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COMO PODERÍAMOS EXPLICAR algumas dessas diferenças entre as psicoses? Se na paranoia e na

esquizofrenia existe a ideia de sofrer uma ação que vem de fora, por que essa influência pode literalmente penetrar na pessoa, no caso da esquizofrenia, retirando-lhe o pensamento e o corpo? O deprimido pode nos dizer que anda e come como se fosse outra pessoa a fazê-lo, e se sente desligado de seus atos, mas na esquizofrenia pode haver a ideia de que o indivíduo é efetivamente levado a fazer essas coisas. Essa é uma diferença crucial. As ações, assim como os sentimentos e os pensamentos, podem ser produzidas de fora para dentro, em vez de apenas vivenciadas como distantes.

O que, em primeiro lugar, age sobre nós de fora para dentro? Quando bebês, são os que cuidam de nós, aqueles em cujo discurso nascemos. Dependemos deles quase totalmente, e nossa própria subjetividade tende a ser afirmada e formada através de atos de recusa. Quando dizemos não a que eles nos alimentem, por exemplo, mostramos ser diferentes deles, mostramos não ser simplesmente suas marionetes. Se podemos fazer isso através da ação, também podemos fazê-lo através da fala, mas isso se complica pelo fato de que a fala, no início, vem deles. Aprendemos as palavras através deles, e, se admitirmos que o pensamento depende de estruturas verbais, nosso pensamento, em certo nível, também deriva deles.

Como afirmou Freud numa discussão, depois de Viktor Tausk apresentar um artigo sobre a ideia da influência externa na esquizofrenia, “a concepção do bebê de que os outros conhecem seus pensamentos tem sua fonte no processo de aprendizagem da fala. Tendo obtido de terceiros a linguagem, o bebê também recebeu pensamentos deles; e assim o sentimento da criança de que os outros conhecem seus pensamentos, bem como de que os outros ‘fizeram’ a linguagem para ela, e, junto com esta, os seus pensamentos, tem certa base na realidade.”1

Como disse uma esquizofrênica, quando ela era mais jovem, o pai sabia ler seus pensamentos e os havia retirado dela, com toda razão.2

Jean Piaget também observou que, como os adultos, aos olhos das crianças, parecem saber muito mais do que elas e ter uma habilidade verbal muito maior, elas podem supor que a gente grande também conhece seus pensamentos.3 Isso é reforçado pelo fato de que os adultos

procuram igualmente compreendê-las e prever suas ideias e desejos. O momento-chave, portanto, ocorre quando a criança se dá conta de que o adulto não conhece seus pensamentos, e isso se reflete na relação das crianças com a verdade. Se elas podem contar mentiras, isso significa que não estão sob o controle dos pais: criam um espaço que é unicamente seu, e é por isso que a maioria delas atravessa uma fase de brincar com a verdade. Podem omiti-la, retardá-la ou contradizê-la francamente. Por meio desse processo, o domínio dos responsáveis

sobre os pensamentos da criança se enfraquece, quando não é simplesmente impedido.

Na esquizofrenia, entretanto, essa dominação nem sempre é rompida, o que pode afetar o corpo e a mente. A pessoa pode ter a sensação de ser enganada, hipnotizada, invadida, manipulada e privada de sua vontade. Enquanto o paranoico dispõe de um limite de seu corpo e de seus pensamentos, o esquizofrênico pode sentir-se submetido a uma força externa que o controla e que pode abandoná-lo a qualquer momento. Fica na situação de um objeto usado por um Outro poderoso, talvez com a ideia de ser um joguete passivo dele, tema que raramente encontramos na paranoia. Como observou Kraepelin, na paranoia não existe a ideia de uma abolição da vontade.

Essa aparente ausência de vontade, entretanto, está ligada à questão da linguagem. Na esquizofrenia, existe uma permeabilidade à linguagem, como se as palavras e imagens surtissem um efeito direto. Alguns sujeitos esquizofrênicos obedecem a qualquer ordem ou sugestão que venha de fora, e essa é uma das razões por que é tão comum parecer que eles tiveram uma infância feliz e sem maiores incidentes. O fato de fazerem tudo o que lhes ordenam, numa obediência contínua e passiva, elimina os dramas que tendem a pontuar a infância de outras pessoas. Um paciente de Arieti costumava parar, quando estava andando, toda vez que via uma luz vermelha, e quando via uma seta seguia a direção indicada. Quando não via nenhum sinal, ficava imobilizado. 4

A obediência, nesse caso, não tem nenhum dos conflitos que poderíamos esperar: ressentimento, protesto ou vergonha. Em vez disso, as palavras são seguidas como instruções: a pessoa pode fazer ioga porque uma revista o recomendou, casar-se porque os amigos assim a aconselharam ou procurar um terapeuta porque alguém lhe sugeriu essa ideia. Como assinalou Serge Leclaire, é como se as setas de um carro dissessem ao motorista para onde ir, em vez de indicarem o que ele vai fazer.5 Um rapaz me disse que havia esfaqueado um professor da

escola simplesmente porque outro garoto lhe pedira que o fizesse. Não alimentava nenhuma hostilidade especial contra esse professor, mas, ao ouvir a ordem do outro menino, era como se não tivesse outra alternativa senão obedecer. Ao atacar sua vítima, sentira-se como uma máquina, sem emoção nem sentimento.

