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Amor e literatura como construções sociais do biopoder em Para Sempre: amor e tempo, de Ana Maria Machado

Sedução pela escrita em Recados da Lua: amor e romantismo, de Helena Jobim

2.4. Amor e literatura como construções sociais do biopoder em Para Sempre: amor e tempo, de Ana Maria Machado

“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a

resposta que me vem

espontaneamente à

cabeça é porque ela me ajuda a viver”

(Tzvetan Todorov)

Ana Maria Machado nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Formada em Letras, a autora foi professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da PUC-RIO; também foi professora de língua portuguesa na Sorbonne (França), em Oxford (Inglaterra) e na Universidade de Berkeley (Califórnia). Com mais de cem livros publicados e mais de 20 milhões de exemplares vendidos, Ana Maria Machado é uma das mais premiadas e traduzidas autoras do mundo, tendo recebido, entre dezenas de outros importantes prêmios, o Hans Christian Andersen, três Jabutis e o Machado de Assis concedido pela Academia Brasileira de Letras, da qual ela faz parte ocupando a Cadeira nº 01. Além de escritora, Ana Maria Machado é jornalista e editora. Foi presa pelo regime militar brasileiro em 1969.

A litografia de Marc Chagall que ilustra a capa de Para sempre: amor e tempo, de Ana Maria Machado, já indica para o leitor o cerne da obra. Um casal está montado na garupa de um cavalo que voa nas nuvens, sobre o sol poente. O homem segura as rédeas, conduz a cavalgada, mantém os braços abertos indicando liberdade, autonomia e domínio do próprio caminho a seguir, enquanto a mulher está voltada para o homem e o abraça, de costas para a cabeça do animal, deixando-se guiar apassivada sem saber e sem escolher qual trilha segue, pois o homem é o condutor de seus caminhos. Enquanto ele apresenta serenidade, com olhos fechados e boca sorridente, como quem está ‘curtindo’ a viagem, ela o segura como uma criança a um pai onipotente, mantém os olhos abertos, a boca fechada e a aparência tensa.

O enredo de Para sempre: amor e tempo coloca os leitores diante de mulheres apaixonadas que entram sem reservas em relacionamentos amorosos porque acreditam que os amores são eternos e que estão destinadas, como se

fossem personagens de uma tragédia grega perseguidos pelo destino, a serem a única (ou a última) escolha amorosa possível de seus amantes. Com graus diferenciados de autonomia e consciência de suas vidas, as mulheres desta trama, quando encontram os homens que elegem como seus amantes perpétuos, atravessam os estágios de deslumbramento, paixão, amor, decepção e solidão, até conseguirem tentar tomar as rédeas das suas histórias de vida, o que nem sempre conseguem.

Nesta narrativa, muitas mulheres vão (re)vivendo seus amores, encenando momentos de felicidade extrema, até que o tempo, implacável com seus corpos, quando elas perdem a juventude e a beleza, trama para que sejam preteridas por seus homens, que as substituem por mulheres mais jovens, mais belas e muito mais ingênuas. Acompanhamos as histórias de vida de Susana, Antônia, Tânia, Zezé, Sheila e Manuela, dentre outras com participações menores na trama, e constatamos que a narrativa de Ana Maria Machado, no que concerne ao binômio amor romântico x mulheres contemporâneas, se apresenta como uma distopia, como demonstraremos mais adiante. Para esta trama vale o que afirma Bauman sobre a ideia de amor associado a um contrato firmado com pretensa validade eterna: “No todo, o que aprendemos é que o compromisso, e em particular o compromisso a longo prazo, é a maior armadilha a ser evitada no esforço por relacionar-se”. (BAUMAN, 2004, p. 10).

