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CAPÍTULO II – REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. LINGUÍSTICA APLICADA E ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA

O aporte teórico de nossa pesquisa, que se insere na Linguística Aplicada (LA), enfoca os estudos discursivos pecheutianos em interface com a psicanálise lacaniana e se vale de noções advindas dos estudos foucaultianos e dos estudos culturais sobre pós-modernidade, globalização e neoliberalismo. Na visão discursiva, a LA é entendida como

ciência dita moderna, que se consolidou como campo independente de investigação no âmbito das ciências humanas. Seu interesse primário de conhecimento é o de entender, explicar ou solucionar problemas e aprimorar soluções existentes, através da pesquisa aplicada, (re) pensando-as e/ou (re) problematizando-as (BERTOLDO, 2011, p. 337).

Destacamos que nossa pesquisa se situa na vertente da problematização a partir do que Bertoldo explica sobre a ilusão da LA em resolver problemas ou explicá- los. Conforme aponta o pesquisador, o paradigma do sujeito consciente, intencional, capaz de controlar seu processo de aprendizagem persistiu por muito tempo no campo da LA; entretanto, nossa pesquisa foi desenvolvida na perspectiva da LA, que concebe outras possibilidades de aprendizagem da LE. Assumimos, no aporte teórico de nosso trabalho, a identidade como fragmentária, o sujeito clivado pelo inconsciente e uma "teoria do discurso vista como lugar de constituição de um sentido que escapa à sua intencionalidade" (BERTOLDO, 2011, p. 341).

O eixo central deste trabalho situa-se especificamente na vertente teórica da Análise de Discurso (AD) de linha francesa, teoria nascida nos anos de 1960, que articula linguística, materialismo histórico e psicanálise, e tem como seu precursor, e expoente, Michel Pêcheux. Filósofo francês, Pêcheux, estabelece o discurso como objeto que deve ser analisado por uma disciplina de entremeio, a AD. Ele problematiza e reflete sobre o sujeito e o funcionamento do discurso sob determinadas condições de produção discursiva e histórica e se interessa pelo modo de produção dos sentidos e suas derivas.

Para Teixeira (2005), a teoria do discurso de M. Pêcheux dedica-se a pensar os efeitos de sentido no discurso. A questão O que isso significa? nunca foi o foco do

efeitos de sentido no discurso, no encontro entre a língua, o efeito-sujeito e a história. De acordo com a autora, a obra de Pêcheux divide-se em três épocas (1983a):

a primeira centrada na exploração metodológica da noção de maquinaria discursivo-estrutural (1993, p. 311); a segunda, voltada para o entrelaçamento desigual dos processos discursivos (ibid., p. 313) e a terceira, interessada em

fazer emergir novos procedimentos de análise a partir da consideração da heterogeneidade/equivocidade do sujeito e do sentido (TEIXEIRA, 2005, p. 16).

É a teorização da terceira fase de Pêcheux que nos interessa mais particularmente neste trabalho, pois nos permite tratar da incompletude do sentido e compreender "como se constrói o sentido no discurso, levando-se em conta um sujeito que falha em dizer, porque as palavras escapam a seu domínio[...]", conforme indica Teixeira

(2005, p. 16).

Eni Orlandi ([1990]2008), pesquisadora brasileira que dá continuidade ao projeto pecheutiano, em nota ao leitor na obra Discurso: Estrutura ou Acontecimento de Michel Pêcheux ([1988]2008), explica

A Análise de Discurso – quer se a considere como um dispositivo de análise ou como instauração de novos gestos de leitura – se apresenta, com efeito, como uma forma de conhecimento que se faz no entremeio e que leva em conta o confronto, a contradição entre sua teoria e sua prática de análise. E isto compreendendo-se o entremeio, seja no campo das disciplinas, no da desconstrução, ou mais precisamente no contato do histórico com o linguístico, que constitui a materialidade específica do discurso (ORLANDI, 1990, p. 8).

Assim, o aporte teórico de nossa pesquisa constitui-se pelas bases epistemológicas da AD franco-brasileira, atravessada pela psicanálise, pelas noções foucaultianas e pelos estudos culturais. Portanto, o nosso dispositivo teórico analítico desenvolvido a partir dos principais conceitos e noções dos estudos pecheutianos, já considerando o conceito de sujeito atravessado pela psicanálise.