Essa permeabilidade pode funcionar em diversos níveis. Andy Warhol explicava sua tez peculiar como uma perda de pigmentação: “Vi andando na rua uma moça que era bicolor, e fiquei tão fascinado que continuei a segui-la. Dois meses depois, eu próprio também tinha duas cores. E sequer havia conhecido a moça – ela era apenas alguém que vi na rua. Perguntei a um estudante de medicina se ele achava que eu havia pegado aquilo simplesmente por olhar para ela.”6 Há algo de direto nisso, como se uma coisa pudesse simplesmente causar a outra, o

que talvez encontre eco nas concepções populares da doença: a pessoa tem tal problema em função de tal causa. A rede complexa de fatores predisponentes, condições e causas precipitantes é apagada.

Também observamos essa permeabilidade nos casos de folie à deux, nos quais duas pessoas parecem compartilhar o mesmo sistema delirante. Houve época em que os psiquiatras se intrigavam com esse fenômeno e separavam os dois sujeitos, para ver se o delírio persistia. Muitas vezes se constatava que, uma vez separados, um deles percebia o “erro” a que fora levado pelo parceiro dominante. Com igual frequência, porém, era possível observar que o reconhecimento do erro substituía o delírio “equivocado” com uma rapidez suspeita: na

verdade, a permeabilidade da pessoa não se alterava, embora o delírio houvesse mudado. Ela passava a acreditar numa outra pessoa, que lhe dizia que ela estivera iludida. Portanto, a cura – reconhecer o absurdo do delírio e abandoná-lo – pode ser o próprio sinal da loucura.7

Mas por que essa permeabilidade à linguagem? Embora todos sejamos moldados e orientados, até certo ponto, pelos discursos em meio aos quais nascemos, a falta de mediação na esquizofrenia é notável. Há quem descreva uma força externa que penetraria diretamente no sujeito. Quando esta provém, antes de mais nada, de um dos pais, isso sugere que a criança permaneceu grudada às ideias e palavras desse indivíduo, sem conseguir separar-se delas. Essa apropriação também ocorre no nível do corpo. Anna Freud observou que o corpo do bebê, no início da vida, é objeto de outra pessoa.8 O responsável por ele detém um poder absoluto sobre

esse corpo, ao cuidar dele e lhe dar atenção. Há processos externos e internos que se ligam a esse Outro. A sensação de fome, por exemplo, é inseparável da vontade do cuidador: se sentimos fome, não é apenas por não nos termos alimentado, mas porque o Outro não nos alimentou. A maioria das sensações internas liga-se de forma similar ao cuidador, como se ele tivesse o poder de responder. Assim, o Outro fica intimamente vinculado ao nosso corpo real, tanto interno quanto externo, de modo que o que acontece em seu interior depende dessa pessoa. Esse fato deve ter importância especial na esquizofrenia, em função não apenas das sensações corporais bizarras que constatamos nela, mas também da atribuição dessas sensações a influências externas. Afinal, é somente na esquizofrenia que encontramos distúrbios da volição, como se a nossa vida íntima – nossos pensamentos e nosso corpo – não nos pertencesse, o que é um dado ausente na paranoia.

Se o simbólico não separou o filho e sua mãe, este permanece incluído nela. Como disse um paciente, “olho para meus braços e eles não são meus. Eles se mexem sem minha orientação. Uma outra pessoa os mexe. Todos os meus membros e os meus pensamentos estão presos a cordas, e essas cordas são puxadas por outras pessoas.”9 Aqui, o Outro está presente dentro do

sujeito, que pode fazer o melhor possível para forçá-lo a sair, através da automutilação ou, em alguns casos, do suicídio. Como observou Gisela Pankow, esses suicídios mostram menos uma tentativa de matar a si mesmo do que de matar alguma coisa dentro de si. 10

Esses casos nos mostram que o sujeito permaneceu demasiadamente ligado ao Outro, incapaz de estabelecer fronteiras adequadas. A simbiose, aqui, não é simplesmente com o corpo de outra pessoa, mas também, como assinalou Lacan, com os significantes provenientes do Outro, com as ideias, o discurso e a fala dele. É por isso que muitas vezes nos impressionamos com narrativas idênticas numa família: tanto os pais quanto o filho descrevem a história familiar, ou algum fato dela, exatamente da mesma maneira, como se um único discurso tivesse sido engolido por inteiro. Há uma espécie de ventriloquia de uma geração para outra.

