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2.4 A questão jurídica

2.4.4 Litígio estratégico

Litígio estratégico se refere a uma ação legal para estabilização de um direito ou princípio jurídico socialmente importante, com a pretensão de transformação social para alterar desigualdades estruturais e relações de poder; se trata de ferramenta para o avanço de direitos sociais de populações marginalizadas, com objetivo de procedência de ações judiciais impetradas aliada à mudança da política estatal sobre assuntos como saúde, ambiente, moradia, educação, gênero, sob o paradigma dos Direitos Sociais. A grande questão posta é seu potencial para a efetiva alteração das instituições e modus operandi estatal, tornando o Estado mais responsável e responsivo; portanto, para além da procedência da ação e de seu cumprimento busca, de forma independente, o impacto sistêmico na política pública e no discurso sobre os direitos e o desenvolvimento de jurisprudência protetiva (GLOPPEN, 2005).

Para Gloppen (2015), os principais componentes positivos a serem verificados no litígio estratégico são: voz para os grupos marginalizados (direitos sociais trazidos para o Judiciário); capacidade de resposta do Judiciário (casos recebidos pelo Judiciário); capacidade do julgador (julgamentos que dão efetividade aos Direitos Sociais, com respostas adequadas); comprometimento da autoridade e cumprimento das determinações (transformação efetiva, com impacto nos Direitos Sociais e inclusão de grupos marginalizados); e mudanças sistêmicas na política pública (com transformação efetiva).

Dar voz ao apelo social é parâmetro crucial, pois são as barreiras sistêmicas (formais) e informais que definem a população marginalizada que deve no contexto do litígio estratégico: entender a situação em que vive como uma violação de direito, o dano a ela causado, quem é o autor do dano e que existem instrumentos legais a serem utilizados,para transformar o problema em uma reclamação a ser levada ao sistema judicial. As barreiras práticas são várias, as populações não conhecem os instrumentos legais e não entendem o dano como violação de seus direitos ou as instituições estatais como responsáveis; e as barreiras motivacionais se direcionam à desconfiança e medo do sistema judicial, inclusive porque populações marginalizadas costumam viver em situação ilegal (com subsistência dependente da ilegalidade), problemática ampliada pelo sistema de justiça possuir alta capacidade punitiva e baixa capacidade protetiva, o que leva ao medo do Poder Judiciário e a percepção de arbitrariedade (GLOPPEN, 2005).

Importante neste ponto a análise de quem deve levar o caso para o Judiciário, o que aponta a necessidade de um critério leniente de legitimidade associado a facilidades procedimentais e de investigação10, pois outro fator chave é a capacidade associativa (apesar de normalmente as ações não serem dirigidas pela população marginalizada) sendo apontado inclusive a necessidade de cuidadosa seleção de casos para a litigância. Portanto, mesmo em casos de início externo, a ênfase na interação com a população marginalizada influencia na natureza do discurso e afeta a possibilidade de procedência das ações impetradas, adicionando força e concretude aos pedidos, além de determinar efeitos políticos independentemente das ações em julgamento, com a problemática que os pedidos realizados pela litigância externa podem ser diferentes das pretensões da população marginalizada, o que requer interação para efetividade política (GLOPPEN, 2005).

A responsividade do Judiciário depende das características da lei e do sistema legal e a natureza e composição do Poder Judiciário, associada a sua independência funcional e

10 A Corte Indiana aceita a “Jurisdição Epistolar” que permite a qualquer pessoa ou grupo escrever uma carta em benefício das populações marginalizadas (GLOPPEN, 2005, p.7)

razoável prestação de contas à sociedade. A admissão das ações judiciais depende da base legal do pedido, da interpretação sobre a aplicabilidade e eficácia dos Direitos em disputa, das pressões internas e externas sobre os termos da decisão e os valores ideológicos e profissionais dos juízes, que influenciam a sua percepção sobre seu papel nesse tipo de litigância. Conclui-se pela importância: da descrição clara dos Direitos na legislação aplicável (pelas partes, interessados e amigos da corte), seu alcance e sua interpretação compartilhada; da quantidade de processos de responsabilidade de cada juiz para sua análise cuidadosa; de voz e de habilidade na construção jurídica das ações, que devem trazer elementos fáticos e jurídicos para sua procedência; e da capacidade de supervisão do cumprimento das medidas. Além disso, vale salientar que juízes tendem a advir da elite, o que pode dissociá-los dos problemas das populações marginalizadas, em razão disso, sua capacidade de resposta aumenta nos casos de alterações políticas pontuais, pequenos aportes de recursos e argumentação legal relativamente incontroversa (GLOPPEN, 2005).