Tecemos nossos gestos de interpretação a partir da noção de discurso concebida de acordo com o professor João Bôsco Cabral dos Santos21, inspirado por Pêcheux, como repercussão dos sentidos quando, enunciados em alguma situação

21 O conceito de discurso arrolado no texto baseia-se nas teorizações apresentadas pelo pesquisador Professor Doutor João Bôsco Cabral dos Santos, do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, em disciplina ministrada no POSLIN, na UFMG, intitulada Pêcheux e a Análise do Discurso, juntamente com a professora Ida Lucia Machado, no período de 21 a 24 de outubro de

enunciativa envolvem, a postura dos sujeitos diante dos processos de significação, discurso como efeitos de sentido entre interlocutores, como vir-a-ser (tornar-se) dos dizeres dos sujeitos em sentidos de um processo enunciativo.

Na terceira fase da teoria do discurso de Pêcheux, o autor convoca a teoria psicanalítica da subjetividade, provocando modificações profundas no quadro conceitual da AD. De acordo com Teixeira (2005), a relação com a língua é alterada, a enunciação, o lugar do interpretante e o estatuto da historicidade são reconfigurados. A partir da reformulação de alguns conceitos, momento em que Pêcheux recorre à psicanálise, que empregaremos relevantes noções como sujeito, intra e o interdiscurso,

pré-construído, esquecimentos, acontecimento, formações imaginárias e

heterogeneidade.

2.1.1. O sujeito no atravessamento da Análise de Discurso e da

Psicanálise

Na segunda fase de Pêcheux, são contempladas as noções de sujeito e subjetividade. Para Santos (2014)22, a noção de sujeito articulada nesse período é a de um sujeito empírico, que deixa a condição de indivíduo ao circunscrever-se na enunciação; dessa forma, a circunscrição emerge uma forma-sujeito que o inscreverá numa formação discursiva. Como a formação discursiva interpela a forma-sujeito ideologicamente, essa forma-sujeito se constituirá como sujeito de um discurso. O sujeito do discurso fará uma tomada de posição que o conduzirá a um lugar discursivo ou a um lugar social, ou ainda a uma alteridade constitutiva em ambos os lugares. Esse processo acontecerá porque, quando o sujeito discursivo for interpelado, atravessamentos interdiscursivos se sobreporão à formação discursiva de inscrição daquela forma-sujeito. O pesquisador destaca que não se pode esquecer a constitutividade ideológica que tornou aquela forma-sujeito em sujeito discursivo. A constitutividade ideológica, por conseguinte, fará com que este, agora, sujeito discursivo, seja também interpelado por sua memória discursiva. Na interpelação da memória discursiva, na constitutividade ideológica, instaura-se, pois, uma memória de

22 O conceito de sujeito, arrolado nesta seção da dissertação, baseia-se nas teorizações apresentadas pelo pesquisador Professor Doutor João Bôsco Cabral dos Santos, do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, em disciplina ministrada no POSLIN, na UFMG, intitulada Pêcheux e a Análise do Discurso, juntamente com a professora Ida Lucia Machado, no período de 21

sentidos referente à sua inscrição singular sincrônica naquele acontecimento discursivo em enunciação. Nesse momento, o sujeito aparece como assujeitado a uma ideologia que o antecede. Teixeira (2005) afirma que a forma-sujeito é o sujeito afetado pela ideologia.

De acordo com Santos (2014), na relação com a psicanálise lacaniana, Pêcheux reconhece que o inconsciente constitui os efeitos de sentido no discurso e que este faz parte da natureza constitutiva do sujeito. Inicia-se assim a convocação da teoria psicanalítica da subjetividade nos postulados da AD, conforme afirma Teixeira (2005).

O apelo feito à psicanálise nos estudos linguísticos objetiva permitir a inclusão "nos estudos da linguagem, daquilo que foi recalcado no ato da fundação da

linguística formal: o sujeito e o sentido" (TEIXEIRA, 2005, p. 17-18). Para a autora, o sentido do discurso é o efeito entre o sujeito, o dito e o já-dito. Destaca ainda o deslocamento da concepção de sujeito de Pêcheux, de um sujeito assujeitado, "produto de

determinações que falam em seu lugar, para um efeito-sujeito, que – dada sua condição

desejante – é inapreensível, indeterminado, sempre em produção" (2005, p. 92).

Para a teoria da Análise de Discurso, conforme afirmam Magalhães e Mariani (2010, p. 402-403), o sujeito não é unidade de uma interioridade,

falar do sujeito é falar de efeito de linguagem, sujeito enquanto um ser de linguagem que foi falado antes de falar, que traz marcas do discurso do Outro, o que implica considerar que o sujeito não é origem do dizer nem controla tudo o que diz.