Dentre as diversas personagens do romance em comento, há uma que se destaca pela força da presença dramática, pela inteligência das intervenções que faz, pela maneira lúcida com que procura discutir o papel da mulher na contemporaneidade e pelo modo contundente com que enfrenta o poder androcêntrico na trama; sem temer uma possível superinterpretação, arriscamos dizer que se trata de um elemento estruturante que assume a função de alter-ego da autora. Sobre essa personagem sabemos muito pouco, e não nos é dado obter informações essenciais como o seu nome próprio, sua idade, sua classe social, sua relação com os demais personagens da trama, sua origem, sua história de vida: sabemos apenas que é uma pessoa que entrevista (dentro de um hospital público de Brasília) o personagem Nelson, que se encontra em estado terminal de vida, e que está fazendo uma recolha dos fatos marcantes da vida do paciente para posteriormente escrever e publicar um livro que servirá para “ajudar pessoas em seus relacionamentos”.

Tal personagem, ao investigar e recompor as memórias de um idoso, mostra a importância de alguém com muita vivência narrar para não esquecer o passado, para compartilhar experiências, para entender os pontos obscuros de sua própria vida e para expurgar possíveis culpas, sem dar pistas da pessoa culta que registra suas memórias. No entanto, pelo modo como essa pessoa interfere em defesa das mulheres nos relatos de Nelson, podemos afirmar que é alguém com subjetividade feminina quem narra (de acordo com o conceito de identidade que apresentamos no primeiro capítulo desta tese), e mesmo sendo marcado linguisticamente como um homem (ele se auto referencia como um cronista), ele assume uma subjetividade e uma performance femininas ao se contrapor ao falocratismo, ao patriarcalismo e a diversos outros tipos de sujeição das mulheres. O grande salto criativo dessa trama de Ana Maria Machado é justamente fazer o leitor ler um romance histórico (trata-se da vida amorosa de três gerações de mulheres de uma mesma família – uma mãe, uma filha e uma neta) ao mesmo tempo em que este romance está sendo escrito. O leitor vai então entendendo os mecanismos de composição de um enredo, de criação de personagens, de ajustes de linguagem, de escolhas estilísticas e, principalmente, pode perceber que sob a capa de narrativa ficcional encontra-se uma bioficção que congrega um longo ensaio sobre a condição feminina na contemporaneidade. Tais ilações só são perceptíveis aos leitores que notam que a pessoa que entrevista o personagem Nelson em seu leito de morte é a mesma que narra todo o enredo de Para sempre: amor e tempo, ou seja, tempo passado e presente, narrador e personagens, espaço diegético e extradiegético, trabalho de composição ficcional e crítica literária se mesclam para compor uma obra de ficção metaliterária, metacrítica e, em certo sentido, metabiográfica, que só se constrói de fato no exato momento da leitura. E para compreender a trama de Para sempre: amor e tempo, principalmente as personagens femininas, foco principal de nossa tese, é necessário partir para responder à pergunta: quem é Nelson?

Rapaz bonito, sonhador e pobre, empregado numa loja de ferragens e morador do interior de Minas na década de 40, Nelson saiu um dia de sua estafante rotina e foi a uma festa de formatura de um amigo, sem saber que aquele seria o dia mais importante de sua vida: na festa ele conheceu Susana, sua futura esposa e, como ele dirá décadas depois, “o grande amor de sua vida”. A história do encontro entre Susana e Nelson é o fato mais importante da trama,

pois é deles que Antônia Lousada, a protagonista filha do casal, recebe uma herança emocional forte que direciona todo o enredo. Para iniciar a história de amor entre Suzana e Nelson, o narrador onisciente, com focalização em terceira pessoa, adota um estilo típico de cronistas, e mescla à crônica que escreve trechos de ensaios filosóficos (mesmo afirmando, com certa ironia, não estar escrevendo ensaios) sobre o que significa o “amor eterno”:

Pode chamar de amor eterno. Tem muita gente que chama. Com muito mais frequência em poemas, novelas e romances do que em ensaio. A rigor, também não é uma novela. Mas numa época que vem abolindo cada vez mais as distinções entre os gêneros masculino e feminino, também é natural que as fronteiras entre os gêneros literários deixem de existir. Chamemos, portanto, de amor eterno. Claro que depende do que se entende por eterno. E por amor.

