• Nenhum resultado encontrado

O desafio dos ecocríticos está em manter um olho nos modos como a natureza é sempre culturalmente construída, em certos aspectos, e o outro no fato de que ela realmente existe, tanto como objeto quanto, ainda que de forma distante, como origem do nosso discurso.

(Greg Garrard)

Sem declinar do apelo formal e da instância artística da escrita literária, demarco aqui a relação existente entre a literatura e a natureza. Trata-se de uma ligação que vem de longe, pois, desde os primeiros registros escritos encontrados, a natureza é compreendida como importante fonte de inspiração para a produção de diversos e variados textos.

Tal relação existente entre literatura e natureza remonta ao período clássico. O primeiro texto literário documentado a retratar a natureza recebeu o título de “Os trabalhos e os dias” e foi escrito por Hesíodo (século VIII a.C.)17. Seus poemas possuíam um caráter

coloquial, impregnados por preceitos morais. O poeta grego, durante a juventude, cuidou de um rebanho de ovelhas, além de realizar outras tarefas próprias da vida no campo. Daí a sua obra ser uma combinação de suas experiências com o trabalho no campo, somada à influência de alegorias encontradas em fábulas conhecidas na época.

Após os períodos da Idade Média, tanto no Renascimento quanto no Iluminismo, ocorreu um resgate da cultura e dos valores clássicos greco-romanos, lembrando que na Grécia Antiga bem como no Império Romano a arte tinha como finalidade imitar a natureza. Dessa maneira, os iluministas procuraram reaproximar a literatura e o espaço natural, já que o ideal estético neoclássico visava representar o homem e a natureza existentes em seu entorno.

A poesia neoclássica contém o chamado princípio de verossimilhança, no qual as obras deveriam imitar a natureza, já que, somente a partir do contato com a natureza, o ser humano poderia encontrar a verdadeira felicidade. Era o carpe diem [gozar o dia], que aconselha o homem a desfrutar o presente e os prazeres que a vida vinculada à natureza proporciona. Para que esse prazer atinja seu ápice, é preciso aproveitar cada momento intensamente, mas de forma sadia, regrada e equilibrada. Essas características estão presentes

17 ALVES, Leonardo M. Hesíodo: Os trabalhos e os dias. Ensaios e Notas, 2018. Disponível em:

em grande parte dos poemas que exaltavam a vida campestre na segunda metade do século XVIII. A natureza, porém, ainda se apresentava estática, não participativa, pois o Neoclassicismo tinha a predileção pelo equilíbrio e pela lógica, pelo racional, sendo a natureza considerada, assim, um objeto irracional desse prazer almejado pelo homem. Uma das principais teses desse período propagava que o homem somente seria livre se vivesse em contato com o mundo natural, cujo ambiente serviria como fonte de sabedoria, lugar onde se encontraria a verdadeira beleza e a paz espiritual.

No Romantismo europeu, a natureza é representada com força e vigor. As paisagens são descritas com um sentimentalismo acentuado, e os escritores tentam retratar as belezas naturais de seus países da forma mais exuberante possível, exaltando, principalmente, a cor local, bem como os elementos específicos e representativos de suas regiões.

Pode-se dizer que a literatura e a natureza caminham juntas desde que o homem tentou representar o mundo de alguma forma, como se pode atestar nas escrituras rupestres, bem como o conhecimento da mitologia que leva à percepção de que sempre houve uma tentativa de traduzir e explicar o universo e os seus fenômenos naturais.

É possível falar, atualmente, de um retorno ao mundo sensível, cada vez mais almejado pelas sociedades, ou seja, um retorno não exatamente ao período mítico, quando nem religião nem ciência moldavam ainda o homem, mas um almejado retorno ao sensível, que tem como proposta o retorno às coisas, ou seja, aos fenômenos que são apresentados à consciência humana. Busca-se evidenciar a percepção do mundo indo ao encontro da natureza e do que compõe o interior do homem e, junto, o que lhe é externo. Assim são visíveis as atitudes e os comportamentos humanos a partir do encontro com os elementos naturais e não naturais, vistos dentro do contexto literário, a partir de vivências dos personagens ou do que pode revelar o texto poético. Por sua vez, a análise historiográfica, que faz o registro crítico da história e de seus eventos ao longo dos tempos, expõe os processos mediante as contradições das relações sociais, imersas em determinados contextos, espaços e situações, e o comportamento humano em meio a esse contexto. E, por fim, a análise sociocultural, que entrelaçando os aspectos sociais e culturais, percebe a literatura segundo a sua força simbólica, valorizando-a como um instrumento que revela a visão de mundo do homem em cada época, conferindo ao indivíduo a possibilidade de compreensão do real, que integra a arte e se faz atemporal e não espacial, iluminando, desse modo, com os estudos literários, as situações políticas, sociais, ambientais, sentimentais, religiosas, psicológicas, metodológicas, geográficas e históricas, vividas em épocas distintas.

