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Capítulo 3. A poética da incerteza

3.2 A literatura como discurso bifurcado

Michel Foucault, em uma conferência proferida em Bruxelas em 1965, discutiu a natureza da literatura e de sua especificidade como forma de discurso. Para o filósofo francês, a literatura se situa em “um terceiro termo, o vértice de um triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a linguagem” (FOUCAULT, 2005, p. 140). Ela se confunde com a própria linguagem, pois dela se vale o tempo todo, mas também com a obra, seu produto acabado:

A literatura não é o fato de uma linguagem transformar-se em obra, nem o fato de uma obra ser fabricada com linguagem; a literatura é um terceiro ponto, diferente da linguagem e da obra, exterior à linha reta entre a obra e a linguagem, que, por isso, desenha um espaço vazio, uma brancura essencial onde nasce a questão “O que é a literatura?”, brancura essencial que, na verdade, é essa própria questão. Por isso, a questão não se superpõe à literatura, não se acrescenta a ela por obra de uma consciência crítica suplementar: ela é o próprio ser da literatura originariamente despedaçado e fraturado. (FOUCAULT, 2005, p. 141)

O objetivo de Foucault é investigar a natureza do literário a partir das novas funções que a literatura passou a assumir na modernidade. Uma vez que se constitui como prática artístico-filosófica e se relaciona com a linguagem do modo como se conhece hoje (e não mais como era na Grécia Antiga, por exemplo), a literatura, segundo Foucault, se vê diante de um vazio da própria linguagem. Para ele, não se trata de dizer que a literatura seria feita do inefável (isto é, do indizível), mas que, com o fim da retórica no século XVIII, a indagação sobre os limites e atributos da literatura passa a constituir-se como seu principal traço: “a partir do século XIX, todo ato literário se apresenta e toma consciência de si como transgressão da essência pura e inacessível da literatura.” (FOUCAULT, 2005, p. 143). Essa “essência pura e inacessível” refere-se ao tempo em que a literatura existia enquanto restituição da palavra sagrada, enquanto prática ritual destinada a fins muito distintos do que a caracterizam hoje. Isso não significa que, na modernidade, a literatura (ou, na distinção que faz o autor, a obra) esteja a todo tempo voltada para si, em um delírio metalinguístico, mas

que a todo instante, inclusive quando se conta uma história, ela diz sobre seu próprio ser, e seria isso que melhor a caracterizaria:

pode-se dizer que toda obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua história, sua fábula, mas, além disso, diz o que é a literatura. Acontece que ela não o diz em dois tempos: um tempo para o conteúdo e um tempo para a retórica; ela o diz em unidade. Unidade que é assinalada precisamente pelo fato de que a retórica, no final do século XVIII, desapareceu. (FOUCAULT, 2005, p. 146-7)

Assim, toda obra operaria, para Foucault, por meio de uma dupla função, de uma linguagem desdobrada: “ao mesmo tempo que diz uma história, que conta algo, deverá a cada momento mostrar, tornar visível o que é a literatura, o que é a linguagem da literatura” (FOUCAULT, 2005, p. 147). Interessa analisar esse caráter duplo no sentido de que aquilo Foucault chama fabulação (a capacidade de contar uma história, de elaborar uma trama) será uma função questionada pelas narrativas contemporâneas. É como se a busca por especificidade e por uma linguagem própria tivesse feito com que o polo da fabulação fosse menosprezado em função da preocupação de atestar o literário como valor. Assim, se o vazio que a obra experimenta por meio da linguagem, esse simulacro que segundo Foucault consiste na própria literatura, já estava presente nos séculos XIX e XX, o que dizer da narrativa contemporânea, em que o vazio parece habitar as tramas de forma ainda mais evidente?

É preciso lembrar, entretanto, de não cair em uma armadilha que o laconismo dos enredos contemporâneos oferece. Na atualidade, simula-se a precariedade da matéria narrativa e a insuficiência formal, recusa-se a referencialidade e o realismo, mas a literatura não se torna corpo vazio. Ainda que a linguagem desdobre-se sobre si mesma — seja no sentido filosófico de que fala Foucault, seja mais evidentemente na metalinguagem —, a literatura não se reduz a isso, e o caráter fabular não desaparece por completo. Para resgatar a dicotomia platônica, já ficou claro que forma e conteúdo são indissociáveis e interdependentes. Mesmo no nouveau roman, ficou evidente que muitos dos objetivos delimitados eram natimortos, que não havia como narrar desprezando categorias como personagens, tempo, espaço.