(...) Com ou sem eternidade, o fato é que esse amor pode não ser considerado tão eterno assim, porque, afinal de contas, começa. Quer dizer, não tem vida eterna – porque antes houve um momento em que não existia. E nem sempre nesse início dá para se saber que é amor – quanto mais se é para sempre e outras categorias ligadas a essa idéia. (MACHADO, 2001, p. 7)

O narrador já anuncia no início da trama seu posicionamento frente a questões contemporâneas ligas às classificações de gêneros: se no campo da sexualidade as distinções se anulam cada vez mais, o mesmo deve valer para os gêneros textuais/literários, e ele é impiedoso com os estilos literários ‘beletristas’ do passado. Ao mostrar como o amor pode começar, o narrador apresenta fatos banais, corriqueiros na vida de quase todas as pessoas, sem auxílio de Cupidos, de comadres, do destino, de amuletos ou poções, numa rua, na escola, na praia, no banco ou numa festa. O amor principia como obra do acaso, como ele ressalta no trecho da crônica que escreve e que destaca com itálico:

Quando você chega. Quando um cálice quebra e o licor se derrama nuns joelhos, o amor pode começar. Quando as linhas do telefone se cruzam e um susto resplandece do lado. Quando ele encontra em si antenas para ver que alguém está usando saltos altos pela primeira vez. Quando sentimos falta da terceira datilógrafa à esquerda de quem entra, no escritório onde estivemos pela última vez há quatro meses.

Esses e muitos outros exemplos (cuja citação trato de interromper aqui, antes que o delírio poético se aposse do cronista e ele passe a falar em quando amanhecemos para uma

dourada disponibilidade e há galeras de alabastros na bandeja de prata).

(MACHADO, 2001, p. 8)

O narrador, de quem sabemos apenas ser uma pessoa bastante culta e que está escrevendo um livro ao mesmo tempo em que teoriza sobre seu próprio fazer literário, é bastante irônico ao tecer considerações sobre o “amor à primeira vista”, que marcará ao longo do enredo as histórias de amor de todos os personagens principais. Ele mostra o quanto é pueril esse arrebatamento amoroso que toma conta dos jovens amantes e que o tempo se encarrega de dissipar sem piedade. O amor à primeira vista estaria, portanto, na visão do narrador, muito ligado à inocência, à inexperiência e ao condicionamento a que os jovens em (trans)formação identitária, na transição da fase de juvenil para a adulta, são submetidos:

Um garoto vê de longe uma menina, que pode até estar dançando ou conversando com outro cara. Às vezes, antes mesmo que os olhares se cruzem, já bateu alguma coisa forte no peito dele. Tipo: “Era isso que eu estava procurando e não sabia”. Um poeta espanhol, Pedro Salinas, resumiu essa sensação de maneira definitiva: me responde ao que perguntou minha vida no

primeiro dia.

(...) As variantes possíveis são quase infinitas, descrevendo essa sensação de ser atingido por um raio, aquilo que os franceses chamam exatamente de coup de foudre, e que se abate sobre o pobre (ou feliz) amador, na hora exata em que começa o amor à primeira vista. (MACHADO, 2001, pp. 9 - 11)

O tempo narrativo mergulha em analepse para dar lugar a uma reescritura do tipo atualização estilística e contextual da obra Romeu e Julieta, de William Shakespeare: dois jovens adolescentes, uma festa, uma troca de olhares e a possessão dos dois jovens pelos encantamentos das artimanhas de Cupido. A retomada do drama shakespeariano acontece para que o narrador tenha oportunidade de dizer que o amor é recorrente e pouco criativo em seus métodos tanto na vida quanto na ficção, já que boa parte da literatura romântica, que de certo modo se estende até nossos dias (a exemplo das narrativas da coleção Amores Extremos), não consegue falar de amor sem deixar de revisitar, em maior ou menor grau, o amor, as interdições, as falhas de comunicação e o final trágico de Romeu e Julieta: “Vários começos são assim. Fulminantes. Ver e gostar. O famoso amor à primeira vista. E não ocorrem apenas nos livros, mas podem dar o

ar de sua graça em plena vida real”. (MACHADO, 2001, p. 13). As treze páginas iniciais da trama são compostas de reflexões sobre como o amor inicia, e só então o foco é direcionado para os jovens que comparecem a uma mesma festa, se olham e se apaixonam como obra do acaso, já que aquele ambiente de festa de formatura de burgueses não era o natural de Nelson naquele contexto, que estava alí “(...) na linguagem dos folhetins baratos, ‘por artimanhas do destino, para encontrar aquela que a vida lhe reservara’.” (MACHADO, 2001, p. 14). E ao ver Suzana pela primeira vez, “(...) ainda que sem a mesma poesia, lá veio a eterna pergunta que ecoava Romeu: _ Quem é aquela moça? Você conhece?”. (MACHADO, 2001, p. 14).