Piera Aulagnier descreveu o caso de Jeanine, uma esquizofrênica que estava catatônica quando a psicanalista começou a trabalhar com ela num contexto hospitalar. Pouco a pouco, Jeanine conseguiu falar de sua vida, mas suas palavras pareciam espelhar as de sua mãe com exatidão. A versão que ela deu de sua criação foi perfeitamente igual à descrição materna, tendo atribuído aos acontecimentos a mesma significação que a mãe lhes dera. A mãe tinha sido muito boa, trabalhando abnegadamente pelos filhos, e Jeanine tinha sido uma boa menina, alegre, sem nenhum grande problema até sua hospitalização, muitos anos depois.

À medida que começou a se lembrar de mais detalhes da infância, Jeanine descreveu que a mãe costumava fechá-la com a irmã dentro de um armário, para protegê-las da possibilidade de um encontro com o pai, que tinha sido banido de casa. Lembrou-se também de que, durante anos, ela e a irmã haviam passado várias horas amarradas pela mãe à mesa da sala de jantar, para serem protegidas dos alfinetes que ela usava em seu trabalho de costureira. Jeanine descreveu essa cena sem qualquer emoção, e quando Aulagnier lhe sugeriu que aquilo devia ter sido doloroso, respondeu com convicção que fora necessário para protegê-las.

É claro que, em certo nível, isso era verdade. Amarrar as filhas aos pés de uma mesa realmente as protegeria de se machucarem com as muitas agulhas e alfinetes que havia por perto. No entanto, a ideia de que, ao longo dos anos, a mãe pudesse ter encontrado outra solução não ocorreu a Jeanine. Ela não conseguia questionar o significado dessas cenas da infância, mas, em sua psicose, atribuía aos perseguidores a intenção de amarrá-la à sua cama e então matá-la. A televisão falava com Jeanine, em especial as cenas de violência que envolviam alguém sendo imobilizado. Ao ver a imagem de um explorador amarrado a uma árvore, prestes a ser escalpelado, ela a interpretou como uma mensagem de que teria o mesmo destino. Seus médicos, disse, queriam “imobilizar meu corpo e meus pensamentos, para poder me impor esse castigo”.

Ligar isso às cenas infantis produziu um alívio instantâneo em Jeanine, mas ele durou estritamente apenas o tempo da sessão, o que mostrou que a significação que Aulagnier tentara transmitir-lhe não pôde ser integrada em seu psiquismo, retornando, em vez disso, sob a forma de suas ideias delirantes. Aqui, a marca da psicose não é apenas essa ideia inassimilável, mas a concordância com o discurso materno. O fato de Jeanine não ser capaz nem mesmo de pensar em questionar a versão dos acontecimentos de sua infância dada pela mãe mostra uma simbiose, não com o corpo físico da mãe, mas com sua fala e suas ideias.11

A RELAÇÃO COM A LINGUAGEM tem sido estudada com frequência na psicose, e podemos

novamente contrastar a paranoia com a esquizofrenia. A condensação cristalizada do sentido que encontramos na paranoia é muito diferente da polissemia, da abundância de significações encontradas na esquizofrenia. Os sujeitos esquizofrênicos certamente estabelecem ligações para produzir sentido, para tentar explicar o que acontece com seu corpo ou compreender as vozes que ouvem, mas muitas vezes esses esforços são insuficientes. Quando a significação estabelecida pelo complexo de Édipo está ausente, a pessoa fica à mercê de um excesso de significações, o que às vezes pode resultar numa grande habilidade literária e poética, porém em muitos casos faz a pessoa sentir-se sobrecarregada e invadida pelas significações. É como se as tarraxas que ligam o significante ao significado se soltassem e a pessoa não conseguisse tornar a prendê-las mediante a construção de um delírio.

Infelizmente, na psiquiatria da corrente dominante, grande parte das pesquisas sobre a linguagem e a psicose envolveu experimentos que infantilizam os sujeitos e interpretam mal as questões fundamentais. Pede-se a pessoas com diagnóstico de psicose que definam termos como “mesa” ou “cadeira”, ou que disponham palavras em grupos, ou definam provérbios. Como talvez não seja de admirar, esses testes mostram alguma falha ou deficiência no sujeito psicótico, mas o absurdo intrínseco dessa tarefa parece haver escapado à maioria dos pesquisadores. Afinal, o que significaria o sujeito ser solicit ado pelo experimentador a definir

Notas

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