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O livro didático de geografia como território de uma “guerra de imagens”

5. IMAGEM E VISIBILIDADE ESPACIAL: A COLAGEM COMO CONTRAPONTO

5.1 O livro didático de geografia como território de uma “guerra de imagens”

As análises, realizadas no capítulo anterior, permitem enxergar a política nacional de livros didáticos enquanto uma guerrilha jurídico-legal, sintetizada num volume gigantesco de discursividade destinada a disciplinar, normatizar, mas principalmente regular os saberes dos livros. Esse campo de saberes, institucionalizado no PNLDEM, incide, na Contemporaneidade, ambientando a produção didática, tornando-a possível em termos econômicos, regulando, nesse sentido, a função enunciativa e articulando as formações discursivas e não- discursivas que o constituem. Enquanto operador da governamentalidade neoliberal, o discurso jurídico-legal recorta, seleciona, exclui e incita uma série de práticas editoriais sobre a imagem.

Se o visível e o enunciável entram em duelo, é na medida em que suas formas respectivas, como formas de exterioridade de dispersão ou de disseminação, transformam-no em dois tipos de multiplicidade, nenhum dos quais pode ser reduzido a uma unidade: os enunciados só existem numa multiplicidade discursiva, e as visibilidades numa multiplicidade não-discursiva (DELEUZE, 2013, p. 90).

Para compreender alguns dos papéis que a imagem desempenha no livro didático na Contemporaneidade, assumi que a multiplicidade de linguagens imagéticas que habitam suas páginas atua na materialização de um “regime de visibilidade espacial”. Ele se constitui a partir das diferentes composições não- discursivas que, juntamente com os textos, organizam os saberes geográficos que circulam nos livros didáticos do Ensino Médio. No sentido da problematização aqui proposta, o regime de visibilidade espacial opera nos saberes geográficos a partir de uma variedade de produções gráficas: mapas, gráficos, paisagens, infográficos, ilustrações, charges, tabelas e fotografias.

Imagem amarrada ao texto entremeado por coordenadas discursivas marcadas na espacialidade da página, como um mapa para ler mapas, fotografias, imagens, gráficos... Às vezes, inclusive, destacado em negrito, como “observe a figura x” ou “com base no mapa y”; “examine o mapa na página z” manipulada em escala e profundidade, distorcendo a relação entre o corpo que lê e o projetado na página do livro, e inundada de legendas, fontes e especificações técnicas. Cada “produto

imagético”, com sua respectiva “descrição”, “declaração de origem” e “proprietário”, faz lembrar um “catálogo de saberes”, com imagens prontas para serem consumidas ou descartadas, arrisco que, em parte, pela espacialidade em que são projetadas nas páginas dos manuais. A reflexão de Deleuze (2013, p. 76) sobre as relações entre visível e enunciável pontua que, na análise dessas duas “formas” do saber, é preciso considerar “[...] heterogeneidade das duas formas, diferença de natureza ou anisomorfia, pressuposição recíproca entre as duas, combates e capturas mútuas, primado bem determinado de uma sobre a outra”.

Ainda seguindo a trilha do entendimento de Deleuze, “[...] todo saber vai de um visível a um enunciável, e inversamente; todavia não há forma comum totalizante, nem mesmo de conformidade ou de correspondência biunívoca (DELEUZE, 2013, p. 48), então, é imprescindível organizar estratégias analíticas para problematizar o regime de visibilidade espacial dos livros didáticos de Geografia, dado seu papel no posicionamento dos corpos dos estudantes do Ensino Médio no Brasil. Na perspectiva que assumo nesta investigação, os procedimentos analíticos não objetivam o desvendamento ou análise do discurso que amarra elementos visuais e texto, visibilidade e discurso, imagem e legenda, mas a problematização das estratégias que incidem no seu potencial de subjetivação espacial mobilizado pelas variáveis visuais do livro. Uma vez que “Não há modelo de verdade que não remeta a um tipo de poder, nem saber ou sequer ciência que não implique ato, um poder se exercendo (DELEUZE, 2013, p. 48)”; a descrição do regime de visibilidade presente nos livros, feita a partir da quebra ou destruição dos caligramas que o constituem, propõe compreender as visibilidades do saber em sua especificidade e a multidimensionalidade a partir da qual são constituídas.

A investigação de Gruzinski (2006) sobre a “Guerra de Imagens” que balizou a colonização e expropriação espanhola na América Central, especialmente no México, a partir do século XV, parece-me instigante para problematizar o papel da imagem, enquanto prática não-discursiva, nos processos que envolvem a subjetivação espacial a partir da ativação de determinados saberes. Entendo por subjetivação espacial, o delineamento no sujeito e/ou numa população, de relações específicas com o espaço habitado. Relações que envolvem não apenas aquilo que se diz ou que se fala sobre algum lugar, mas aquilo que se faz visível no jogo das relações de poder e moldam o sujeito nesse movimento.