Roland Barthes situa as escolhas amorosas no plano do insondável (e nisso ele é essencialmente romântico), mas também ressalta que o objeto de amor escolhido define o que o amante é a partir do seu desejo. Como numa imagem espelhada, e aplicando essa afirmação do filósofo à análise da trama em pauta, ao conhecer quem é a mulher Susana estaremos conhecendo também quem é o homem que a elegeu como aquela a ser companheira constante e eternamente amada por ele. Assim Barthes justifica sua tese:

Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas, mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo. Esta escolha, tão rigorosa que só retém o Único, estabelece, por assim dizer, a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa; uma é universal, a outra é específica. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo Esse? (BARTHES, 1981, p. 14)

O narrador se vale de sua cultura letrada de escritor de ficções e conhecedor de um vasto leque de obras da literatura universal para, através de poemas, canções e ficções, apresentar e explicar o comportamento das personagens. Este uso de referências a um vasto acervo de produtos culturais para pontuar ações do enredo é um dos mais difíceis e criativos de serem produzidos nas ficções, e é responsável por aspectos que supervalorizam a obra porque promove o hibridismo de gêneros ao unir ficções e ensaios; seleciona “por cima” os possíveis leitores ao demandar um nível de erudição alto para

entendimento da trama; promove a integração proposta por Antonio Candido entre texto e contexto; confere um caráter bastante didático ao apresentar ao leitor um rol de produtos culturais compostos como um fragmento da história das artes, e comprova como a cultura, através de seus variados produtos, interfere de modo contundente nas configurações identitárias não só dos artistas, como também das pessoas que apreendem esses produtos, assimilando os seus sentidos, se inserindo como co-autores e divulgadores. E isto é o que percebemos como principal aspecto da novela de Ana Maria Machado.

As reflexões sobre estruturação de narrativa ficcional nos indicam que a trama que temos em mão foi sendo construída ao longo das entrevistas com Nelson, uma narrativa dentro de várias outras, como matrioscas, que acabam sendo todas de um mesmo criador, responsável pelo livro finalizado e pelo livro em processo de tessitura:

De qualquer modo, todas essas perguntas são mesmo formuladas e respondidas num futuro em relação ao tempo que vinha sendo narrado (...). Uma espécie de flashback, retrospectivo comumente usado nas narrativas, com um flash-

forwar, muito mais raro mas igualmente útil, uma forma de

antecipação do que vai acontecer. Uma combinação de recursos que pode levar a um tipo de narrativa em costura, que dá um ponto em cada tecido temporal e os vai aproximando à medida que a agulha anda e a linha aperta. (MACHADO, 2001, pp. 94 - 95)

As referências culturais indicam transversalmente, e em ordem cronológica, a história do amor através dos textos de modo muito lúdico e didático, como é característico da produção infanto-juvenil da autora. Assim, desfilam pelas linhas da trama, tanto nas falas do narrador quanto nas de Antônia Lousada, protagonista e professora de literatura do ensino médio, além do bardo inglês, autores e compositores como Wagner, Strauss, Eurípedes, Homero, Camões, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Manuel Bandeira, José Carlos Oliveira, Pedro Salinas, John Lennon, Paul McCartney, Paulo Mendes Campos, Paulo Pontes, Chico Buarque, Cazuza, Vinicius de Moraes e diversos outros referenciados em citações indiretas ou subliminares capazes de dar aos leitores a sensação de estar assistindo a uma aula sobre história da arte literária através do tema amor ou mesmo uma história do amor através da literatura. E todas as estereotipias relativas à sedução amorosa são postas em cena para mostrar com

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