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Em decorrência desse estudo me propus a elaborar um material de divulgação científica que visasse romper os paradigmas históricos que afastam os estudantes das classes populares, os pretos e as estudantes das carreiras científicas. Para o formato desse material, desenvolvi uma história em quadrinhos em que uma estudante representante dos grupos ditos minoritários se vê dialogando com grandes cientistas também marginalizados por características de gênero, cor, sociais ou de outra natureza. Acredito que através da leitura desta HQ, tanto os educadores em Ciências quanto os estudantes se vejam desafiados a se questionar quando ao seu papel na sociedade.

Esse material tem como principais objetivos: a. colocar o leitor na posição da personagem principal, uma vez que foi construído de acordo com as respostas e vivências dos estudantes, coletadas na pesquisa; b. através das experiências da personagem no decorrer da história, difundir o conhecimento gerado, multiplicando as oportunidades de reflexão sobre os temas tratados; c. auxiliar os estudantes a entenderem as barreiras sociais e históricas que os impedem de criar expectativas frente às carreiras científicas.

Iniciei o processo investigativo na busca de elaborar uma história que fosse de fato interessante e construtiva para os meus estudantes. Imerso numa geração com grande afeição pela tecnologia e processamento múltiplo e contínuo de informações, propus a mim mesmo questões a serem respondidas previamente ao desenvolvimento do meu produto: Que tipos de histórias os adolescentes consomem? Que livros, filmes, séries ou programas de televisão os motivam a passar horas do

seu tempo focados numa única tarefa? O que tais títulos têm em comum? Através de entrevistas informais com meus estudantes nos ambientes de convívio dos colégios em que atuo, cheguei a uma conclusão bastante curiosa pra mim naquele momento: a maior parte dessas mídias compartilha a mesma métrica, têm a mesma receita, conhecida como “A jornada do herói” ou “Monomito” – estrutura que se baseia em um conceito de jornada cíclica estudada pelo antropólogo americano Joseph Campbell e apresentada ao mundo em seu livro The hero with a thousand faces (O herói de mil faces), em 1949.

Já tinha assim definido meu primeiro material de leitura, para a construção da minha história. A jornada do herói se apresenta de forma simplificada no livro de Campbell (1992) através de tópicos sequenciais. Inicialmente temos a apresentação do mundo cotidiano da personagem seguida por seu chamado à aventura e ao encontro com o mentor. A recusa ao chamado precede alguma forma de ajuda sobrenatural que a auxilia na dita “travessia do primeiro limiar” e a conduz à “barriga da baleia”, um momento de isolamento e reflexão. A continuidade da história se dá através de provações, tentações e conquistas envoltas em conflitos físicos e/ou psicológicos e em descobertas capazes de mudar o rumo da história a qualquer momento. O desfecho é geralmente iniciado pela recusa do retorno e através do alcance de um novo patamar de compreensão, provavelmente relacionado à resolução de um conflito interno - a travessia do limiar para um retorno heroico e uma nova compreensão do mundo comum.

Comecei então a levantar questões dos meus estudantes frente às suas realidades para elaborar a partir daí uma trama que os colocasse na posição de protagonistas e, ao mesmo tempo, seguisse o “monomito” de Campbell.

Iniciei pela escolha da personagem principal. Em tempos de tantos debates sexistas e raciais, não foi difícil escolher dentre tantos rostos aqueles que mais vejo no meu dia-a-dia nas escolas públicas em que trabalho. Já tinha a minha protagonista, uma adolescente de pele preta, concluinte do ensino médio numa escola estadual do Rio de Janeiro, pobre e de luta.

As características psicológicas surgiram também da minha vivência na escola. Digo escola, pois meu relacionamento com os estudantes ultrapassa os limites da sala de aula. Tenho a oportunidade de dividir com eles ambientes como refeitório, pátio e quadra em momentos de descontração e lazer. Pensei numa estudante com

dificuldades em ciências exatas e da natureza, mas esforçada e com bons rendimentos nas demais disciplinas. Sua moradia, estrutura familiar e questões pessoais também foram inspiradas nos meus estudantes.

