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A linguagem verbal na Filosofia

CAPÍTULO 2 – A FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA, SEUS

2.3 A linguagem verbal na Filosofia

Pensar a Filosofia no Brasil é entendê-la a partir de um paradigma no qual para filosofar é preciso expressar-se de forma linguística, especialmente através do

comentário de filósofo. Para o Ocidente, local do qual vieram os colonizadores do

Brasil, a linguagem verbal carrega um peso muito grande.

Durante o período colonial, a linguagem verbal foi um importante mecanismo de dominação. As formas de manipulação da linguagem permitiram em grande parte a colonização, através, por exemplo, da exclusão dos nativos no diálogo, permitindo ao colonizador que descrevesse o nativo e montasse o ideário do outro a partir unicamente de seu ponto de vista, de modo que não havia como o indígena participar da construção de sua imagem. Uma vez que a estrutura da linguagem influencia processos semânticos, a imposição de uma língua, como a realizada na colonização brasileira, traz em seu bojo a imposição de uma ideologia, uma religião e costumes próprios. Além do que, a imposição da língua determina quem tem direito à fala.

Os diferentes valores que indígenas e portugueses atribuíam à linguagem também tiveram algum papel na colonização. Enquanto os primeiros faziam suas negociações na base da troca, os últimos as fundamentavam no uso da linguagem escrita, utilizando, por exemplo, contratos. Valores culturais também influenciaram o desenvolvimento dos processos de dominação, uma vez que entre os ameríndios havia uma cultura de paz que propiciou em certa medida a invasão europeia.

Como ressalta Viveiros de Castro (2002, p. 201), devido à sua mitologia, os Tupinambás viam os europeus como ―personagens sobrenaturalmente poderosos". Comentando Viveiros de Castro, Margutti (2013, p. 184) destaca que ―A mitologia dos indígenas profetizava a chegada pelo oceano de um homem que lhes ensinaria o caminho para a Terra sem mal. Por esse motivo, eles receberam os portugueses de braços abertos‖. Nessa perspectiva apontado por Viveiros de Castro, os Tupinambás assimilaram os europeus aos karaíbas, os xamãs tupinambás, isto é, os jesuítas eram vistos como divindades retornando da Terra sem mal. Embora esse ponto seja polêmico, por possibilitar uma visão do indígena como inocente diante dos portugueses, acreditamos que de qualquer maneira aponta para as diferenças culturais entre a cultura europeia e a indígena. A visão do indígena como frágil vem sendo paulatinamente descontruída, especialmente com o aumento do número de indígenas participando ativamente e deixando a posição de objeto dos antropólogos no diálogo sobre si mesmos.

Viveiros de Castro (1996, p. 116) fornece ainda mais elementos para entender a diferenciação entre europeus e ameríndios, destacando ―[...] a expressão

―multinaturalismo‖ para designar um dos traços contrastivos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias ―multiculturalistas‖ modernas‖:

[...] enquanto estas se apóiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas — a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e dos significados —, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A ―cultura‖ ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a ―natureza‖ ou o objeto a forma do particular. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 116)

O multinaturalismo traz uma inversão na forma de compreender o corpo no Ocidente: ―[...] o xamanismo indígena é organizado em torno da ideia de metamorfose

corporal, em oposição à ideia ocidental de possessão espiritual‖ (MARGUTTI, 2013, p. 187):

Essa última (possessão espiritual) envolve uma mudança espiritual sobre uma mesma base corporal. A metamorfose corporal envolve uma mudança corporal sobre uma mesma base espiritual. Para os indígenas, a possibilidade de trocar de corpo está sempre presente. Um homem pode transformar-se numa onça e comportar-se como ela. Em consequência, os índios se comunicam no plano metafísico e se separam no plano físico, uma vez que tudo é espírito. Essa concepção é diferente daquela dos ocidentais, que se comunicam no plano físico, considerado comum a todos, e se separam no metafísico, considerado o plano da diferença. Em coerência com isso os indígenas localizam a linguagem no nível corporal, enquanto os ocidentais a localizam no nível espiritual. [...] Uma boa ilustração disso está nas atitudes diferentes tomadas pelos espanhóis e pelos índios das Antilhas quando se encontraram pela primeira vez. Os primeiros enviaram comissões de teólogos para saber se os índios tinham alma e poderiam ser convertidos. Os índios, por seu lado, imergiam na água os cadáveres dos espanhóis mortos em batalha para verificar se apodreciam ou não: queriam saber se não eram fantasmas. (MARGUTTI, 2013, p. 187, parênteses nosso)