É nessa perspectiva do sujeito que compartilham AD franco-brasileira e a psicanálise, abordada dentro dessa concepção de linguagem, que o sujeito

deve ser encarado como fundado pela falta, cindido pelo inconsciente, movido pelo desejo, sujeito não origem e não controlador dos sentidos. Enfim, o sujeito é uma construção sempre incompleta, efeito do dizer, um eterno devir (TAVARES, 2011, p. 197).

Temos aqui a noção de sujeito como efeito do assujeitamento à linguagem e ao inconsciente, sujeito estruturalmente clivado pelo inconsciente, em que seu dizer não é transparente ao enunciador, conforme assevera Bertoldo (2011).

Eckert-Hoff (2002) postula que o discurso mantém sempre uma relação com outros dizeres e que o sujeito se constitui na relação com o outro, na interlocução com o meio sócio-histórico e distingue duas concepções de sujeito: uma que concebe o

sujeito como uno, individual, centro da enunciação e controlador do seu dizer, e outra, que é a que adotamos nesta pesquisa, conforme já destacamos, a de sujeito incapaz de controlar os efeitos de sentido de seu dizer, considerado descentrado, cindido, sendo sua autonomia uma ilusão (CORACINI, 1999). Eckert-Hoff, inspirada por Orlandi, destaca ainda que "o sujeito se constitui pela dispersão e pela multiplicidade de discursos e, ao enunciar, o faz ocupando várias posições que marcam a heterogeneidade constituída de rede de filiações históricas e ideológicas" (2002, p. 29). Conforme desenvolvemos no capítulo de análise e destaca a pesquisadora Coracini, o discurso produz sentidos de acordo com a posição-sujeito em relação às formações ideológicas em que essas posições se inscrevem.

De acordo com Neves (2002, p. 94), postulamos o sujeito-professor participante da pesquisa como aquele sujeito "incapaz de se definir como uno, a não ser na dimensão das representações imaginárias enquanto eu (ego), na busca do desejo do outro".

Na próxima subseção, desenvolvemos as noções de intradiscurso, interdiscurso e de pré-construído, que serão retomadas de forma breve no capítulo metodológico.

2.1.2. Intradiscurso, interdiscurso e o pré-construído

No desenvolvimento de nossa tessitura teórica, destacamos a relevância das noções de interdiscurso e intradiscurso, conceitos pecheutianos fundamentais para nossa pesquisa. É entre a constituição do sentido (interdiscurso) e a formulação (intradiscurso) (ORLANDI [1999]2007), que desenvolvemos nossos gestos de interpretação dos fatos linguísticos, portanto, retomaremos esses conceitos no capítulo metodológico.

Pêcheux, ao abordar o sujeito como interpelado pela ideologia, de acordo com Eckert-Hoff (2007), aponta que o sujeito tende a se esquecer de sua interpelação ao incorporar as noções de interdiscurso e de pré-construído, que aparecem no fio do discurso (intradiscurso). O intradiscurso é a materialidade discursiva. Orlandi o define como o eixo da formulação, o dito em um momento dado, em uma condição dada. É a partir do intradiscurso que estudamos como se constroem as representações dos sujeitos-professores.

Orlandi ([1999]2007, p. 31) define que a memória tratada na relação com o discurso é concebida como interdiscurso, definido como

aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.

Eckert-Hoff ressalta que "o interdiscurso fica posto como memória discursiva do dizer, a qual é expressa no tecido sócio-histórico de traços discursivos exteriores e anteriores à produção do enunciado" (2002, p. 34). O interdiscurso é "todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos" (ORLANDI, [1999]2007, p. 33).

O conceito de pré-construído está relacionado à historicidade do sentido e se faz presente no quadro da AD já em 1969. De acordo com Teixeira (2005), a noção de pré-construído foi trazida por P. Hanry à AD. O pré-construído é o elemento que irrompe na superfície discursiva como se estivesse sempre-já-aí. Corresponde ao sempre-já- -aí da interpelação ideológica, que não só fornece, mas impõe à realidade o seu sentido sob

a forma da universalidade. Pêcheux ([1988]2014) destaca que é a partir do assujeitamento ideológico que compreenderemos o conceito de

pré-construído, tal como o redefinimos, remete simultaneamente 'àquilo que todo mundo sabe', isto é, aos conteúdos de pensamento do 'sujeito universal' suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em uma 'situação' dada, sob a forma das evidências do 'contexto situacional (PÊCHEUX, [1988]2014, p. 158-159).

