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Chega-se agora ao cerne das reflexões e indagações apresen- tadas ao longo desta exposição, de tal maneira que a arte e, dentre suas formas de expressão, a literatura, passarão agora a conduzir o fio destas linhas. Anteriormente já se disse que a literatura pode ser vista objetivamente como uma convenção. Essa arte mantém uma dinâmica que depende da interação de pelo menos quatro ele- mentos: o artista, a obra de arte, o receptor da obra e o crítico. Dessa interação nasce o vasto sistema literário que, como outras formas de expressão artística, também se insere na dinâmica social e eco- nômica, a tal ponto que se pode chegar a pensar na obra de arte como um bem, passível de ser consumido e outorgador de status a quem o produz ou consome. Conquanto a última reflexão desem- penhe um papel fundamental na compreensão da arte, é preciso se abstrair dela e se restringir à análise da dinâmica dos elementos já citados, extraindo o receptor, enquanto fruidor, dessa problemá- tica alheia ao ato artístico em si.

Sendo a literatura uma das formas de expressão artística mais importantes, tem sido objeto de variados estudos, os quais pro- curam mapear a extensão de seu impacto. Porém, talvez o aspecto

que mais tenha despertado a curiosidade e aguçado o intelecto de muitos tenha sido o fato de a literatura erguer-se em e pela palavra, de tal maneira que o expediente mais utilizado pelo ser humano para a comunicação se converte, por meio da técnica literária, em um ter- reno desconhecido e outro. Palavras que nomeiam coisas tão banais de tão conhecidas são as mesmas que vêm ressuscitar a conexão com o universo simbólico. Busque-se o impacto da poesia nos pri- mórdios da consciência, quando nus e impotentes, deitados obser- vando nada – pois era nada tudo quanto existia –, ouvíamos jorrar de alguma boca miraculosa uma torrente de sons incompreensíveis. Como eles devem ter marcado indelevelmente a incipiente cons- ciência! Para esse pequeno ser não foi a cor, nem a forma, nem o som harmonioso de outras fontes, foi a palavra a que se transfor mou em seu Santo Graal, busca incessante do elo longínquo que em al- gum momento da existência fez esse pequeno ser conceber pela primeira vez o sentido. Sentido próprio e intransmissível, primeira experiência indecifrável, mas que continua como um eco a guiar a grande busca. Essa busca é, evidentemente, a conexão com o uni- verso de símbolos, que pulsa no artista, no receptor e no crítico porquanto são, antes de constituir essas instâncias, primeira e co- mumente humanos.

Destarte, observe-se como a literatura conduz a conteúdos simbólicos, particulares ou coletivos, por meio do uso – intencional e medido sob os auspícios de uma tradição – da palavra que se quer singular e estranha porque não é cotidiana. E o trabalho intencional que dá à palavra seu novo tom procede do domínio pleno do pensa- mento lógico e conceptual por parte do artista, pois não se pode atribuir a concepção e sustentação das leis que regem uma con- venção cultivada ao longo de séculos, como é a literatura, ao terreno exclusivo do egocentrismo intelectual da criança, este último con- ceito descrito magistralmente por Piaget. Disso se deduz que não existe a possibilidade de estabelecer uma identidade total entre criança e artista como Gardner propõe, porque o único ponto que os une é sua conexão com o universo simbólico; no mais, diferem entre si obviamente, como diferem criança e adulto. Mas o que per-

mitiria ao artista não perder sua conexão com o universo simbólico? Eis uma pergunta para a qual não se tem resposta. Ou, então, o ar- tista é como deveríamos ser todos e, dado que nos perdemos, a per- gunta se reformularia nestes termos: por que nos afastamos da nossa capacidade de dialogar com o inconsciente? Essa indagação também não terá evidentemente uma resposta. O fato é que a busca existe, busca cruel de um sentido maior perpassando a existência, decifrando o grande mistério do ser e do estar neste ubíquo aqui.

É preciso dizer que a literatura, enquanto expressão artística, tem o propósito de cultivar, por meio do que a convenção tem esta- belecido como gêneros literários, tipos de textos gerados sob uma forma específica que já nasce indissoluvelmente atrelada ao seu sentido. Com essa afirmação quer se lembrar toda uma concepção que deseja a qualquer custo negar uma propalada cisão entre a forma e o sentido da palavra artística dentro da consciência estética. No entanto, é fundamental afirmar: Piaget, ao referir-se ao signifi-