A partir da contextualização histórica de diferentes práticas sociais envolvendo a utilização de imagens religiosas como estratégia de produção de saberes, que balizariam a apropriação do espaço colonial, Gruzinski (2006) realizou um conjunto de incisões analíticas sobre os quadros visuais das relações de poder traçadas num período anterior à Modernidade, que, por sua vez, sintetizou uma luta permanente envolvendo a significação imagética. Uma luta que, segundo o autor, marca a produção de sentido na espacialidade mexicana até a Contemporaneidade. Nas palavras do autor:

Por ser a imagem, junto com o texto, um dos instrumentos maiores da cultura europeia, a gigantesca empreitada de ocidentalização que se abateu sobre o continente americano assumiu – ao menos em parte – a forma de uma guerra de imagens que se perpetuou séculos a fio e que nada indica que esteja encerrada (GRUZINSKI, 2006, p. 15).

Gruzinski (2006) descreve, a partir de diferentes documentos e tendo como referência a problematização de um múltiplo e complexo quadro imagético, uma série de articulações políticas, orientadas a partir do papel da religião como campo de saberes e estratégia colonizadora. Tais articulações envolvem: a) sujeitos, a partir das posições de comando ocupadas por alguns personagens que ele estabelece na análise (tais como os chefes das primeiras expedições colonizadoras ou líderes religiosos locais, que atuaram nas primeiras trincheiras da guerra); b) instituições, como a igreja católica em suas diferentes variáveis vocacionais (franciscanos, beneditinos e jesuítas); c) a Coroa espanhola e as práticas de governamento que se organizavam na perspectiva da soberania, que imprime uma lógica de apropriação de um espaço já ocupado e, consequentemente, outro regime de visibilidade; e d) espacialidades (americana, espanhola, mexicana, europeia e colonial), uma vez que é a partir dessas referências espaciais que foi possível mapear os conflitos, os recuos, contra-ataques e uma série de outras posições assumidas em função dos contextos em que se localizavam, ao longo do recorte temporal definido pelo autor, sujeitos, instituições e as respectivas práticas desenroladas nessa relação.

Obviamente, a extensão é tomada aqui como condição de espacialidade, ou seja, como um dado inerente às práticas sociais mediadas por diferentes regimes de visibilidade. A utilização da imagem como prática de saber para subjetivação das lógicas espaciais (do império mexicano ou espanhol) teve destaque no processo

colonizador em função de uma série de razões. Em primeiro lugar, a massa de analfabetos na Europa e as diferenças linguísticas com a América posicionaram as imagens cristãs no centro da estratégia colonizadora. Nas palavras de Gruzinski (2006, p. 41), foi a “[...] consciência aguda dos recursos múltiplos oferecidos pela imagem: a transmissão, a fixação, a visualização de um saber” que fez a visibilidade operar, de maneira preponderante, na produção da espacialidade que ainda hoje liga a Espanha e o México.

Foram, nesse sentido, as possibilidades de transmissão, fixação e visualização dos saberes a partir das imagens, que operavam na ambientação da colonização, no estabelecimento de outra lógica espacial, destinada a operar sobre os corpos e as populações indígenas da América Central. Nas palavras de Gruzisnki (2006, p. 120), “[...] o aparecimento da imagem dos invasores questionava muitas coisas. Ao subverter o espaço-tempo tradicional, ela prefigurava outras irrupções que, a cada vez, abalariam os hábitos visuais das populações”.

As práticas que balizaram essa lógica-outra de subjetivação espacial, a partir da dita “guerra de imagens” descrita por Gruzinski (2006), foram múltiplas e tiveram suporte de diferentes tipologias imagéticas. Além disso, elas envolveram táticas mútuas de apropriação cultural, técnica, simbólica e, obviamente, espacial dos sujeitos e populações envolvidas no processo colonizador. As reflexões, nesse sentido, sobre a multiplicidade das práticas de produção de imagens (pintar, esculpir, reproduzir, fotografar, digitalizar) e as correspondentes tipologias visuais (escultura, pintura, mural, fotografia, imagem digital) dão margem para compreender como, em diferentes contextos da história mexicana, a espacialização ou a subjetivação espacial de determinados saberes religiosos, fez-se e ainda se faz pela via das visibilidades.

As reflexões de Gruzinski (2006) abrem, nesse sentido, um amplo campo de possibilidades analíticas sobre o papel da imagem como campo de subjetivação espacial que atua na articulação das relações de poder e das práticas de saber no território mexicano ao longo de diferentes “estratos históricos”, para usar uma denominação de Deleuze (2013). Tomo emprestado o rigor da análise de imagens realizada por Gruzinski (2006) para posicionar o livro didático de Geografia do Ensino Médio como um dispositivo de subjetivação espacial, ou seja, como um espaço em que se encontram diluídos, em articulação, visibilidades e enunciados.

É possível situar os livros didáticos, a partir desse entendimento, no jogo das relações de poder-saber-sujeito que o tornam possível e desejável em diferentes contextos espaço-temporais. Esse posicionamento sobre o livro, no contexto de estratégias de governamentalidade neoliberal em operação na Contemporaneidade, envolve a ativação simultânea de estratégias disciplinares, biopolíticas e reguladoras. A ativação de tais estratégias é descrita a seguir, a partir dos procedimentos de análise das obras.