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OUTRA TRAVESSIA: A NARRATIVA EM ABISMO E O EXCESSO

2.1 O livro em excesso

Analisamos, no Capítulo 1, as referências e leituras comparadas que a narrativa de Nossos Ossos promove e consideramos como helenização. A partir de agora, tratamos dos excessos observados tanto na construção da narrativa, em mise en abyme, como no jogo de palavras. Esse jogo de excessos na obra retoma as características barrocas e neobarrocas como expressão de uma prática pós-moderna que expõe, entre tantas questões, uma irregularidade temporal e a montagem do texto.

Tal irregularidade, sobre o Barroco histórico, foi definida em dois estilos: cultismo e conceptismo. De forma geral, enquanto cultismo significa jogo de palavras, conceptismo remete ao jogo de ideias. Péricles Eugênio da Silva Ramos (1967), na “Introdução” de Poesia Barrôca: antologia, destaca tanto os elementos do cultismo – metáforas, vocabulário, jogo de palavras –, quanto do conceptismo – formas poéticas, jogo de ideias, mitologia, presença da terra. Esses elementos, assim como a divisão entre as características da poesia barroca, são mais didáticos e estanques do que a maneira como aparecem nos poemas analisados pelo crítico. Para justificar a sua ideia, Péricles Ramos recorre a Hernani Cidade, na obra Lições de cultura e Literatura Portuguesa, de 1933, na qual o pesquisador português afirma:

Cultismo ou conceptismo são contudo duas faces da mesma realidade, dois aspectos de um conceito único de poesia – o que reduz a uma atividade puramente lúdica. Não exprime a vida; distrai a vida. Sobrepõe ao plano da realidade o plano do ideal, ou melhor – do fantástico, construído com o que nela haja de mais formoso e puro, fulgurante e nobre, para ele provocando a evasão da sensibilidade, imaginação e inteligência. (CIDADE, 1984, p. 449)

De acordo com o excerto, os elementos da arte barroca na literatura são considerados como expressão desse movimento relacionado à evasão da própria sensibilidade. Reconhecemos, no romance de Marcelino Freire, tanto o jogo de palavras – dualidade de significação dos títulos dos capítulos, por exemplo –, quanto o jogo de ideias – a montagem do texto em mise en abyme, a retórica do narrador. Há, no romance, uma construção voltada à temática da morte, aos ossos e à perecebilidade humana. O narrador póstumo, então, ressalta o trabalho excessivo enaltecendo a produção do romance como exercício ficcional de composição e do objeto acabado, ou

um exercício de construção heroica do narrador, que consideramos como helenização no Capítulo 1.

Não podemos desconsiderar, ainda no que diz respeito ao Barroco histórico, a distância temporal entre a corrente artística dos séculos XVII e XVIII e Nossos Ossos enquanto obra do século XXI. Octavio Paz, em Os filhos do barro, escrito em 1970, produz ensaios nos quais discute a respeito de a literatura ter suas críticas e escolas literárias baseadas em uma “tradição da ruptura”. Ainda que as obras lançadas na contemporaneidade expressem o próprio tempo vivido, também são frutos dessa constante necessidade do que veio após os anos 1950 em romper com a tradição. O poeta e ensaísta mexicano afirma que o homem é o que supre essa distância criada entre o que é contemporâneo e o que é tradicional:

[...] talvez as oposições entre as civilizações recubram uma unidade secreta: a do homem. Talvez as diferenças culturais e históricas sejam obra de um autor único e que muda pouco. A natureza humana não é uma ilusão: é a invariante que produz as mudanças e a diversidade de culturas, histórias, religiões e artes. [...] Ao mudar nossa imagem do tempo, mudou nossa relação com a tradição. Ou melhor, pelo fato de ter mudado nossa ideia do tempo, tivemos consciência da tradição. (PAZ, 2013, p. 21)

Entendida como produção humana, e de acordo com o que traça Paz acerca do homem ser o unificador dessas oposições, a literatura também tem passado por mudanças ao modificarmos a nossa consciência sobre o tempo. Dentre várias transformações, podemos citar a passagem da tradição da literatura oral para uma tradição escrita; assim como o advento das tecnologias de impressão e publicações para meios digitais. Deste modo, temos nos adaptado cada vez mais à agilidade e aos novos formatos das produções literárias. Isso não muda o que produzimos, mas muda a forma de produzir e consumir os textos. Além de o homem ser responsável pelas mudanças no decorrer da consciência do tempo, outro fator é apresentado por Paz como manutenção da tradição da ruptura:

O mundo não é um conjunto de coisas, mas de signos: o que chamamos de coisas são palavras. Uma montanha é uma palavra, um rio é outra, uma paisagem é uma frase. E todas essas frases estão em contínua mudança: a correspondência universal significa perpétua metamorfose. O texto que é o mundo não é um texto único: cada página é a tradução e metamorfose de outra, e assim sucessivamente.