cante e ao significado como primeiro passo para a representação, es-

tava aludindo a uma operação típica dos primórdios da consciência que consistiria em conseguir guardar no interior do indivíduo, por meio da imagem mental, os objetos observados. A imagem mental é o significante, e o significado seria a função desse objeto assim pre- servado na consciência. Evidentemente, Piaget estava elucidando o mecanismo da função simbólica, revelada quando a criança faz a distinção entre significante e significado. Porém, quando se trata de outras vertentes de pensamento, como os estudos linguísticos e li- terários, esses termos, significante e significado, vêm-se exclusiva- mente em sua relação com a palavra – signo linguístico – de modo que, segundo Ferdinand de Saussure, o signo linguístico está cons- tituído pelo significante – a sua imagem acústica – e o significado – o conceito associado a essa imagem acústica. Tal percepção evoluiu para os conceitos, aplicados ao texto como um todo e não a palavras isoladas, de plano da expressão (significante) e plano do conteúdo (significado) na tentativa de apreender a teia de sentidos das pala- vras combinadas entre si formando uma totalidade. Para um es- tudo da literatura que privilegia a palavra como eixo da realização

artística – algo tão óbvio que não encontra eco em certos estudos ditos literários em cujas abordagens o menos importante é se ater à palavra –, essas concepções são fundamentais. Porém, há outro dado importante para a dinamização dessa perspectiva: a todo signo cor- responde um referente, isto é, o objeto que a percepção humana julga tangível e exterior ou as concepções abstratas, porque concei- tuais, que também são referentes; justamente aqui se situa o grande problema: vemos as coisas como elas são ou tudo procede da nossa forma particular de perceber? Essa pergunta vem ecoando ao longo destas reflexões. O significado delimita e apresenta esse referente para a consciência de quem se expressa e de quem recebe a men- sagem. Porém, o mais curioso é que, como Saussure já afirmou, a relação entre signo linguístico e referente é arbitrária, isto é, não há nada no objeto que leve o ser humano a dar-lhe o nome que tem. Exclui-se desta reflexão o caso da onomatopeia por se tratar de uma expressão peculiar, desvendadora de um nexo mais direto com o referente ao reforçar alguma de suas características observáveis.

Como é possível notar, no âmbito da literatura esse particular ocupa o lugar central nas reflexões de abordagens que privilegiam o texto enquanto tessitura de múltiplos sentidos. Aqui se chega a um ponto vital: a palavra em literatura adquire o estatuto de meca- nismo gerador de realidades paralelas àquela em que comumente se acredita viver. Ou dito de outra maneira: a palavra é o meio usado pelo ser humano para organizar e expressar experiências, ideias, opiniões e toda a teia de concepções com as que se constrói o mundo. Se essa palavra é usada para traduzir em cadeias de som uma pai- sagem, uma sensação, uma ideia, um sentimento que têm como centro um ser que os percebe, pensa e sente, não há como negar que o ponto de convergência entre o mundo que cada humano edifica para si pela palavra e aquele que a literatura ergue, reside precisa- mente no fato de a palavra artística usar a mesma ordenação narra- tiva – no caso do romance ou do conto, por exemplo – que qualquer indivíduo utiliza para referir a outrem suas vivências. Porém, se há um ponto de convergência existe necessariamente outro de divergência. Este corresponde a algo específico da arte: ela traduz

a palavra familiar e cotidiana em palavra que não encontra na expe- riência vital sua correspondência e a transforma em símbolo, chave do reino do inconsciente. Inclusive essas chaves do inconsciente, atuando sobre um adulto, poderiam ter se originado em estágios de desenvolvimento em que a palavra nem sequer existia no hori- zonte da consciência desse ser. Tal fato quiçá provaria que o texto literário resgata a palavra enquanto símbolo e isso significaria res- suscitar seus vínculos estreitos com o universo sensorial para, a par tir desse espaço, atingir diretamente a emoção e a imaginação. Veja-se, por exemplo, a palavra amarelo; designa evidentemente uma cor em sua acepção mais geral. A tarefa do texto artístico seria a de transmutar o amarelo-palavra em sensação vívida para o leitor, transformando esse vocábulo numa cor de nuanças particulares, geradoras de um impacto capaz de evocar no receptor o amarelo da cor de seus sonhos, o amarelo que pulsa dentro dele. Esse brilho particular do amarelo, trazido pela transcendência do simples con- ceito geral que o explica, evidentemente constitui a prova de que o vocábulo amarelo superou a ordem da designação pura e simples. Isso necessariamente resgata o conceito de estranhamento já alu- dido, termo consagrado pelos formalistas russos e de tanta valia para apreciar o fenômeno literário. Vendo o estranhamento de outra perspectiva, poder-se-ia dizer que ele constituiria aquele breve in- tervalo em que a consciência abandona todas as certezas para mer- gulhar numa fresta do eu nunca antes percebida. Dessa fresta se percebe um mundo totalmente outro precisamente porque a pa- lavra artística, ao potencializar-se pela abrangência dada pela aqui- sição de novos sentidos, permitirá se aproximar dos objetos e vê-los dotados de novas roupagens. E na esteira destas reflexões, seria possível afirmar que o estranhamento é a ponte que conduz ao uni- verso simbólico, razão da existência da arte.

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