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Ataque ao ideal da determinabilidade do sentido

Capítulo II – O estatuto da filosofia nas Investigações Filosóficas

2.2 Formas de vida (Lebensform):

2.2.1 Ataque ao ideal da determinabilidade do sentido

Nas Investigações Wittgenstein rejeita as hipóteses subjacentes à exigência da determinabilidade, cuja origem remonta a Gotlob Frege. Frege foi antes de tudo um matemático, e seus trabalhos em lógica resultaram de seu esforço para prover uma fundamentação da aritmética que trouxesse um completo rigor para suas definições e demonstrações. Frege começou construindo uma linguagem formalizada que se pretendia isenta das ambigüidades e imperfeições da linguagem ordinária, capaz de representar precisamente conteúdo conceitual de enunciados e dotada de regras definidas para a realização de inferências dedutivas. Frege postulara que um conceito deve possuir limites bem definidos, i.e., que sua definição deve determinar de forma não ambígua, para qualquer objeto, se ele cai ou não sob o conceito. Um conceito sem uma definição precisa não é um conceito genuíno. Uma das motivações por detrás dessa idéia é o princípio de bivalência.

Toda sentença deve ser determinadamente verdadeira ou falsa. Outra motivação seria o fato de que Frege trata os conceitos como funções, sendo uma função matemática definida somente se o seu valor é estipulado de forma inequívoca para cada argumento. A bivalência e a bipolaridade são traços opcionais da linguagem.

O filósofo evita, desta forma, tratar da questão da forma proposicional geral (allgemeine Satzform) defendida no Tractatus. Em sua fase inicial, a filosofia de Wittgenstein busca determinar a natureza da representação e daquilo que é representado, o mundo. E o faz estabelecendo a essência da proposição, que varia em função de suas formas

lógicas, que podem ser descobertas pela aplicação da lógica. Entretanto, essas proposições possuem algo em comum, que pode ser determinado a priori. A forma proposicional geral é a essência das proposições e é determinada a priori. Para que uma proposição seja considerada como tal, esta deve possuir a forma proposicional geral. O fato de que podemos aprender outros idiomas também é uma característica da existência da forma proposicional geral, que subjaz e unifica todas as línguas. Vários tipos de proposição se diferenciam quanto a suas formas lógicas, que devem ser descobertas pela aplicação da lógica.

Entretanto, tais formas possíveis possuem algo em comum que, como vimos, é uma noção problemática do Tractatus. A forma proposicional geral é a essência da proposição, as condições necessárias e suficientes para que algo seja uma proposição em qualquer notação.

Na filosofia descrita no Tractatus,

O termo linguagem designa um conjunto de elementos – nomes, proposições – que, combinados entre si de uma determinada maneira, têm uma significação, possuem vida; (e todas essas vidas, ou seja) todos os elementos da linguagem representam algo. (MORENO, 2000, p. 14).

No Tractatus a linguagem não se caracteriza por um conjunto de elementos materiais, mas sim por um conjunto de funções: é possível atribuirmos aos mais diversos elementos materiais o conjunto de funções características da linguagem. A linguagem é um conjunto de funções características por sua natureza lógica. (Idem, p. 15-6).

A forma proposicional geral seria a garantia de veracidade dessas funções, um estatuto a priori que garante a correspondência fiel entre a imagem e um fato, e que validaria a teoria da afiguração.

Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, – mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de ‘linguagens’. (PU, § 65).

Não existe uma essência subjacente na linguagem. Nas Investigações a forma proposicional geral perde seu estatuto necessário a toda linguagem e cede espaço para uma linguagem multifacetada e por isso mais complexa de ser descrita por alguma forma geral, que varia de acordo com o uso que lhe é empregado. O caráter atomístico das palavras deixa de existir devido ao aspecto em que a significação das palavras emana do jogo de linguagem que é utilizado. E a consistência dessa linguagem múltipla consiste justamente em sua multiplicidade.

E a robustez do fio não está no fato de que uma fibra o percorre em toda sua longitude, mas sim em que muitas fibras estão traçadas umas com as outras. (PU, § 67).

É evidente que nesta linguagem que possui múltiplos aspectos torna-se muito difícil traçar limites ou definições como desejava Frege. Mesmo que um limite pudesse ser traçado, este limite seria impreciso e impróprio para todos os aspectos da linguagem.

Supondo que fosse possível, este limite seria adequado apenas a uma das fibras do fio, e sabemos que a corda lingüística é composta de vários fios, assim como as cidades são compostas de várias ruas.

Não conhecemos os limites, porque nenhum está traçado. (PU, § 69).

Um limite ou uma régua que possa demarcar este limite é improvável no âmbito das Investigações, isto porque tal limite apenas poderia ser traçado com base no significado de uma expressão, entretanto, este significado é posterior à identificação do uso que será apenas reconhecido após o reconhecimento do jogo de linguagem específico. Assim, o limite que neste caso implica na determinação de um sentido não é uma possibilidade.

Se alguém estabelecesse um limite rígido, não poderia reconhecê-lo como sendo aquele que eu sempre desejara estabelecer ou havia estabelecido mentalmente. (PU, § 76).

A vagueza é uma característica essencial da linguagem. As descrições lingüísticas são em sua maioria inexatas, imprecisas. O conceito de mais claro e mais escuro é um bom exemplo, não se pode determinar com exatidão quais são os limites das tonalidades de cores. E assim definir entre três cores amostradas qual delas é a mais clara e qual outra é a mais escura, mesmo porque seria necessário recorrer a outras referências para determinar o que é escuro e o que é mais escuro. A linguagem, por assim dizer, opera sobre limites inexatos. Não há um sentido previamente determinado.

Ora, ‘inexato’ não significa ‘inútil’. (...) ‘Inexato’ é propriamente uma repreensão e ‘exato’ um elogio.

Um ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que devemos nos representar por isso – a menos que você mesmo estabeleça o que deve ser assim chamado. Mas ser-lhe-á difícil encontrar tal determinação; uma que o satisfaça. (PU, § 88).

Nas Investigações, Wittgenstein critica a idéia presente no Tractatus de que a “a forma proposicional geral é: as coisas estão assim. (Es verhält sich so und so).” Esta fórmula indica que as proposições precisam ser logicamente articuladas (compostas de função e argumento); precisam afigurar um estado de coisas possível, isto é, precisam ser, além disso, também descritivas. Agora ele considera que

[...] a proposição: ‘Isto está assim’ – como posso dizer que esta é a forma geral da proposição? – Antes de tudo, ela própria é uma proposição, uma proposição da língua portuguesa, pois tem sujeito e predicado. (PU, §134).

A fórmula em si é uma proposição, ou seja, uma variável proposicional, pode ser substituída. Para encontrarmos uma essência subjacente à linguagem não podemos utilizar a linguagem como instrumento para esta empreitada. Se houver uma essência da linguagem esta essência transcende a linguagem. Como a lógica atomista do Tractatus foi refutada como sendo ineficiente, quando utilizamos as proposições não temos como saber se estamos utilizando a proposição certa. Os jogos de linguagem não podem determinar uma essência, apenas um uso. “A linguagem não pode ser apenas um objeto de análise, pois é, ao mesmo tempo, sempre seu meio. É possível filosofar sobre a percepção com os olhos fechados, mas é impossível saber o que é a linguagem sem dizer nada.” (WOLFF, 1999, Introdução). Para determinar uma essência da linguagem seria necessário buscar outros meios metalingüísticos, e assim não diríamos nada, mas não dizendo nada não podemos dizer o que é a linguagem.

2.2.2 A natureza da filosofia, a busca da lógica por uma linguagem ideal

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