O mundo é a metáfora de uma metáfora. O mundo perde sua realidade e se transforma numa figura de linguagem. (PAZ, 2013, p. 79)

A literatura, então, funciona como expressão desse conjunto de coisas representadas e em constante metaforização e sujeita a metamorfoses. Nossos Ossos, como foco deste trabalho, pode exemplificar as metamorfoses que não são exclusivas dessa obra, mas que instituem a sua forma singular de representação. O trabalho da intertextualidade é um fenômeno próprio da literatura, conforme apontam os estudos de Julia Kristeva, em Introdução à semanálise, de 1969, em que postula que “a linguagem poética é uma infinidade do código”, “o texto literário é um duplo: escritura-leitura” e “o texto literário é uma rede de conexões” (KRISTEVA, 2005, p. 99).

Octavio Paz, ainda apresentando a forma com que as vanguardas metamorfoseiam ou retomam a intertextualidade com os clássicos na modernidade, traz o exemplo de Góngora, poeta expoente da literatura barroca:

[...] em 1927, data do terceiro centenário da morte de Góngora, há uma mudança de rumo. A reabilitação de Góngora foi iniciada por Rubén Darío e depois vieram estudos de vários críticos eminentes. Mas a ressurreição do grande poeta andaluz se deve a duas circunstâncias: uma é que entre os críticos se encontrava um poeta, Dámaso Alonso; a segunda, decisiva, é a confluência que os jovens espanhóis viam entre a estética de Góngora e da vanguarda. [...] O formalismo da vanguarda se associava, no espírito dos poetas espanhóis, ao formalismo de Góngora. (PAZ, 2013, p. 149)

A análise de Octavio Paz reforça a sua visão de que as produções literárias, na tentativa de romper com as formas que as antecederam, na verdade as retomam, uma vez que têm em comum o exercício de romper o tempo entre um agora e o que o antecedeu. O exemplo tratado no trecho destacado corrobora essa visão, pois mais de três séculos após a morte do poeta barroco, os críticos identificaram semelhanças entre as estéticas. Há que destacar, portanto, o trabalho dos críticos literários em identificar e resgatar essas estéticas conhecidas e produzidas mesmo que em tempos distantes.

É nesse sentido, da retomada da intertextualidade com o barroco histórico, que Irlemar Chiampi confirma os elementos provocadores de sua investigação por mais de vinte anos de pesquisa, capazes de produzir o neobarroco na literatura latino-americana: a proliferação, a amplificação, a mise en abyme e a metaforização obscura (CHIAMPI, 1998, s/n). Para a autora, escritores como Alejo Carpentier, José Lezama Lima,

Guimarães Rosa, Jorge Luís Borges, Severo Sarduy, dentre outros, retomam a característica do movimento literário do século XVII na medida em que se demonstra “ser artificial ao ponto de comprometer a verossimilhança” nas representações da natureza, na sobrecodificação das imagens, na enunciação narrativa e teatralização dos signos e sedução do texto. (CHIAMPI, 1998, s/n),

Um outro exemplo que dá sequência ao trabalho realizado por Chiampi é o de Karl Erik Schøllhammer em “O cenário ambíguo – Traços barrocos na prosa moderna”, da obra Além do visível: o olhar da literatura, de 2007, realizando o exercício de destacar outros autores da prosa latino-americana que produzem textos esteticamente ligados ao barroco, no sentido de uma ornamentação tendenciosa à substituição da coerência dos signos. Segundo o crítico, há como resultado “[...] uma sobrecarga sensual da representação de elementos significativos que, [...] desafiam a possibilidade de construção de um sentido e beiram o abismo da não-representação absoluta.” (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 55)

Na continuidade das constatações de Irlemar Chiampi, Karl Schøllhammer identifica traços barrocos principalmente pela “[...] subversão sígnica da representação [...] que provoca o questionamento da temporalidade linear e unificadora da subjetividade romântica, como centro e fundamento produtivo de sentido.” (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 60). Ao provocar esse questionamento, o crítico coaduna ao pensamento da pesquisadora e professora brasileira, que estudou esse diálogo constante do barroco com o pós-moderno, por justamente já representar instabilidades nas grandes narrativas fundadoras dos valores da modernidade.

Para não perder de vista o objeto de análise neste trabalho, consideramos esse diálogo com o barroco estético um eixo fundamental para observação dos excessos de montagem – a mise en abyme – e de significação das palavras em Nossos Ossos. Em primeiro lugar, destaca-se a falta de linearidade temporal do romance, conforme apontamos nas análises dos tempos verbais no Capítulo 1. Esse artifício, no romance de Marcelino Freire, cria, a partir dessa montagem, dobras temporais que deslocam o leitor para vários pontos, deixando, após o cair do pano, alguns espaços relevantes na construção de sentidos e algumas informações não reveladas, ficando a cargo do leitor interpretações diversas. Desta forma, novamente, reafirmando o olhar barroco que

questiona o que está no interior da obra e o que ocorre no exterior ao entrar em contato com o espectador.