Como mentores, pensei inicialmente em seu professor de Química, que apresentaria à sua estudante uma possibilidade de transição entre o mundo comum e um mundo especial onde ela viveria parte de sua aventura. O portal que a faria transitar por esses mundos seria um livro que a apresentaria também a seus outros mentores. Selecionei alguns cientistas que passaram por experiências de exclusão e preconceito análogas às vividas por meus estudantes. Para isso precisei fazer um levantamento minucioso das experiências pessoais de cientistas no cenário internacional. Para isso me utilizei de biografias, autobiografias, trabalhos acadêmicos e memoriais disponíveis na internet.

Após muita pesquisa, selecionei como mentores Albert Einstein, Marie Curie e George Washington Carver.

Escolhi Albert Einstein, físico, por sua grande representatividade nos resultados da minha pesquisa com os estudantes – seria alguém com uma identificação imediata – e pela perseguição sofrida por caraterísticas étnicas, bem como por sua relação com a guerra e com a construção de uma arma de destruição em massa. Marie Curie, química, foi selecionada pela sua luta enquanto mulher num universo científico dominado por homens e por todas as dificuldades que precisou superar para ser reconhecida, mesmo sendo contemplada por dois prêmios Nobel. George Washington Carver, botânico e agrônomo, foi escolhido pela sua luta em relação à questão racial – mesmo nascido na escravidão, no Estados Unidos da América, alcançou diversas honrarias e prêmios - e pela pouca divulgação que seu nome e história possuem no Brasil.

A HQ poderia apresentar também cientistas não tão populares entre os estudantes além de aprofundar a história de outros já conhecidos, e ainda cientistas não éticos, de modo que o último mentor selecionado para a revista foi Josef Mengele, famoso médico experimentalista nazista conhecido por atrocidades cometidas em campos de concentração de Auschwitz. Nele estava essencialmente a proposta de mostrar a não neutralidade da ciência.

Optei por usar para os mentores nomes comuns de modo que a leitura ficasse mais natural para jovens brasileiros. Albert Einstein, inspirou Alberto, Marie Curie

inspirou Maria e, Josef Mengele, José. George Washington Carver inspirou simplesmente George na trama.

Eu já tinha um esboço de história. Mas, como afinal, se faz uma história em quadrinhos? Precisei buscar referências metodológicas capazes de ensinar alguém totalmente leigo no assunto a construir uma HQ envolvente e divertida o suficiente para cumprir os objetivos propostos no início do trabalho. Vale colocar que escolhi fazer uma história em quadrinhos pela facilidade e prazer gerados por sua leitura.

Graças ao crescimento das HQs no cenário educativo dos últimos anos, não foi difícil encontrar uma diretriz para a construção desse tipo de material. Diversos trabalhos são publicados anualmente no cenário nacional, muitos deles originários de pesquisas. Tomei como base duas referências tidas como fundamentais dentro do contexto das histórias em quadrinhos: Will Eisner e Scott McCloud. Duas obras incríveis e didáticas que tomei como referenciais metodológicos, mas igualmente difíceis de serem citadas, já que são escritas em sua maioria em quadrinhos.

Gostaria de destacar aqui um trecho escrito por Tom Wolf na Harvard Educational Review de agosto de 1977:

"Durante os últimos cem anos, o tema da leitura tem sido diretamente vinculado ao conceito de alfabetização;...aprender a ler...tem significado aprender a ler palavras...Mas...gradualmente a leitura foi se tornando objeto de um exame mais detalhado. Pesquisas recentes mostram que a leitura de palavras é apenas um subconjunto de uma atividade humana mais geral, que inclui a decodificação de símbolos, a integração e a organização de informações...Na verdade, pode-se pensar na leitura - no sentido mais geral - como uma forma de atividade de percepção. A leitura de palavras é uma manifestação dessa atividade; mas existem muitas outras leituras - de figuras, mapas, diagramas, circuitos, notas musicais..." (Wolf, 1977 in EISNER, 2010, p. 7-8)

Wil Eisner (2010) sobre o texto de Wolf (1977) completa:

As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõe-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual.

Para concluir essa reconsideração de Wolf a respeito da leitura é um importante lembrete de que os processos psicológicos envolvidos na compreensão de uma palavra e de uma imagem são análogos. As estruturas da ilustração e da prosa são similares.

Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e vezes para expressar ideias similares, tornam-se uma linguagem – uma forma literária, se quiserem. E é essa aplicação disciplinada que cria a “gramática” da Arte Sequencial. (EISNER, 2010, p.8)

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