Teixeira (2005) destaca que o efeito do pré-construído está na discrepância pela qual o indivíduo é interpelado como sujeito e ao mesmo tempo em que é sempre-já- -sujeito. Tendo em vista que o sentido do discurso se dá no encontro do sujeito, o dito e o

já dito, a noção de pré-construído relaciona-se à definição de intradiscurso, de

esquecimento e de interdiscurso de Pêcheux ([1975]2014).

Passemos à conceituação das noções de esquecimentos nº 1 e nº 2 de Pêcheux.

2.1.3. Esquecimentos

Os esquecimentos acompanham o sujeito na produção de seu discurso, são necessários na produção discursiva. Na análise dos dizeres dos professores participantes desta pesquisa, as noções de esquecimento são sempre consideradas, tendo em vista a intrínseca relação dessas noções com o discurso.

Pêcheux ([1990]2010) acentua que os esquecimentos nº 1 e nº 2 se diferem profundamente um do outro e que o sujeito pode penetrar conscientemente no esquecimento nº 2, retomando seu discurso, antecipando seu efeito, introduzindo o discurso de um outro. Pêcheux afirma que

na medida em que o sujeito se corrige para explicitar a si próprio o que disse, para aprofundar 'o que pensa' e formulá-lo mais adequadamente, pode-se dizer que esta zona nº 2, que é a dos processos de enunciação, se caracteriza por um funcionamento do tipo pré-consciente/consciente. Por oposição, o esquecimento nº 1, cuja zona é inacessível ao sujeito, precisamente por esta razão, aparece como constitutivo da subjetividade na língua. Desta maneira, pode-se adiantar que este recalque (tendo ao mesmo tempo como objeto o próprio processo discursivo e o interdiscurso, ao qual ele se articula por relações de contradição, de submissão ou de usurpação) é de natureza inconsciente, no sentido em que a ideologia é constitutivamente inconsciente

dela mesma (e não somente distraída, escapando incessantemente a si mesma[...] (PÊCHEUX, [1975]2010, p. 176-177) (negritos nossos).

Pêcheux e Fuchs ([1975]2010) apontam que a relação entre os esquecimentos remete à condição de existência (não subjetiva) da ilusão subjetiva e as formas de sua realização. Teixeira (2005) afirma que, ao abordar os esquecimentos, Pêcheux estava alargando a noção de interpelação e define os esquecimentos como "acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito, ou seja, o sujeito se

constitui pelo esquecimento daquilo que o determina" (TEIXEIRA, 2005, p. 48).

Para Teixeira (2005), o sujeito, afetado pelos dois tipos de esquecimento, cria uma realidade discursiva ilusória. "Embora o sujeito acredite, ilusoriamente, ser a fonte de seu discurso, ele nada mais é do que o suporte e o efeito do mesmo", afirma Eckert-Hoff (2002, p. 35).

O esquecimento nº 1, conforme Pêcheux & Fuchs ([1975]2010), é de natureza ideológica e inconsciente, o sujeito coloca-se como fonte única do sentido, tem a ilusão de ser a origem do sentido e do que diz. O sujeito tem a ilusão de que as palavras nascem dele e, por essa razão, o esquecimento aparece como constitutivo da

subjetividade e regula a relação entre o dito e o não-dito. O sujeito por,

inconscientemente, recusar tudo que está fora de sua formação discursiva, tem a ilusão de ser o dono, o criador do seu dizer, como destaca Eckert-Hoff (2002).

O esquecimento nº 2 é de natureza pré-consciente/consciente e está relacionado aos processos de enunciação, de acordo com Pêcheux & Fuchs ([1975]2010). O sujeito, ao retomar seu dizer, para formular de modo mais adequado o que pensa, emprega a operação de seleção linguística, como destaca Teixeira (2005). Eckert-Hoff (2002, p. 36) aponta que o sujeito

seleciona alguns dizeres em detrimento de outros, privilegia algumas formas e sequências discursivas e apaga outras. Em face disso, o sujeito tem a ilusão de que tudo o que diz tem apenas um significado, não percebendo que são os outros do discurso que determinam seu dizer e que ele não pode ter controle dos efeitos de sentido que seus dizeres causam.