Em síntese, a literatura revela e amplia o olhar do homem para o mundo através dos tempos, e a natureza, já não mais um mero elemento literário, também vai moldando esse homem de diferentes maneiras, de acordo com o contexto histórico-social. A criação literária, portanto, transfigura a realidade, até porque nela estão refletidos chaves e enigmas, bem como os inúmeros e variados fenômenos que cercam a vida humana.

Daí advém a necessidade de consciência de que não somos o centro das coisas, e sim parte delas, ou seja, parte da natureza; apenas mais um elemento e não o centro, onde tudo seria de “propriedade” nossa. Nós somos tão importantes quanto a pedra, o rio, o oceano, as árvores – somos apenas uma parte desse todo. Vale ressaltar que Cora Coralina, possivelmente, guarda essa consciência de sermos parte na natureza, e não “senhores’ dela.

A respeito desse assunto, é relevante citar minha interpretação a partir dos estudos da pesquisadora Célia Câmara de Araújo (ARAÚJO, 2016)18, sobre os povos ameríndios, aqueles a quem chamamos genericamente “índios”. Estes, muito antes da civilização ocidental perceber a necessidade de cuidar do não humano, já se mostravam preocupados com a relação do homem com a natureza. Como prova dessa consciência já existente, eles nos deixam o legado de um comportamento harmônico e saudável com o espaço natural, um comportamento necessário, com o qual, só agora, passamos a nos preocupar. É válido pensar que, ainda que nosso processo de negação dos conhecimentos e mesmo da cosmologia indígena tenha uma forte reverberação na dita sociedade civilizada, muito dessa cosmologia habita em cada brasileiro, pois, no final das contas, sendo brasileiros somos também ou bastante indígenas. Não é de causar espanto, portanto, pensar que Cora Coralina guarde um tanto dessa consciência cosmológica com a qual deveríamos dialogar mais frequentemente e de modo respeitoso, e não como até hoje comumente fizemos. Em suas palavras:

Alçando diferentes formas de vida à posição de diálogo, está convidada, como em Wittgenstein, a necessária visão sinóptica sem a qual não se pode assegurar a aceitação de um entreconhecimento comparativo. Tanto em Wittgenstein quanto em Viveiros de Castro, solicita-se a difícil capacidade de ver-se a si mesmo e ao outro estando de fora, o que significa dizer, antes de mais nada, estar em pé de igualdade: somos tão loucos, ou tão sãos, quanto esses índios são loucos, ou sãos. (ARAÚJO, 2016, p. 139)

Ou seja, Cora Coralina, essa mulher que acolhe os “loucos” de sua cidade, que faz das prostitutas, das crianças sofridas e sem voz, dos burrinhos cansados e maltratados, do milho e

18 ARAÚJO, C. C. Linguagem, infância e perspectivismo nos escritos maduros de Wittgenstein. Tese

(Doutorado em Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

do joão-de-barro inspiração de sua poesia e parte importante de seu cotidiano, talvez traga dentro de si uma sabedoria ancestral das culturas renegadas pela chamada cultura ocidental.

Como qualquer produção cultural de um povo, a literatura é fortalecida pela relação formal/estética e conteudística, a partir da qual se empreendem sentidos e ressignificações, bem como se estabelece o contexto social de determinada época. Dessa forma, o texto literário funciona como um produto do contexto histórico-social, que se desdobra em consequentes reflexões. E são dessas inevitáveis discussões e provocações que surgem eventuais respostas. Nessa perspectiva, nasce, então, a ecocrítica, com a proposta de problematizar questões sobre a relação entre o meio ambiente e o ser humano, mas, sobretudo, de conscientizar o homem, o qual, focado na exploração e no crescimento econômico, pessoal e da sua nação, no mais das vezes, olvida a importância de preservar os recursos naturais como forma de se manter vivo e em equilíbrio com o seu habitat.

E vindo ao encontro da proposta interdisciplinar da ecocrítica, vale relatar aqui sobre O Caminho de Cora Coralina, uma trilha inaugurada em homenagem à poeta, no ano de 2018, em Goiás. O percurso foi sinalizado pela agência Goiás Turismo em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade (ICMBio), passando por oito municípios do estado de Goiás, percorrendo aproximadamente trezentos quilômetros. Esses municípios, em grande parte, se localizam na Região Turística do Ouro e dos Cristais, e por três unidades de conservação: os parques estaduais da Serra dos Pirineus, da Serra de Jaraguá e da Serra Dourada19.

O Caminho de Cora Coralina nos faz reviver as viagens e expedições antigas, além de nos oferecer um cenário rico em paisagens, poesias, arquiteturas, gastronomias, culturas e folclores goianos que despertam no ser humano um grande laço de afeto e respeito em relação à arte e a natureza que o cerca.

19 CAMINHO de Cora Coralina percorre 300kms com histórias da poeta. O GLOBO, 4 mar. 2018. Disponível

em: https://oglobo.globo.com/boa-viagem/caminho-de-cora-coralina-percorre-300kms-com-historias-da-poeta- 22446627. Acesso em 30 de outubro de 2019, às 14h.

2 CORA CORALINA E MARY OLIVER