• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 A FORMAÇÃO DISCURSIVA DA AIDS E A PROMISCUIDADE

1.5 A Literatura de Moa Sipriano

Em meio a esse sentimento de desinteresse sobre a temática da AIDS na sociedade e de uma nova realidade sobre os que vivem com HIV, situamos o projeto literário de Moa Sipriano. Moa é um escritor contemporâneo dedicado a escrever literatura com temática homoerótica e homoafetiva. Seus textos representam desejos, medos e reflexões de personagens homossexuais em espaços urbanos e atuais, com uma linguagem moderna e muito próxima do coloquial, com direito ao repertório linguístico comum dos grupos de gays e simpatizantes.

Sem editora, Moa Sipriano encontra, no espaço virtual próprio (www.moasipriano.com), a possibilidade para resolver o dilema da acessibilidade das suas obras. Podemos encontrar seus livros organizados no site oficial, em formato de ebook pagos e outros disponíveis gratuitamente. Todo o processo de edição dos livros virtuais, desde a capa, tem sua assinatura. Basicamente, ele é um escritor autônomo em todo o processo criativo. Essa característica permite que as histórias que contêm a temática da AIDS, ultrapassem o sentimento de engajamento e se coloque, não apenas focando um lado da moeda, mas revelando o outro que esteve omitido durante esses anos, utilizando-se de um ponto de vista de dentro da comunidade gay, por se colocar como gay e escrever “para gay”9

. As narrativas de Moa Sipriano, normalmente curtas, apelam para dois extremos, as vezes histórias românticas de entrega total ao amor e outras mais eróticas envolvidas em elementos abjetos, mas têm como ponto crucial os corpos e os desejos dos protagonistas, sendo esses elementos os desencadeadores dos enredos. Os contos selecionados para este

9

“Escrever para gay” não retira a possibilidade de ser lido por outros públicos, inclusive pelo fácil acesso na internet, mas seu posicionamento literário opta por fazer uma literatura exclusivamente gay.

estudo, “Cinema” e “Treze homens, um destino”, abordam a AIDS em choque com o corpo e o desejo, construindo, assim, os elementos essenciais de suas personalidades e, normalmente, rompendo o elo da moral que condiciona a relação consigo mesmo e com os outros, como se estivesse ultrapassando os limites impostos pela sociedade, assumindo a promiscuidade como condição constitutiva de si, pois o prazer é visto como prioridade. Nesse sentido, os protagonistas acabam por representar a individualidade exacerbada, fazendo do outro um objeto para a satisfação pessoal e só com a sua destruição é que a experiência é alcançada na sua totalidade.

Os protagonistas estão longe de um heroísmo, são construídos enfatizando seus aspectos mais abjetos e indo contra a ordem civilizada. Quando são personagens portadores do vírus HIV, esses atuam de forma a serem vistos como um tipo de anti-heróis repulsivos, pois não estão apenas derrotados e sucumbidos pelo destino, mas traçam planos e os executam para atacar o mundo que os condenou. Em outras palavras, a AIDS não mais os torna vítimas das circunstâncias, nem dos seus atos, logo, eles se transformam em personagens que colocam em xeque os valores morais, que usam da violência para derrotar os outros e, ao mesmo tempo, também se destruir.

No livro Em Louvor de Anti-heróis, de Victor Brombert (2001), o anti-herói é entendido como uma categoria que se constrói por meio das relações internas das obras. Isso é devido à própria concepção de herói estar instável, pois, “a natureza moral do herói tem sido objeto de muitas discussões” (BROMBERT, 2001, p. 17), dando as incertas também ao seu oposto. O herói já foi representado como um modelo inalcançável. Outras vezes, seu heroísmo era tão tirânico que era associado à guerra, à virilidade e à violência. Assim, o anti- herói muitas vezes poderia ser, na verdade, não uma representação negativa das forças obscuras, mas a possibilidade humana de existir. A partir dessa compreensão, os anti-heróis de Moa Sipriano são “malignos”, mas com possível sentimento de mal-estar por terem sido rejeitados pelo mundo.

Os espaços urbanos, também, são essenciais para reforçar os traços anti-heróicos dos personagens, pois eles se apropriam não só de “locais invisíveis” para a sociedade em geral, como para a própria comunidade gay, como cinemas pornôs, pontos de prostituição, banheiros públicos e becos escuros. Esses territórios têm uma lei própria dos desejos, com menos privações, nos quais são criados rituais de sociabilização por meios de tensões do querer e do fazer, envolvidos por uma penumbra do sombrio e da luxúria.

Na esteira desse pensamento, esse projeto literário usa de elementos, antes negligenciados pela literatura engajada que queria uma higienização da representação da

AIDS, da década de 1980 e 1990, como protagonistas promíscuos e locais públicos com sexo casual. Os personagens trafegam entre locais que a sexualidade é marcante e assumem posturas e comportamentos questionáveis perante o mundo, ao colocar os desejos acima de qualquer suposta limitação ou imposição social. Dessa forma, se apropriam da compreensão da promiscuidade como elemento formador de sua identidade e de seu estar no mundo, se definindo como “sou bicha e sou assim”, proporcionando a emersão de novas subjetividades.

Além dos protagonistas, os personagens secundários, em grande quantidade, aparecem nos contos como se compusessem um inventário dos comportamentos sexuais em que os sujeitos estão dispostos à se contaminarem com HIV. Eles não são vítimas apenas pela maldade dos protagonistas, mas por opção de sucumbirem aos desejos efêmeros, se privando dos cuidados necessários para a saúde. Todos se igualam pela vulnerabilidade, como se a AIDS não fosse o risco eminente, às vezes, como se ela nem existisse. Assim, pela construção dessa massa uniforme de indivíduos semelhantes por esse desejo imediato, a promiscuidade é delineada como algo primário aos homens e, de fato, relacionada à lógica geométrica da epidemia.

A promiscuidade que, nas décadas iniciais da epidemia, foi rechaçada pela sociedade moralista e pela comunidade gay vem à tona para construir novos significados e subjetividades, rompendo com as limitações heteronormativa e homonormativa, porque o sujeito com AIDS não é mais apenas o paciente terminal implorando por vida, ele, também pode ser um “gostosão” moralmente questionável disposto a colocar o desejo sexual a cima de qualquer valor social e humano. A AIDS e sexualidade se reencontram em uma nova fase em que os corpos contaminados pulsam por desejos. Dessa forma, a narrativa de Moa Sipriano analisada se permite representar e dar a visibilidade a um mundo caótico que convive com a AIDS.

Documentos relacionados