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Livro-reportagem

No documento Literatura e Jornalismo literário (páginas 45-51)

Capítulo 5 – Outras relações

5.3 Livro-reportagem

Os livros-reportagem são, por norma, escritos por jornalistas e resultam de factos reais que, com uma certa mistura com a ficção, resultam em livros, ou romances. Esta, pode ser uma alternativa para o jornalista diante da falta de espaço na imprensa escrita para aprofundar um determinado assunto. Porém, os livros-reportagem não têm grande uso em Portugal. O mesmo não acontece no Brasil, onde a lista de nomes é abundante. Um dos exemplos é o

jornalista brasileiro Zuenir Ventura, que trabalhou na revista Veja e no Jornal do Brasil, entre outros, que escreveu o livro-reportagem 1968, o Ano que não Terminou, fundamentando-se na repressão instalada no país quatro anos antes dessa data e conservada pela ditadura militar.

Neste género de maior fôlego, responder às seis questões fundamentais da pirâmide invertida deixou de ser um fator obrigatório nos livros-reportagem. Os acontecimentos passam de um artigo jornalístico às páginas de um livro, o que faz com que ganhem um sentido variado. Deixam de estar presos à imagem de um órgão de informação, que acaba por ser passageira, e através de uma construção que se torna mais literária, é possível verificar que esses acontecimentos ganham um caráter mais complexo e humano. Os livros-reportagem, sem estarem vinculados a qualquer linha editorial acabam por ser dos exercícios mais livres do jornalismo. Neste contexto é possível apurar e tratar os factos com maior exatidão, na medida em que se verifica que é feita uma investigação sem pressas e sem condicionamentos finais, sendo que, à partida, já se sabe que não existem limites de espaço para o trabalho que está a ser produzido.

Como já foi possível verificar, jornalismo e literatura caminham lado a lado, contribuindo dessa forma para a confluência de novos modelos narrativos. O livro-reportagem é um exemplo de narrativa onde ocorre essa interação jornalístico-literária. Carla Lavaroti e Nincia Ribas Borges Teixeira apresentam na revista de comunicação Verso e Reverso, um estudo sobre esta temática, onde defendem que “a narrativa da reportagem e a narrativa literária, em especial, o conto, partilha, muitas vezes, elementos como a clareza dos factos, o aspeto de novidade e a força que causa nos leitores, ou seja, o despertar no leitor da vontade de ler e chegar ao fim para conhecer o seu resultado. É nesse momento que o texto mostra parte da sua intensidade. A clareza é elemento fundamental ao jornalismo para que o leitor tenha uma compreensão satisfatória da obra.” (Lavaroti e Teixeira, 2009). Particularmente na reportagem, este elemento é imprescindível para que a leitura seja coesa e não se perca.

Os factos reais, tal como acontece no jornalismo, são também abordados pela literatura, que nem sempre é ficcional. Porém, sempre que uma obra é definida como tal, passa a ser encarada como um retrato da realidade. Segundo a Teoria da Estética da Receção, o leitor adquire um papel importante na obra, já que participa no processo criativo desta, ao mesmo tempo que tenta decifrar o texto literário. De acordo com Wofgang Iser, existe nos textos de ficção uma relação entre o real, o fictício e o imaginário.

“Quanto ao aspeto da ficcionalidade do texto literário, observa-se que em tempo de híper- informação, os textos literários utilizam-se, muitas vezes, de factos reais.” (Lavaroti e Teixeira, 2009). Exemplos disso são os romances policiais, as biografias autorizadas, e as narrativas de viagem, onde a ficção e a realidade se misturam de forma tão harmoniosa que podemos até dizer que é quase impossível distinguir os limites entre o real e o ficcional.

Segundo Edvaldo Pereira Lima, citado por Lavaroti e Teixeira, o livro-reportagem “de um lado, amplia o trabalho da imprensa cotidiana, como que concedendo uma espécie de sobrevida aos temas tratados pelos jornais, pelas revistas e emissoras de rádio e televisão. De outro, penetra em campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos jornalísticos periódicos, recuperando para o leitor a gratificante aventura da viagem pelo conhecimento da contemporaneidade” (Lavaroti e Teixeira, 2009).