Nesse sentido, o corpo teria um importante papel no pensamento ameríndio como ressalta Noguera (2015, p. 43):

A partir das etnografias amazônicas o antropólogo brasileiro define a perspectividade como capacidade de vestir um ponto de vista, ocupar um olhar. O corpo aqui está investido da capacidade de imprimir interpretações ao mundo, não é a cultura que estabelece pontos de vista porque, em termos multinaturalistas, ela é única. Ou seja, a realidade é monocultural. O que modifica cada interpretação e produz as mudanças no mundo são os corpos. Cada corpo se alimenta de uma maneira, alguns são gregários, outros solitários, o grau de movimentação, comunicação, a freqüência do sono, a participação em festas e banquetes tudo isso interfere, modifica e recria perspectivas. O corpo aqui ―não é uma fisiologia distinta ou uma anatomia característica; é um conjunto de maneiras e modos de ser que constituem um habitus, um ethos‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2009, p. 40). [...] a perspectividade descrita por Viveiros de Castro diz respeito à capacidade de partir da mesma cultura, da mesma cosmovisão usando as especificidades do próprio corpo que interpreta, o seu modo de estar vivo.

O corpo representa, do ponto de vista multinaturalista, um importante papel na compreensão do pensamento, pois é ele que fornece uma perspectiva contextualizada. Nessa perspectiva, o corpo não pode ser subjugado à supremacia da linguagem. Um gesto pode dizer muito. O que um gesto pode fornecer, o mundo da proposição pode não dar conta, apesar de seu papel relevante em alguns contextos.

O corpo é, ainda, a partir da ótica de algumas etnias indígenas ―uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento‖ (VELTHEM, 2003, p. 63), pois revela estados de ser do sujeito através da pintura e de adornos (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 44) e, também, proporciona mudanças sociais, como aponta Viveiros de Castro (1987, p. 40- 41, parênteses nosso) acerca da etnia Yawalapíti:

As mudanças corporais assim produzidas (por meio de fluidos corporais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais) são a causa e o instrumento de transformações em termos de identidade social. Isso significa que não é possível uma distinção ontológica - tal como o fazemos - entre processos fisiológicos e processos sociológicos, ao nível do indivíduo. [...] transformações do corpo e da posição social são uma e a mesma coisa. Desta forma, a natureza humana é literalmente fabricada, modelada, pela cultura. [...] A metamorfose [...] transforma os homens em animais ou espíritos. Ela é concebida como uma modificação de essência, que se manifesta desde o nível da gestualidade até, no limite, o nível da mudança de forma corporal.

Em outras palavras, a mudança corporal efetivada através do uso de adornos ou da pintura corporal, ou ainda da transformação corporal por meio de escarificação ou inserção de piercings/alargadores, transforma o sujeito e não apenas sua aparência. Assim, o corpo apresenta grande parte do pensamento de uma etnia ou do pensamento de um sujeito, algo que a palavra pode encontrar dificuldade para expressar.

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) escreveu assiduamente sobre o papel da linguagem, tendo, ao longo de sua vida, uma reviravolta em seu pensamento sobre a natureza da existência humana. Em seu primeiro livro, o Tractatus

Logico‐Philosophicus, Wittgenstein ( 1994, p. 165) compreende a linguagem como um

ponto central em nosso entendimento do mundo: ―O pensamento é a proposição dotada de sentido. A totalidade das proposições é a linguagem‖. Em outro aforismo, o autor (WITTGENSTEIN, 1994, p. 131) destaca que ―Poder‐se‐ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode dizer, pode‐se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve‐se calar‖. Assim, em seu primeiro livro, Wittgenstein procura traçar um limite para a expressão de pensamentos através da linguagem, de forma que esta última delineia os limites do mundo.

Entretanto, um gesto fez Wittgenstein reformular a sua teoria que foi publicada posteriormente em seu segundo livro Investigações Filosóficas. Numa conversa com seu interlocutor Piero Sraffa, um economista italiano a quem Wittgenstein atribui a existência de seu segundo livro, o autor recebe um gesto que lhe obriga a repensar sua teoria do Tratactus. Sraffa lhe faz o gesto de roçar o queixo com os dedos, conhecido como o ―gesto napolitano do desacato‖, enquanto lhe pergunta: ―Qual a forma lógica disso?‖. Sobre esse acontecimento, Scarborough (2015, n.p., tradução nossa) explica:

[...] é geralmente aceito que o gesto encapsula tudo – seguido da pergunta a Wittgenstein feita por Sraffa: "Qual é a forma lógica disso?"

