivenciam na prática e, o tipo de proposição que a política pública prevê para enfrentar as desigualdades referentes a elas. No geral, pela própria condição de vulnerabilidade em que se encontram, são as mulheres que transformam suas formas de identificação a fim de garantir o recebimento do beneficio público, e não a política que abre possibilidades para inserção de novos grupos identitários. Para que isto ocorra é necessário que os grupos identitários excluídos percorram um longo processo de mobilização, organização e luta por reconhecimento.

Na leitura de KIMBERLÉ CRENSHAW (2002), chama a atenção o fato de haver determinada visão tradicional da discriminação, atuando no sentido de excluir as sobreposições de discriminação racial. Assim, a autora propõe que a interseccionalidade pode servir de ponte entre diversas instituições e eventos e, entre questões de gênero e de raça nos discursos acerca dos direitos humanos – uma vez que parte do projeto da interseccionalidade visa incluir questões raciais nos debates sobre gênero e direitos humanos, além de incluir questões de gênero nos debates sobre raça e direitos humanos.

Vejo que no Conselho, isoladamente, os diversos grupos sociais demandam suas questões específicas e sentem-se frustrados pelo seu não reconhecimento. Isso, quando não são sufocados pelo discurso unificador do Estado que sintetiza as diferenças argumentando que, o que esta em jogo é o sucesso ou o fracasso da agricultura familiar. Esse procedimento aciona a solidariedade quanto ao enfrentamento de desigualdades partilhadas por aqueles que pertencem ao mesmo lugar (ou seja, todos são do ambiente rural), porém esta mesma solidariedade parece não sensibilizar os conselheiros quanto à discriminação racial, cujo debate não é explicitado nas plenárias, pois não presenciei situações de conflito, cujos enfrentamentos fossem explicitamente deflagrados pela diferença de cor. O que reforça a visão tradicional no sentido de excluir a sobreposição de discriminação racial, visto que das mulheres entrevistadas, oito (08) identificam-se como negras, o que poderia polarizar a discussão, pois estão diferentemente posicionadas nos espaços de poder.

Nesse espaço, as diferenças, ao mesmo tempo em que são instigadas a se manifestar são também controladas dentro da matriz que é comum a todos. Ou seja, as demandas de grupos particulares são fomentadas, mas muitas vezes são adiadas em detrimento da suposta identidade coletiva. O que faz com que grupos originalmente antagônicos entre si (como as

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prefeituras, câmaras municipais e movimentos sociais, que disputam o poder local) passem a optar por fazer parte da mesma articulação, tendo em vista o fato contingente de se ter um inimigo comum entre os próprios inimigos. Nesse caso específico seria o isolamento do território rural, ou seu completo abandono por parte da PNDRSS. Evidencia-se, portanto, a identificação com o ―nós somos do rural‖, que aparece na fala das representações do poder público e da sociedade civil.

No Comitê de Mulheres é mais comum a percepção das diferenças com relação a identificação de cor, geração e lugar de pertencimento. Pois a orientação metodológica utilizada pelo CF8 durante os encontros do Comitê de Mulheres incentiva as mulheres a manifestarem aquilo com o qual se identificam ao longo de suas vidas. Isso faz com que seja externalizada, na reconstrução da história de desigualdade das mulheres, as combinações de diferentes formas de vulnerabilidade que se somam para excluí-las socialmente. Essa dinâmica metodológica de reflexão a partir da reconstrução da história de vida das mulheres permite que partilhem nos grupos de trabalho (através da construção da linha do tempo) as especificidades com as quais cada grupo de mulher (assentada, extrativistas, sindicalistas, dentre outras) vivencia no campo da ação coletiva. O que faz com que a teia de ligação entre elas seja estreitada e fortalecida por laços de solidariedade despertados com as identificações de indicadores de vulnerabilidade social partilhados por elas, tais como, a discriminação racial, subordinação e dominação masculina e, em alguns casos, violência. Portanto, não é difícil compreender porque mulheres de grupos diferentes apoiam as propostas de projetos uma das outras, como o apoio recebido pelas quebradeiras de coco no Conselho.

No MIQCB, embora a categoria geral de quebradeira de coco babaçu identifique e dê visibilidade às mulheres, observo que é comum que pautem suas reivindicações, inquietações e sentimentos, acionando várias outras marcações identitárias como, raça e geração, ou mesmo identificações com o fato de serem mãe, esposa e militarem em vários outros movimentos, com os quais também se identificam. Ao contrário do que poderia imaginar essa prática não enfraquece ou esvazia o movimento, ou, a própria identidade de quebradeira de coco babaçu, mas ao contrário, não só cria como fortalece as articulações em torno de questões mais amplas, como a defesa do meio ambiente e o combate à violência contra mulher. Porém, internamente nos eventos que observei é intrigante que estas outras formas de identificação não sejam polemizadas a tal ponto de criar instabilidades ou novas outras oportunidades de articulação para o movimento, deixando em aberto a compreensão dos tipos de deslocamentos que ocorrem ou a discriminação que sofrem no próprio movimento. Para

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KIMBERLÉ CRENSHAW (2002), o desafio seria como enfrentar o duplo problema da discriminação em si e a invisibilidade dessa discriminação dentro dos movimentos políticos e das políticas intervencionistas.

As impressões que tive, ao conversar com algumas lideranças e observar a condução da discussão das ações e projetos no MIQCB é que, embora nem todas as mulheres que fazem parte do movimento e, que passam por um processo de formação (que segundo dona Toinha do MIQCB-MA é constante) estejam na condição de fazer reflexão sobre a existência de outros marcadores de diferenciação social que afetam suas vidas e que, portanto, mereceriam ser consideradas quando da discussão política do movimento. O MIQCB desenvolve ações como, o Projeto ―PINDOVA‖, demonstrando as preocupações que elas tem com relação as gerações futuras (filhos e filhas das quebradeiras de coco), muito embora as conexões com relação a interseccionalidade da discriminação geracional não estejam explicitadas nas metas do projeto. O projeto é uma estratégia de enfrentamento aos discursos dos pecuaristas, que não só inviabilizam as atividades do extrativismo com o cercamento da terra, como também acusam os governos de fazerem altos investimentos em povos e populações que, segundo estes, estariam em extinção. O que posiciona o projeto como instrumento de enfrentamento ao preconceito de geração e etnia.

De modo geral, a PNDRSS trabalha com várias ideias e imagens (figura 08) na divulgação das políticas públicas para as mulheres do rural que acabam refletindo a interseccionalidade entre raça, gênero e geração, o que caracteriza o reconhecimento do problema, por parte do governo, como ilustrado na imagem abaixo.

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Figura 08: ilustração dos cartazes de divulgação do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural - PNDTR.

Fonte: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2015).

Porém, as ações de enfrentamento às desigualdades sociais oriundas destes marcadores de diferenciação social (como o PNDTR), não refletem esta preocupação. O tratamento dispensado às mulheres é linear, afinal todas são agricultoras familiares, ou seja, as formas diferenciadas como as mulheres são afetadas por estas marcações não é considerada. O que concluo, chamando a atenção para a questão das intersecções que ocorrem entre uma identificação e outra, a depender do ambiente onde o sujeito esteja posicionado, por serem negociadas, no sentido da construção de consenso que nega os conflitos provocados pelas desigualdades ou, simplesmente são negadas.