Desse modo, o livro-reportagem pode ser considerado, segundo Lima “mais do que um simples repetidor de padrões e formas de praticar a comunicação jornalística com o público, esse veículo renova e dinamiza, principalmente quando trabalha, com todo o seu arsenal de possibilidades, a grande reportagem” (Lavaroti e Teixeira, 2009). Essa característica da liberdade temática, de perspetiva, de escolha de fontes e abordagem, oferece condições ao jornalista para ir mais além dos limites impostos pelo jornalismo convencional, e para poder explorar o vasto território de possibilidades do livro-reportagem.

Segundo Edvaldo Pereira Lima “percebemos que a presença do hibridismo jornalístico- literário nas narrativas de livros-reportagens torna-os um género irreverente e rompedor de fórmulas e chavões em alguns casos, o livro-reportagem exerce função recicladora da prática jornalística, porque ousa incorporar contribuições conceituais e técnicas provenientes de áreas como a literatura e a história” (Lavaroti e Teixeira, 2009). Podemos assim considerar que uma das funções do livro-reportagem é preencher os vazios deixados pelo jornalismo periódico.

Para Lima, “enquanto o jornalismo comum é efémero, sua mensagem sendo pouco retida pelo leitor e caindo logo no esquecimento, o livro-reportagem tenta combater essa tendência, procurando unir a permanência à profundidade.” (Lavaroti e Teixeira, 2009).

Em modo de conclusão “Da mesma forma que o jornalismo, a literatura não se resume em total ficcionalidade (…) o autor, ao escrever, estará sempre respaldado por uma experiência de vida, atravessada por valores éticos, morais, religiosos, sociais, etc. Daí encontrarmos, na literatura, representações do mundo social” (Lavaroti e Teixeira, 2009).

5.4 O Folhetim

“Ninguém pode entender o século XIX português se não sentir a comodidade e a dissipação da sua vida no rodapé de jornal chamado ‘folhetim’. Mais do que um género literário ou modo tipográfico de acomodação da escrita, o folhetim era uma autêntica forma social, um lugar onde podemos surpreender os nossos avós e bisavós em flagrante delito de convívio.”

Vitorino Nemésio, “O Folhetim” Diário Popular (Lisboa), 22-III-1950, p. 5 – Citado por Ernesto Rodrigues,

No século XIX “Considera José Pedro Machado, na entrada do seu Dicionário Etimológico da

Língua Portuguesa, que o folhetim nasceu em 1790 como termo de encadernação, adquirindo

o moderno sentido em 1813” (Rodrigues, 1998, p. 201) o folhetim – termo que designa uma categoria jornalística que teve o seu início em França “do francês feuilleton” e que nos chegou através do castelhano folletín, era, para alguns autores, um meio de expressão mais facilmente acessível aos leitores do que um livro. Entendido por muitos como um género de jornalismo literário, o folhetim terá sido introduzido em Portugal por Evaristo Basto. A esse propósito, Ernesto Rodrigues cita João de Araújo Correia que afirma “Essa espécie literária, terá sido introduzida em Portugal por Evaristo Basto – homem de pena leve e cintilante. Falecido em 1865, deixou dispersos, nos jornais da sua época, nomeadamente o Nacional, rodapés modelares.” (Rodrigues, 1998, p. 234). Evaristo Basto, a quem Camilo Castelo Branco chamou de “príncipe dos folhetinistas” – dele diz, no Eusébio Macário, que foi “o criador do folhetim no Porto”, e não em Portugal.

Ernesto Rodrigues, no Mágico Folhetim (1998), sua tese de doutoramento e considerado por muitos autores um título de referência, manifesta na obra a importância deste género e demonstra como ao longo dos vários anos, ele assegurou o lugar da literatura nos jornais, funcionando assim como ponto de união entre ambos. Exemplo disso são as obras de Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco ou Júlio Dinis, que agora apenas conhecemos em livros, mas que estiveram, no passado, retratadas nas páginas do Diário de Notícias,

República, Diário Popular, Diário de Lisboa e Capital, entre outros.