Nossos Ossos também revela o nível conotativo da linguagem. Destacamos o trabalho na escolha dos títulos dos capítulos do romance de Marcelino Freire, por ser o trabalho mais representativo na renúncia do nível denotativo das palavras nesta obra. Além da diversidade do tempo psicológico e organização não linear da narrativa, esses títulos também refletem escolhas do narrador-operador que, frente aos olhos do leitor, propõe um abismo de significações dos títulos curtos, remetendo tanto a objetos quanto a ossos ou partes acessórias e minúsculas do corpo humano, na montagem desse quebra- cabeça.

Essas duas questões estão identificadas por Severo Sarduy, em “Por uma ética do desperdício” (1979), em seu livro Escrito sobre um corpo, baseado nas suas observações a respeito do Barroco e toda sua “extravagância”:

Não seguiremos o deslocamento de cada um dos elementos que resultaram desta explosão que provoca uma verdadeira cisão no pensamento, um corte epistemológico cujas manifestações são simultâneas e explícitas: a igreja complica ou fragmenta o seu eixo e renuncia a um percurso preestabelecido [...] a cidade se descentraliza, perde sua estrutura ortogonal, seus indícios naturais de inteligibilidade – fossos, rios, muralhas –; a literatura renuncia a seu nível denotativo, ao seu enunciado linear; [...] (SARDUY, 1979, p. 58)

O trabalho de Sarduy, conforme trecho destacado, foca-se em explicar o neobarroco a partir de textos contemporâneos à sua escrita, em contraste com o barroco existente nos séculos XVI e XVII, o qual tratava de uma cisão do pensamento do homem – a metáfora de uma pérola irregular – que necessitava contrapor-se aos pensamentos reformistas e, por fim, encontrava-se representada desde a vida no espaço religioso até na própria cidade atravessada por esse pensamento. Entretanto, pensa-se somente como o movimento histórico é reducionista, uma vez que os textos recentes da literatura expressam, por vezes, essa mesma cisão descentralizadora, segundo ele, marcada por “[...] extrema artificialização praticada em alguns textos, e sobretudo em alguns textos recentes da literatura latino-americana, já bastaria para assinalar neles a instância do barroco.” (SARDUY, 1979, p. 60).

Karl Schøllhammer identificou, ainda, na produção ficcional de Severo Sarduy, essas tendências que o crítico cubano alcunhou como neobarroco. Segundo nos

apresenta Schøllhammer, na visão de Sarduy, o neobarroco não revive as bases do barroco histórico, mas as instabilidades do próprio sujeito em seu tempo também refletidas na arte:

[...] o neobarroco expressa, por sua vez, uma problematização do “ser contínuo” no tempo, manifestando-se em obras não-centradas, cujo emissor não é reconhecível e por trás do qual não se encontra uma subjetividade íntegra, mas uma multiplicidade de pulsões e fluxos sensuais e eróticos. (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 59)

Percebemos, portanto, uma tendência do neobarroco na problematização do sujeito manifestado na arte de forma não-centrada e com uma subjetividade, tal como a de Heleno de Gusmão em Nossos Ossos: múltipla, com histórias diversas sobre sua vida pessoal, levando o leitor a estar próximo a essa voz narrativa e a se comover com tanta errância. Schøllhammer, em seu trabalho crítico, também aponta características em comum aos autores identificados com essa estética:

O traço ornamental se traduz por uma saturação de significantes, uma sobre-codificação linguística que desvirtua a funcionalidade comunicativa das palavras e ameaça o sentido subjacente, privilegiando a sensualidade material da linguagem. A integridade do emissor enunciativo é colocada seriamente em questão num discurso formado pela polifonia de vozes, sem pretensão de autenticidade, misturando todo tipo de citações e rememorações com “falas” que partem, não de uma subjetividade consciente de si, mas de pulsões corporais, eróticas e heterogêneas. [...] As narrativas abdicam de seguir uma progressão linear no tempo em favor da instauração de uma superposição de espaços simultâneos, de trajetórias labirínticas, sob as quais as causas da ação humana são desafiadas e postas em questão. Essa tendência narrativa favorece a teatralidade, o mascaramento, a simulação da realidade. (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 59)

Alguns pontos do excerto foram tratados no Capítulo 1, como a teatralidade e a montagem do romance como um espetáculo. Outro ponto será tratado no Capítulo 3, a saber, a voz enunciativa, que revela uma série de discursos sociais que estimagtizam certas identidades. Na sequência, portanto, trataremos do trabalho material com a palavra e as dobras da narrativa ou mise en abyme.

A partir destes pressupostos, procederemos à análise do romance de Marcelino Freire nos aspectos que selecionamos, de modo a não perdermos de vista o texto de Severo Sarduy, “Por uma ética do desperdício” (1979). Pretendemos com isto encontrar

as características que ele mesmo reconhece para o neobarroco e que são contundentes para o que consideramos excessivo na narrativa, dando a ela essa artificialidade e ornamentação. Assim, analisaremos no próximo tópico esse excesso de elementos.