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CAPÍTULO 4: “É PRECISO TER MANHA, É PRECISO TER GRAÇA, É

4.2 Jovens de Alto Novo egressos do ensino superior: os projetos foram/estão sendo

4.3.1 Lis e o grito de liberdade: um projeto de ruptura

194 Ao fazer um balanço dos momentos em que estive com Lis durante conversas e entrevistas que realizei, me dão a impressão de um movimento circular, onde sempre caíamos no mesmo tema: a família e a dominação que esta exerce sobre sua vida. Independente do assunto sobre o qual conversássemos, a jovem “pulava” para a direção do seu maior projeto: a liberdade, cuja busca é explicada pelo cativeiro familiar. Considero a estudante de História aquela dentre as interlocutoras que mais demonstra uma tentativa de ruptura com a comunidade e, sobretudo, com o que a família representa, o que não significa que o grupo familiar esteja excluído dos seus projetos, pelo contrário. Quando fala de ter um emprego, após a universidade, são os pais com quem primeiro deseja compartilhar os louros da vitória, embora morar em Alto Novo só fosse uma saída “na última, última das hipóteses, nos meus piores pesadelos”, pontua Lis.

Ao falar sobre seus projetos, a jovem não faz muitos rodeios e é clara: “Os projetos são muitos, tenho muitos desejos, mas se pudesse resumir em uma palavra seria ter a liberdade que eu não tenho hoje”. Seu contexto e relação familiar – desenhada ao longo do texto – deixam claros os motivos das escolhas da estudante. “Meu sonho hoje é ter um emprego, poder ter uma casa minha, uma vida independente, sem ninguém me dizendo o que devo fazer”, concluiu Lis.

Considerando que teve uma trajetória de sucesso na educação básica, tal fato não foi capaz de cultivar em Lis o desejo por perseguir um “sonho de infância”: o de tornar- se médica. Interrogada sobre os motivos da primeira escolha profissional, não sabe responder com clareza, pontuando apenas a beleza envolta no ofício de salvar vidas. Quando já estávamos conversando sobre outras questões, Lis retorna a este ponto para dizer:

Olha, eu tenho uma tia em Fortaleza que trabalha há muitos anos na casa de uma família [...] a patroa dela é médica, uma vez quando era criança e estava na casa dela, ela me levou até lá um dia. Eu acho que ter visto aquela mulher tão bonita, tão cheia de si, tão poderosa com aquela roupa branca pode ter me influenciado, né? [...] Eu achei muito lindo, pode ser que aquela cena tenha ficado no meu inconsciente e me veio à memória agora que você me perguntou, mas nunca tinha parado pra pensar nisso não.

Jogando dentro da lógica bourdieusiana da “causalidade do provável” e das condições objetivas dadas em seu contexto, diz que logo que ficou adolescente percebeu que as chances de se tornar médica eram poucas. Ao terminar o ensino médio, decidiu-

195 se por prestar vestibular para Administração, alegando que dentre as possibilidades, seria um curso que lhe renderia retorno financeiro, demonstrando uma racionalidade ímpar na escolha. Contudo, após três reprovações, o projeto teve que ser modificado novamente. Com o desejo pela independência financeira que poderia lhe render o fim mais desejado (a saída da casa dos pais), racionalmente entendeu que formar-se professora seria vantajoso, pois “emprego para professor não falta”, embora faça menção ao salário desprivilegiado do magistério. Influenciada pelo professor de História que teve no ensino médio, com quem demonstra ter uma boa relação até hoje, presta vestibular pela quarta vez, desta feita para o curso de História, logrando êxito. Sobre o momento de decisão para o curso que faz hoje, diz:

Administração nunca foi meu sonho, assim como História também não é, pra falar a verdade, nunca tive paixão, paixão por nenhuma profissão [...] escolhi História por que é aquela coisa, né, tava com quase vinte anos sem fazer nada da vida, sem a vida andar, então eu precisava dar um jeito, entrei pra História e gosto do curso, acho que me identifico em ser professora, e é esse diploma que vai me possibilitar meu sonho de verdade, ser independente, se Deus quiser.

A escolha profissional, assim, aparece como aspecto secundário em sua vida. Passa a calcular racionalmente o caminho a seguir para atingir a finalidade da sua vida hoje: ter um emprego e, com isso, sua liberdade. A direção escolhida foi cursar uma licenciatura e ter como ofício o magistério, justificando a escolha pela aparente facilidade de se inserir no mercado de trabalho. A universidade é um dos pontos necessários para que seu projeto se realize, atribuindo a esta instituição centralidade no desejo de mudança de vida.

Apesar de entusiasmada com a longevidade escolar, teme que os sonhos não se concretizem, apontando como maior medo ter um diploma e não possuir um emprego, o que lhe obrigaria a permanecer em Alto Novo nas mesmas circunstâncias em que vive hoje. O fato de anunciar abertamente que não pretende continuar na comunidade é entendido pela família e pelos mais próximos como ingratidão da filha, que deseja “largar” os parentes, segundo sua concepção, e ir para longe tentar a sorte. Observo que apesar da existência de jovens que migram para outras cidades, o esperado é que, se possível, os filhos permaneçam ao menos próximo dos pais, prestando-lhes toda assistência possível. Nesse sentido, Lis é tomada como desviante de um paradigma local. Sobre a importância do contexto cultural e do sistema de pensamento de uma sociedade, afirma Gilberto Velho (1987):

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Os padrões de normalidade legitimarão ou não dentro de uma situação particular as condutas e ações individuais. Um código ético-moral definirá o errado, inadequado, incestuoso, impróprio, sujo, poluído, perigoso que possa haver nos corações e mentes dos homens e nas suas condutas e interações (VELHO, 1987, p. 28).