Foucault também chama a atenção para uma mudança importante que ocorre nesse processo. Simultaneamente ao fato de a obra adotar uma linguagem dupla, o campo da crítica sofre consequências, pois se o comentário e a exegese deslocam-se em direção à literatura, a linha que separa uma esfera da outra se torna mais tênue:

o homo criticus, inventado mais ou menos no século XIX, entre La Harpe e Sainte- Beuve, está desaparecendo no momento mesmo em que se multiplicam os atos de crítica. Isto é, ao proliferarem, se dispersarem, se espalharem, os atos críticos vão se alojar não mais nos textos destinados à crítica, mas nos romances, nos poemas, nas reflexões, eventualmente nas filosofias. […] Poder-se-ia dizer que a crítica se toma uma função geral da linguagem em geral, mas sem organismo, nem sujeito próprio. (FOUCAULT, 2005, p. 155)

Nesse sentido, ao mesmo tempo que a literatura busca provar sua especificidade por meio da autorreferência, contaminando-se da metalinguagem, ela se vale dos procedimentos oriundos da crítica. Paralelamente, esta perde seu caráter explicativo e revelador que a caracterizava durante o século XIX, para se valer dos mecanismos literários:

parece-me que atualmente o que há de importante na crítica é que ela está passando para o lado da escrita, e isso de dois modos. Em primeiro lugar, porque a crítica cada vez mais se interessa não pelo momento psicológico da criação da obra, mas pelo que é a escrita, pela própria densidade da escrita dos escritores, com suas formas, suas configurações. Em segundo lugar, porque a crítica deixa de querer ser uma leitura melhor, mais matinal, ou mais bem armada, e está se tornando, ela própria, um ato de escrita. (FOUCAULT, 2005, p. 156-7)

O que está em jogo, para Foucault, é a possibilidade de enxergar a literatura como prática transgressiva . Na medida em que a literatura se coloca como o espaço em que a 65

própria linguagem pode ser suspensa e ressignificada, “a literatura, no fundo, é uma fala que talvez obedeça ao código em que está contida, mas que, no momento mesmo em que começa e em cada uma das palavras que pronuncia, compromete esse código” (FOUCAULT, 2005, p. 158), ela contém em si tanto uma virtude quanto um risco, “a fala literária tem sempre o direito soberano de suspender esse código, e é a presença dessa soberania, mesmo se ela não é de fato exercida, que constitui provavelmente o perigo e a grandeza de toda obra literária” (FOUCAULT, 2005, p. 159). O risco é o de fazer da literatura uma prática essencialista e sacralizada, cujo mérito maior seria a capacidade de falar indefinidamente sobre si — algo, aliás, que pode se encontrar tanto nas obras literárias quanto em determinadas filosofias pós-estruturalistas. O mérito, por outro lado, situa-se na possibilidade transgressora de suspender a linguagem e oferecer novas alternativas, recuperando outras versões da história, propondo novos tratamentos estéticos e confrontando diferentes pontos de vista. Para utilizar os termos de Foucault, o que sobressai na crítica (e isso também vale para a literatura, algo que foi percebido mais fortemente desde as vanguardas do século século XX)

Vale lembrar que o posicionamento sobre a transgressão como atributo da literatura é um tema que Foucault

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é a “densidade da escrita”; isto é, com a modernidade os escritores perceberam que qualquer mudança estética deveria passar, necessariamente, por um trabalho que colocasse a superfície da linguagem em questão.

Há um ponto, porém, em que a leitura de Foucault hoje pareceria equivocada:

Na literatura moderna a auto-referência é provavelmente muito mais silenciosa do que esse longo desencaixe contado por Homero. É provável que seja na densidade de sua linguagem que a literatura se repete e, provavelmente, por um jogo da palavra e do código, do qual lhes falava. (FOUCAULT, 2005, p. 161)

O trecho da Odisseia a que o autor se refere é o momento em que Ulisses é recebido pelos Feacos, no canto VIII, mas estes não o reconhecem. Apenas quando, no banquete, um aedo narra os feitos de Ulisses e repete o que já tinha sido narrado anteriormente ao leitor é que o herói pode ser identificado pelos anfitriões. Na contemporaneidade, porém, esse desdobrar da narrativa sobre si, realizado por meio da inserção das problemáticas da escrita no texto ou da representação do livro como um objeto dentro da trama é algo que se tornou bastante comum. As narrativas que representam sua gênese e processo de elaboração, especialmente no cenário latino-americano contemporâneo, existem em abundância, muitas vezes vinculadas à autoficção. Na França, por sua vez, desde a publicação de Os moedeiros falsos (1925), de André Gide, esse procedimento se tornou relativamente frequente. Embora o prognóstico de Foucault não corresponda hoje às produções contemporâneas, certamente sua teoria fornece uma chave de leitura para a concepção de escrita que se pode encontrar em alguns autores recentes.