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CAPÍTULO 3. PRÁTICAS E RITOS ELEITORAIS NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO

3.4. LITURGIA ELEITORAL

A descrição do processo eleitoral registrada nas atas oficiais oferece a possibilidade investigativa de acompanhar as solenidades e os ritos que marcaram as eleições no século XIX. A variedade de informações permite acompanhar as permanências e possíveis mudanças nas práticas sufragistas, bem como avaliar as formas de participação dos cidadãos. Esses são os objetivos desta seção. Para a análise, foram consideradas as atas encontradas entre 1824 e 1880. Para esse período, contabilizaram-se 183 atas, sendo 147 das eleições primárias e 36 do processo secundário. A investigação concentrou-se nos documentos produzidos pelas assembleias primárias. No entanto, as informações sobre o processo secundário foram utilizadas quando necessário.

No Espírito Santo, assim como no país, as eleições primárias eram realizadas nas igrejas matrizes das paróquias. Tratava-se de inovação instituída pela legislação Imperial,347 uma vez que os dispositivos portugueses do Antigo

Regime definiam as Câmaras como locais para o pleito da vereança. Sobre a alteração, Ana Marta Rodrigues Bastos aponta o espaço do edifício religioso e as inúmeras igrejas espalhadas pelo território como elementos que motivaram a opção dos legisladores pela matriz.348 Para além da estrutura organizativa, a

autora explica que a Igreja tornava-se expediente poderoso de mobilização eleitoral do cidadão, haja vista a importância dos valores e ritos religiosos para a sociedade da época.

Desse modo, o cerimonial das eleições absorveu parte da liturgia católica. Dentre os principais ritos que solenizavam o processo eleitoral, pode-se destacar a celebração da Missa do Espírito Santo, a fala do sermão do pároco e o canto do Te Deum Laudamus. O caráter religioso das eleições também era

347 BASTOS, 1997, p. 25 - 33. 348 BASTOS, 1997, p. 32 - 33.

visível em países da América Hispânica da época, cujos ritos se configuravam idênticos aos observados no Brasil.349

A Missa do Espírito Santo marcava a inauguração do ato eleitoral, tanto das eleições primárias quanto das secundárias. Em sua dissertação, Evaristo Pimenta associa a prática dessa cerimônia com o princípio mobilizado também para a seleção papal. Para o autor, a invocação do Espírito Santo nas eleições tinha o intuito de marcar a sua natureza sagrada e legitimar seus resultados vindouros.350

Em seguida, “eleitores e suplentes, cidadãos votantes e espectadores” assistiam ao sermão ou à oração elaborada pelo padre cujo tema versava sobre as eleições.351 Tratava-se de uma “preleção eleitoral” com conteúdo

político que, além de preconizar princípios constitucionais, também instruía os fiéis sobre a importância do ato cívico e eleitoral.352

Por fim, o resultado da votação era solenizado com o cântico do Te Deum Laudamus. Diferentemente dos demais ritos, esse não contemplava as eleições de juízes de paz e vereadores.353 Após a escolha dos eleitores, nas

assembleias primárias, e dos deputados, nos colégios eleitorais, o hino religioso era cantado na igreja matriz, formalizando o fim da votação. Para Evaristo Pimenta, o ritual religioso pode ser compreendido como a diplomação dos eleitores e deputados, uma espécie de cerimônia de investidura de poderes legitimada pela religião.354

O cumprimento de tais rituais era obrigatório na liturgia eleitoral. Razão pela qual a informação sempre constava nas atas. A ausência das solenidades

349 GUERRA, François-Xavier. El Soberano y Su Reino: reflexiones sobre la Genesis el

ciudadano en America Latina. In: SABATO, Hilda (Org.). Ciudadania Politica y Formacion de

Las Naciones: perspectivas históricas de America Latina. México: Fondo de Cultura

Económica, 1997. p. 52.

350 PIMENTA, Evaristo Caixeta. As urnas sagradas do Império do Brasil: governo representativo

e práticas eleitorais em Minas Gerais (1846-1881). Dissertação [Mestrado em História] – Programa de Pós-Graduação em História, UFMG, Belo Horizonte, 2012. p. 167 - 168.

351 APEES, Série Accioly, Livro 41, Ata de eleição de eleitores da Freguesia de Guarapari,

1847.

352 CARVALHO, José Murilo; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (Org.) Guerra literária: panfletos da independência (1820-1823). v. 3. Belo Horizonte: Humanitas, 2014. p. 11

(Introdução).

353 Não há menção na Lei de 1846 e nas seguintes. 354 PIMENTA, 2012, p. 187.

poderia, inclusive, fundamentar requerimento de nulidade do escrutínio. Nota- se, por isso, o zelo no registro e a anotação dos motivos nas ocasiões em que os atos cívico-religiosos não eram realizados.

Em geral, a ausência do pároco justificava a não realização das celebrações. Esse foi o caso ocorrido no pleito da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Linhares, em 1847. Em ata foi anotado que a missa não foi rezada “por não haver pároco ou sacerdote”. A vacância do posto, segundo consta no documento, decorreu do falecimento do antigo vigário, Manoel Alves de Souza.355

Naquele mesmo ano, na Freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Benevente, a falta do padre motivou a convocação da autoridade religiosa da paróquia vizinha. Às vésperas da eleição, o Presidente de Província notificou o Frei Gregório Maria de Bem para celebrar os atos solenes daquela eleição. No entanto, o Frei convidado apenas rezou a missa, justificando que, por ter sido chamado no último momento, não teve tempo hábil para preparar o discurso habitual.356

O Presidente de Província parecia regular a ocorrência de tais práticas, visando, assim, evitar as nulidades dos processos eleitorais. Nesse sentido, a Mesa Paroquial da Freguesia de São José do Queimado lhe enviou ofício informando não ter sido executado o cântico do Te Deum. De acordo com o documento, além do pároco não se encontrar na localidade, também não havia música para solenizar o ato.357

Resta observar a tradição desses rituais. Sobre as festividades dinásticas e os ritos políticos da América Portuguesa no transcorrer do século XVIII, Silvia Hunold Lara descreve a realização de missas e a récita do Te Deum como

355 APEES, Série Accioly, Livro 41, Ata da eleição de eleitores da Freguesia de Nossa Senhora

de Assunção de Benevente,1847.

356 APEES, Série Accioly, Livro 41, Ata de eleição dos eleitores da Freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Benevente, 1847. Na década seguinte, houve caso semelhante em

Itapemirim.

357 APEES, Fundo Governadoria, Série 383, Livro 97, Ofício da Mesa Paroquial da Freguesia

componentes da cultura do antigo Regime Português.358 Havia, ainda, a

presença de práticas similares nas festas populares das irmandades religiosas do Brasil. Na capital da Província do Espírito Santo, já no século XIX, além das missas e do hino do Te Deum, os eventos das confrarias eram marcados por procissões e festas. 359

A incorporação de antigas práticas à liturgia eleitoral do século XIX demonstra que os ritos não constituíam marco específico das atividades eleitorais ou somente religiosas. Na verdade, compunham parte dos costumes e das tradições dos paroquianos. Apesar das mudanças da legislação sobre a matéria ao longo do Oitocentos, a liturgia eleitoral manteve-se invariável. Até mesmo a legislação de 1846 que dispensou a reunião dos colégios eleitorais de serem realizados em templos religiosos não surtiu efeito na Província do Espírito Santo. Na prática, as eleições de segundo grau permaneceram no espaço da Igreja até 1880.360 No ano seguinte, porém, a Lei Saraiva encerrou

todo o cerimonial sagrado.