Na interpretação de Lis, sua família e os mais próximos entendem que a jovem “nega” seus parentes, tornou-se “besta” pelo contato com outras pessoas em Sobral e se mostra egoísta, por não mostrar que o seu maior interesse é a família (ao contrário do que mostra Margarida, por exemplo). Como bem acentua Velho (1987), “existe a ideia de que sua mente é corrompida por agentes externos às fronteiras da sua sociedade, tornando-se massa de manobra de interesses de fora [...] desarruma e desorganiza uma ordem natural” (VELHO, 1987, p. 59). Para este autor, o contato com outros grupos e círculos, como ocorre na experiência universitária dessas jovens, pode afetar vigorosamente a visão de mundo dos que transitam entre universos diferentes, “estão mais sujeitos do que em sociedades de pequena escala a invasão de seus mundos, à irrupções e crises ocasionadas pela proximidade física e sociológica com outros estilos de vida e definições de realidade (VELHO, 1987, p. 32).

Gilberto Velho (1987) no trecho citado acima nos mostra mais uma vez o peso das estruturas sociais na elaboração dos projetos, que precisam ser “legítimos” e moralmente aceitáveis dentro de um sistema de pensamento, logo o rótulo de “ovelha negra” da família incomoda a estudante de História, que explica que não se considera egoísta por pensar em ir embora e construir uma vida distante do núcleo familiar – enfatizando que pretende ajudar os pais e os irmãos com o que puder financeiramente.

Velho (1987) explica que aquele que mais se individualiza no processo de elaboração dos projetos é alvo de estigma, como já posto, denominado muitas vezes de “ingrato, avarento, egoísta [...] o que se individualiza mais é potencialmente um desviante na medida que, por sua própria trajetória, tenderá a não ser ortodoxo aos costumes e normas de onde se saiu” (VELHO, 1987, p. 48).

É nesta situação em que se encontra Lis, com o projeto de se individualizar, mostrando em sua fala um desejo de ruptura com uma ordem natural e moral prescrita pela família, de quem deseja se afastar, ao menos fisicamente. Deseja concluir a faculdade, ter um bom emprego, poder morar sozinha e “aproveitar a vida”. Por outro lado, embora haja o projeto de construir uma vida solitária, em nenhum momento o núcleo familiar deixa de orbitar as preocupações de Lis. O “medo de sobrar” (NOVAES, 2003), ou seja, não conseguir realizar seus projetos é algo que afetaria tanto

197 a jovem quanto a família, pois a estudante demonstra uma grande obrigação moral para com os pais e irmãos, como demonstra a seguir:

Dizem que eu sou uma pessoa ruim por querer ir embora, mas muitos não me entendem [...] eu penso muito na minha família, já pensou se eu dou errado na vida, o que vai ser dos meus pais quando estiverem mais velhos? Por que eu sou a única que posso dar uma velhice mais confortável para eles, eu sei das minhas obrigações como filha, não ia deixar nunca eles sozinhos, mas eu também quero viver, eu tenho esse direito, ninguém sabe da vida de ninguém pra apontar o dedo, eu tenho consciência dos meus deveres enquanto filha e sou muito responsável. Mas, eu preciso viver e aproveitar as coisas boas também.

Conforme Osterne (2001), a família é o lugar da ambivalência. Se por um lado, fonte de carinho, amor, espaço privado de cada um, por outro, temos as ilusões, tragédias e tensões. A instituição familiar seria, portanto, fenômeno paradoxal. Lis aponta para essa questão quando reconhece a importância da família na condução dos seus caminhos, sobretudo a mãe, contudo reconhece também que os pais dificultam também sua vida, à medida que não pode fazer aquilo que acha pertinente e naturalizado para uma jovem de sua idade.

Lis apresenta, portanto, um projeto de recusa da reprodução da vida que leva atualmente. Recusa a castração na qual foi criada. Recusa o trabalho agrícola. Recusa a vida em Alto Novo, embora seja nítido que não há uma completa ruptura ou descontinuidade, haja vista que a família ocupa lugar na elaboração do projeto de liberdade. Se a finalidade última do projeto de Lis é a autonomia, a preocupação moral com os pais circunda sua cabeça também. As interações no meio onde foi socializada não lhe permite um engajamento dentro da perspectiva cultural local, mas, sem dúvida, o parentesco pulsa forte na condução dos seus projetos, corroborando com Velho (1987) ao dizer que família e parentesco e suas representações são fundamentais e continuam vivas mesmo para aqueles indivíduos – ou talvez principalmente estes – que pretendem romper ou renunciar do ethos onde foi gestado.

Inspirado em Schutz (2012) e sua teoria da motivação, que diz que todo projeto tem um porquê e um para quê, acredito que o projeto de Lis nasça da recusa á vida e ao sistema de pensamento onde foi socializada, de castração feminina, e cresce em direção aos ventos futuros de liberdade, que virão, segundo a estudante, com um diploma e um emprego. Esse é o futuro planejado da estudante de História: um vôo de beleza e liberdade.

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