Há duas vias de impacto do litígio estratégico: comprometimento de implementação do julgamento e influência sistêmica na política pública. A força da decisão depende de vários fatores como autoridade do julgamento, mecanismos de fiscalização e obrigatoriedade; capacidade do Estado de implementar políticas públicas; vontade política e social; e capacidade estatal financeira, institucional e administrativa. A influência sistêmica na política depende da implementação da política existente de forma efetiva ou do desenvolvimento de uma nova política pelo Estado, inclusive através de instrumentos indiretos como mobilização social, cobertura da mídia, percepção de violação de direitos pela população marginalizada e fortalecimento da advocacia em Direitos Humanos. Observa-se que apesar do sucesso do litígio, a falta de cooperação com a população local implica em efeitos limitados das vitórias no Judiciário e que a decisão judicial por si só normalmente não é capaz de alterar a realidade social, sendo importante uma estratégia amplificada e de longo prazo, relacionada com mobilização social e criação de uma situação de implementação progressiva de direitos para que haja modificação de políticas públicas (GLOPPEN, 2005).

No Brasil, especificamente, a violação de Direitos Humanos, inclusive Ambientais, implicou paulatinamente na formação de organizações para a sua defesa. Contudo, poucos se utilizavam dos instrumentos e institutos disponibilizados pela Constituição Federal de 1988 pela desconfiança em relação às instâncias Legislativas, Judiciárias e outras instituições que exercem funções essenciais à Justiça (como Ministério Público, Advocacia e Defensoria Pública) (Cap. IV, da CRFB/88), preferindo caminhos políticos, como mobilização, capacitação e denúncias públicas. Apesar disso, alguns grupos de advocacia de Direitos

Humanos e o próprio Ministério Público e a Defensoria Pública – estes últimos em razão de suas novas características e competências descritas pela CRFB/88 – passam a se utilizar de estratégias jurídicas com o intuito de aumentar a força política dos mecanismos de proteção a direitos, por meio da provocação do Poder Judiciário para a implementação de direitos consagrados na CRFB/88, que elenca um amplo rol de direitos fundamentais com aplicação imediata (por exemplo: a proteção do Meio Ambiente) e outras normas jurídicas nacionais e internacionais às quais o Brasil se vincula (VIEIRA, ALMEIDA, 2011).

O artigo 5º, inc. XXXV, da CRFB/88, veda a exclusão de qualquer lesão ou ameaça a direito à apreciação do Poder Judiciário, seu artigo 60 blinda tais direitos através do instituto jurídico das cláusulas pétreas, além de os artigos 127, e 5º, LXXIV rearranjarem as competências do Ministério Público e da Defensoria Pública e criarem novos instrumentos jurídicos de proteção, como a Ação Civil Pública. Mas, mesmo com toda essa estrutura constitucional, violações aos Direitos Humanos continuam fazendo parte da realidade do país.

O detalhamento constitucional sobre o tema tem inegáveis vantagens, contudo, uma das questões que devem ser levantadas e verificadas nos casos concretos é a vinculação e eventual “confusão” entre as instâncias investigadoras e punitivas com os violadores de Direitos Humanos, como por exemplo, o Estado investigando e pretendendo coagir o próprio Estado para a proteção dos Direitos Fundamentais (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p.1-2). Além disso, é necessário verificar as engenharias da legislação infraconstitucional, que através de regulamentos e portarias busca facilitar a violação ou ainda, dificultar a punição efetiva dos violadores de tais direitos.

Muitas são as dificuldades encontradas no manejo deste tipo de processo, como por exemplo, o ceticismo acadêmico em relação ao Poder Judiciário efetivar mudanças sociais (GLOPPEN, 2005), pois os membros da comunidade não possuem mecanismos de controle, pressão e participação que influenciem na atuação desses órgãos, além de a ampliação de competências e o volume de trabalho dificultar a atuação através litígio estratégico como mais uma competência a ser exercida (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 4).

Outro óbice ao uso das técnicas de litígio estratégico é a organização espacial de poder no Brasil. A federação e a repartição de competências faz com que um problema que atinge mais de um estado federativo, implique em uma ação judicial em cada Estado, mesmo se tratando de questão federal. Isso implica na desafiadora necessidade de homogeneidade de atuação dos órgãos requerentes e dos julgadores em cada um dos diferentes Estados-membros, para empreender coerência na sua atuação e garantir a segurança jurídica. Contudo, mesmo o aumento significativo do número de processos judiciais não se reflete em ações de proteção

aos Direitos Humanos, salvo atuações “relevantes, mas não sistêmicas” do Ministério Público e da Defensoria Pública. (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 5).