O esquecimento nº 2 permite ao sujeito a ilusão de que o discurso reflete o conhecimento objetivo que ele tem da realidade (Teixeira, 2005). Os esquecimentos são necessários ao discurso. Finalizamos nossa exposição com a conclusão de Teixeira (2005), que destaca a associação do esquecimento nº 1 a uma zona inacessível ao sujeito, de

natureza inconsciente, ponto de articulação entre ideologia e inconsciente, e o

esquecimento nº 2 está dentro do domínio do sujeito, entre a linguística e a teoria do

discurso.

Retomaremos, na próxima subseção, a noção de acontecimento, abordada no capítulo I, com o objetivo de ampliar esse conceito.

2.1.4. Acontecimento

No capítulo I, ao desenvolvermos nossos gestos de interpretação sobre a Lei 11.161/2005, acionamos a noção de acontecimento de Pêcheux ([1988]2008) ao concebermos a referida legislação como um acontecimento discursivo singular de um arquivo. Na obra O discurso: estrutura ou acontecimento, de Michel Pêcheux, que

corresponde ao texto que foi apresentado na Conferência Marxismo e Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restrições, na Universidade de Illinois Urbana-Champaign, de 8

a 12 de julho de 1983, o autor propôs uma forma de reflexão sobre a linguagem – que aceita o desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito. Pêcheux

exerceu, com sofisticação e esmero, a arte de refletir nos entremeios, conforme destaca Orlandi.

Pêcheux busca uma compreensão de seu objeto teórico – o discurso –, considerando tanto sua estrutura quanto o acontecimento que lhe dá origem; trata a relação entre os universos logicamente estabilizados, em que não são possíveis as derivas de sentido. Analisa como se relacionam a descrição e a interpretação, além de desenvolver três noções absolutamente relevantes para a Análise de Discurso, o acontecimento, a estrutura e a tensão existente entre a descrição e a interpretação.

Na introdução da obra em discussão, o termo acontecimento histórico e discursivo é um dos principais conceitos abordados por Pêcheux. O filósofo inicia seu trajeto por caminhos diferentes para refletir sobre o discurso como estrutura e como acontecimento. O primeiro caminho consiste no trabalho a partir do enunciado “On a gagné”, tomá-lo como tema e trabalhar como um acontecimento histórico – a eleição presidencial – dará origem ao acontecimento discursivo.

Pêcheux ([1998]2008) aborda o acontecimento como um discurso que rompe com a estrutura vigente e instaura outros sentidos a partir dele, discurso que rompe com os já-ditos no interdiscurso, ponto de encontro de uma atualidade e uma memória (2008, p. 17). O pesquisador Santos23, baseando-se nessa mesma obra de Pêcheux, arrola a noção de acontecimento como um elemento histórico descontínuo e exterior. O acontecimento afeta a memória produzindo ruptura e deslocamento, como desconfiguração e desestabilização de séries de repetição, dando lugar a outras interpretações. Essa noção é entendida como lugar material em que o real da língua e o real da história se encontram, provocando uma ruptura, uma irrupção e uma emergência nas

relações de continuidade definidas pelos rituais enunciativos que conformam as práticas discursivas na sua historicidade. No acontecimento, pelo funcionamento da memória, os sentidos produzidos ao mesmo tempo repetem e deslocam o já-dito, gerando uma projeção e um retorno dos processos discursivos sobre si mesmo.

Ao concebermos a Lei 11.161/2005 como um acontecimento discursivo singular de um arquivo que define qual idioma (espanhol) deve ser obrigatoriamente ofertado no ensino médio e mobiliza relações de poder inerentes ao espaço escolar,

23 A noção de acontecimento desenvolvida nesta seção da dissertação baseia-se nas teorizações apresentadas pelo pesquisador Professor Doutor João Bôsco Cabral dos Santos, do Programa de Pós- graduação em Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, em disciplina ministrada na UFMG no POSLIN, intitulada Pêcheux e a Análise do Discurso, juntamente com a professora Ida Lucia Machado, no

entendemos que, na materialidade de seu discurso, produz uma ruptura, uma irrupção na

historicidade. Além disso essa legislação objetiva assegurar, nas práticas, a constituição de um poder e, ao se transformar ao longo da história, possibilitou o surgimento de outros discursos que ecoaram uma explosão de sentidos.

2.1.5. Heterogeneidade enunciativa: atravessamento de outras

vozes

Na terceira fase da Teoria do Discurso, Pêcheux abre espaço na direção da heterogeneidade do campo enunciativo e estabelece relações com a noção de heterogeneidade enunciativa nas não-coincidências do dizer e sua representação metaenunciativa de Authier-Revuz (1998). A colaboração entre os teóricos inicia-se