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Literaturas heterogêneas (a contribuição de Cornejo Polar)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 70-74)

Martin Lienhard, em La voz y su huella (1990), destaca a importância do estudo das “literaturas alternativas”, nas quais inclui o testemunho, para o “conhecimento da ‘outra’ história”, o que permitiria a “elaboração de ‘outra história’ da literatura latino-americana”. Essa mesma preocupação já manifestara Cornejo Polar e constitui a base de sua proposta. Em O Condor Voa (2000), livro que reúne trabalhos publicados por Cornejo Polar ao longo de mais ou menos vinte anos, em diversos periódicos, mostrando seu pensamento a respeito destas questões, ele enfatiza a necessidade de se ampliarem os debates em torno das narrativas autóctones, denunciando a ação “mutiladora” da crítica tradicional, cujo

recorte privilegiaria as literaturas cultas em detrimento das populares. Segundo o crítico peruano,

A necessidade de repensar e reformular o corpus da literatura latino- americana deriva da certeza de que sua delimitação atual obedece, em última instância, a uma visão oligárquico-burguesa da literatura, visão que foi transmutada em base crítica quase axiomática, mediante operações ideológicas que só recentemente são discerníveis como tais. Deriva também da convicção de que o desenvolvimento real das contradições sociais na América Latina permite ensaiar outras alternativas que se vinculem aos interesses e à cultura populares (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 25) 46.

Essa visão é compartilhada por Moraña (1992), como já citado no segundo capítulo desta dissertação. Moraña critica a composição tradicional do cânone literário, seguida por muitos historiadores da literatura hispano-americana, que consistira num “conjunto de nomes ilustres” qualificados por critérios questionáveis, subjetivamente estabelecidos. A tentativa de revisar o cânone é de extrema importância, segundo Moraña, pois o ato de promover a sua ampliação consiste no questionamento dos valores por ele instituídos.

Sendo assim, Cornejo Polar estabelece os fundamentos de seu projeto de “construir uma totalidade concreta”, que tornasse possível “inscrever todos os sistemas literários (...) dentro de um processo histórico-social englobante” (ibidem, p. 31). Longe de expressar uma tentativa de homogeneizar as diferentes manifestações literárias latino-americanas, a proposta de Cornejo Polar, ao contrário, favorece a conservação e a valorização das diferenças culturais,

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Artigo do autor publicado anteriormente, conforme referência: CORNEJO POLAR, Antonio. Unidad, pluralidad, totalidad: el corpus de la literatura latinoamericana. In: Sobre literatura y crítica

consolidando-se como uma “totalidade contraditória” que “tem a vantagem imediata de superar o conflito entre unidade e diversidade” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 32).

Mas a superação desse conflito não se baseia no embaraço ou no apagamento das contradições que podem resultar do entrelaçamento dessas diferentes expressões. Antes, parte justamente da afirmação de que a coexistência de literaturas plurais é ambígua e contraditória, mas isso não as torna inconciliáveis. Sendo assim, Cornejo Polar enfatiza a importância de se estabelecerem relações entre os sistemas literários e entre estes e a história, para o conhecimento mais apurado da realidade latino-americana, para o conhecimento da sua história completa: complexa, conflituosa, contraditória.

O crítico sustenta a necessidade de se rever o aparato crítico, de se ensaiarem “outras alternativas” que permitam a abordagem dessas literaturas de maneira completa, preservando e aquilatando suas peculiaridades, seu caráter heterogêneo. Com esse procedimento, evita-se o perigo, apontado por Cornejo Polar, de “a consciência da pluralidade literária latino-americana perverter-se ainda mais”, que é o que ocorre quando se finge uma “harmonia enganosa que oculta o conflito essencial de literaturas que não são menos quebradas do que a sociedade que as produz” (ibidem, p. 50).

Em suas considerações, Cornejo Polar reafirma, enfaticamente, a importância de se fundar “uma crítica verdadeiramente latino-americana” e cita a advertência de Mariátegui sobre “a urgência de se construir um sistema crítico

capaz de informar sobre as literaturas heterogêneas” (ibidem, p. 157) 47. No entanto, para que tal projeto se torne viável, inicialmente, é necessário identificar os aspectos fundamentais que caracterizam essas literaturas. Segundo Cornejo Polar, “cabe precisar a distância que separa as literaturas homogêneas das heterogêneas e determinar, conseqüentemente, as variações no tratamento crítico que lhes corresponde” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 161).

É no intuito de levar a termo esse propósito que o crítico peruano firma sua definição do que seriam as literaturas heterogêneas:

As literaturas heterogêneas (...) se caracterizam pela duplicidade ou pluralidade dos signos socioculturais do seu processo produtivo: trata-se, em síntese, de um processo que tem pelo menos um elemento não coincidente com a filiação dos outros, e que cria necessariamente uma zona de ambigüidade e conflito (ibidem, p. 162).

A partir da determinação desse conceito, podemos traçar um paralelo entre sua definição e o modo de produção de Me llamo Rigoberta Menchú y así me

nació la conciencia (1985), o que nos permitirá estabelecer as bases para sua

análise desde uma perspectiva que favoreça a compreensão de sua riqueza e diversidade: o referencial das literaturas heterogêneas.

A inegável abrangência do conceito de literaturas heterogêneas permite a sua articulação a narrativas de natureza diversa, o que o consagra como ferramenta primordial nos estudos literários, essencialmente no contexto latino- americano. Permite, não obstante, redescobrir a atualidade e a relevância das

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Contexto histórico do final da década de 1920, quando Mariátegui encontrava-se “profundamente comprometido na polêmica sobre o indigenismo”, segundo Cornejo Polar. Para maior entendimento, recomenda-se: MARIÁTEGUI, José Carlos: El proceso de la literatura peruana. In: ___. Siete ensayos de

teorias de Cornejo Polar, cujas inovadoras idéias ecoam ainda no pensamento atual, quando tomam vulto considerável as discussões em torno de conceitos correlatos como interculturalidade e hibridismo. Sobre este último, refletiremos mais adiante, de acordo com a proposta de Clifford (2002).

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 70-74)