Os principais obstáculos para a realização da defesa de Direitos Humanos através de litígio estratégico no Brasil são: sistemáticas e amplas violações aos Direitos Humanos, difusas e naturalizadas pela opinião pública; perigo constante a que as instituições e pessoas que defendem direitos estão expostas; falta de “responsividade” da Justiça a causas que protegem vulneráveis, sem andamento de processos dessa natureza ou simples ausência de decisão sobre o caso; dificuldade dos juízes em proferirem decisões em casos de alta complexidade, pois o novo litígio implica em decisões diferenciadas com determinação de prazos, critérios e mecanismos de controle; fragilidade da cultura de precedentes, que permitem que determinadas causas atinjam seu objetivo sem que isso possa ser traduzido em uma modificação da jurisprudência e das práticas violadoras; morosidade judicial, com acúmulo de processos e instâncias, o que dificulta a formação e a manutenção de uma estrutura advocatícia protetiva, considerando segurança financeira e psicológica, favorecendo as fortes estruturas litigantes estatais; dificuldade de diálogo entre as instâncias jurídicas e políticas protetivas de direitos humanos, pela diferenciação de atividades. (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 12-13).

Atuações estratégicas de sucesso dependem de ação intensiva, para a desestabilização de práticas violadoras de Direitos Humanos, proteção às ameaças de alterações legislativas que diminuam, ou alterem de forma prejudicial, direitos já protegidos juridicamente e ampliação de proteção aos excluídos em razão de situação social, econômica, cultural etc. pela CRFB/88 e outros estatutos jurídicos. Isso porque “violações sistemáticas de Direitos Humanos, entrincheiradas em práticas institucionais duradouras” implicam em enorme dificuldade para sua alteração (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 6-7).

Assim, impetrar várias ações para atacar um mesmo problema tem a pretensão e o objetivo de desestabilizar práticas violadoras, buscando um comprometimento institucional no aperfeiçoamento de processos de “controle, transparência e participação”. A estratégia se direciona a impetrar ações que debatam o controle e a transparência de forma direta e impliquem em pagamento de indenizações vultosas às vítimas de violações de direitos, com propósito essencialmente pedagógico. (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 7).

O litígio pode também ser utilizado para a ampliação do arcabouço de Direitos, pois, no Brasil, a forte atuação de grupos religiosos impediu a inclusão de importantes direitos na Constituição de 1988, acarretando exclusões injustificadas de grupos vulneráveis a uma proteção efetiva. Para tanto as ações possíveis são a pressão para que o Congresso Nacional

aprove medidas protetivas e ações para que o Supremo Tribunal Federal realize interpretações constitucionais comprometidas com a ampliação da proteção aos direitos humanos, por meio da proposição de ações de controle abstrato e concreto de constitucionalidade, da utilização da figura do amicus curiae e da participação em Audiências Públicas. As dificuldades, neste ponto, no Brasil, é o número diminuto de legitimados para o manejo das Ações de controle abstrato de constitucionalidade e a pouca utilização do instituto do amicus curiae e da participação em audiências públicas como forma de influenciar as decisões da Corte (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 11).

As linhas de ação positiva a serem priorizadas para o sucesso do litígio estratégico são:

1) relação dos projetos de proteção dos Direitos humanos com os diretamente interessados, pois apenas através desse comprometimento as ações judiciais levarão questões relevantes aos vulneráveis para o Poder Judiciário, o que permite a apropriação das vitórias por esses grupos;

2) relação com a mídia, no sentido de informar e produzir material confiável a partir de casos reais e representativos de violações para a desestabilidade de práticas violadoras;

3) atuação sistemática, intensiva e persistente, para isso é necessário um profundo conhecimento do problema, discursos e modos de ação, pois não basta ganhar a causa, é necessário desestabilizar práticas arraigadas. Nesse sentido, o direito deve ter uma nova ótica de percepção do problema e de expectativas calibradas quanto a suas possibilidades

4) Descarte do discurso da legitimidade de atos contra Direitos Humanos, com a visibilidade dos problemas e aperfeiçoamento de mecanismos de solução. (VIEIRA, ALMEIDA, 2011, p. 13-14).

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