Sraffa não precisava ter roçado o queixo com os dedos. Poderia ter sido um soco. "Qual é a forma lógica disso?". Ou um abraço. [...] A visita do presidente Kennedy à Berlim Ocidental, podemos supor, era um gesto. A bomba sob Mururoa. A independência do Timor Leste. A destruição das Torres Gêmeas. Em seu sentido mais amplo, estes são todos gestos. São ações, ou seja, realizados para expressar um sentimento ou intenção.

Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein formula uma teoria da linguagem bem diferente da primeira e que teve grande influência no pensamento contemporâneo. O autor constrói a ideia dos jogos de linguagem para entender os processos significativos. O ―jogo de linguagem‖ corresponde ―ao conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada‖ (WITTGENSTEIN, 1999, p. 30). Nesse sentido, as palavras não designam algo objetivamente, mas designam algo apenas através de seu uso. Para ele, ―[...] o que nos confunde é a uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa. Pois seu emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando filosofamos‖ (WITTGENSTEIN, 1999, p. 31).

Devido a variabilidade de significados que o uso confere às palavras, o contexto em que elas são expressas se mostra importante. ―O termo ―jogo de linguagem‖ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida‖ (WITTGENSTEIN, 1999, p. 35). Por exemplo, comandar, relatar ou conjecturar sobre um acontecimento, defender uma tese, inventar uma história, contar uma piada, representar, cantar, contar um segredo, pedir algo, solicitar socorro, agradecer, maldizer, orar, entre outros. Assim, ―[...] a significação de uma palavra é seu uso na linguagem‖ (WITTGENSTEIN, 1999, p. 43). Desse modo, mesmo o uso da linguagem perde seu sentido sem o contexto em que ela emerge e, por isso, Wittgenstein aponta para as limitações da linguagem escrita na expressão de pensamentos.

Como aponta Scarborough na observação supracitada, um gesto pode expressar muito. Ele (SCARBOROUGH, 2015, n.p., tradução nossa) destaca ainda um outro acontecido dos anais da história da Filosofia:

Quando o médico de Kant o chamou em seus últimos dias, o Kant doente, com alguma dificuldade, levantou-se para recebê-lo, e não se permitiu-se sentar de novo até que o médico tivesse tomado seu lugar.

[...] o sinal de uma vida que ligou o pessoal com o universal. Ou seja, era um gesto que revelou o imperativo categórico – um gesto tão amplo como o mundo, e não apenas para seu próprio bem – na verdade, até mesmo às suas próprias custas. Para Kant, também, gestos encarnam uma ética, que transcendia, interesses paroquiais pessoais mais estreitos.

Em outras palavras, assim como Sraffa, Kant apresentou um gesto que combina ação e significado de modo que parece não poder ser expresso meramente pela linguagem verbal. Talvez uma explicação linguística não fosse suficiente para expressar o ―imperativo categórico kantiano‖ tão fortemente quanto o gesto supracitado de Kant. Desenvolvemos cotidianamente um repertório de gestos que poderia propiciar a construção de uma ética que direciona nossa comunicação (SCARBOROUGH, 2015, n.p.).

Existem diferentes formas de comunicar e expressar pensamentos, entretanto, no Ocidente, a linguagem verbal ganhou destaque. Na Filosofia, a linguagem verbal é entendida como a única forma de filosofar, de modo que a tarefa do filósofo seria a de ler e escrever textos.

Em resumo, neste capítulo, procuramos apontar para as limitações de se restringir a comunicação e a Filosofia à linguagem verbal. Caracterizamos a Filosofia no Brasil para mostrar o empobrecimento que um filosofar restrito ao comentário de

filósofos pode acarretar. Levando em consideração as limitações que apontamos da

linguagem verbal na elucidação de pensamentos, pretendemos analisar outras formas de expressão do pensamento, além da linguística. Argumentaremos que corpo, gesto e pensamento estão intrinsecamente conectados, não apenas como veículo de expressão, uma vez que se constituem a partir de hábitos estáveis. Acreditamos que a Filosofia não se encontra restrita a um único sistema de hábitos, nem a uma nacionalidade. Incorporando o paradigma da complexidade, a nossa proposta, que será elucidada no próximo capítulo, é que o filosofar não pertence a uma pátria nem corresponde a um modo único de expressá-lo, mas a diversidade pode indicar modos de renovação e fortalecimento.

CAPÍTULO 3 - É POSSÍVEL UMA FILOSOFIA ALÉM DA ESFERA

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