Vitorino Nemésio, citado por Ernesto Rodrigues, foi o primeiro a ver, segundo Rodrigues, como através de algo considerado fútil, é possível inocular grandeza literária ao mais simples gesto “O folhetim, quando não serviu para retalhar romances, foi uma dessas formas fáceis de comunicação escrita. A extensão da dignidade literária a todos os atos da vida criava essa espécie de locutório ou rótula de jornal onde tudo convergia: política, religião, filosofia; campo, cidade e mar. Ou, melhor: o espetáculo, a última diligência ou a primeira estação de caminho de ferro, o palhaço novo no circo e o jovem orador revelado, uma anedota e um caso de consciência. Tudo isto sem gradação, apresentado com a mesma volubilidade com que o soalheiro estilizado e escrito.” (Rodrigues, 1998, p. 21).

José Eduardo Coelho, um dos fundadores da Associação de Jornalistas e Escritores Portugueses, publicou, em 1870 no Diário de Notícias e, por proposta conjunta de Ramalho Ortigão e Eça de Queiróz, o famoso folhetim O Mistério da Estrada de Sintra, que foi apresentado sem constar o nome dos autores e envolto intencionalmente numa aura de secretismo “Mais informação e sigilo inerentes à missiva suscitam entusiamo e apreensão. O anonimato jornalístico acompanha. Nisso, e na cor local, jogou O Mistério da Estrada de Sintra. (…) O leitor, no horizonte dos ‘mistérios’ (título, pois, temático-remático), também

colabora, já percebendo a marca da serialidade, repetitiva e identitária.” (Rodrigues, 1998, p. 340-341).

Os folhetinistas portugueses foram também célebres em jornais no estrangeiro, já que a tradição do folhetim na imprensa continuava a observar-se em países como a França, Itália, Alemanha ou Inglaterra. Exemplo disso são O Eurico, que estava, segundo o Diário de Notícias de 23-VIII-1868, a ser traduzido em folhetins num jornal italiano. (Rodrigues, 1998, p. 244). A

Morgadinha dos Cannaviaes, de Júlio Dinis, estava a ser publicada no jornal madrileno ‘la Democracia’; ou O Mistério da Estrada de Sintra em 1886 no Pesti Hírlap, de Budapeste.

Também El Mandarín, traduzido por Abelardo Varela, saiu na Revista de Chile. (Rodrigues, 1998, p. 245).

Em França, os jornais publicavam romances-folhetim de Victor Hugo ou Eugéne Sue e, em Inglaterra, eram apresentados Walter Scott e Charles Dickens. Ernesto Rodrigues faz uma citação de Pascal Bruckner que diz “(…) na proliferação dos bairros de lata do Terceiro Mundo, lemos a nossa própria história em filigrana. Ao calcorrear as ruas de Daca, de Bombaim, de Jacarta, de Manila, de Marraquexe, de Bogotá, comtempla-se a céu aberto as raízes da nossa civilização, percorre-se ao vivo um romance de Victor Hugo, de Dickens ou de Zola, cujos personagens, para nosso grande terror, tivessem subitamente começado a proliferar em carne e osso.” (Rodrigues, 1998, p. 233-234). Também em Espanha aderiram a este género autores de renome, como é o caso do chileno Luis Sepúlveda, que publicou em folhetim, no El País e no El Mundo, as três novelas do livro Diário de um Killer Sentimental. No século XX, em Portugal, a popularidade do folhetim desvaneceu-se um pouco, embora ainda seja possível encontrar alguns exemplos. Entre os referidos por Ernesto Rodrigues está

O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro. Igualmente José Rodrigues Miguéis, tendo publicado no Diário Popular, O Pão Não Cai do Céu. Na “Nota do Autor” este afirma “Fi-lo como se fosse

para o povo: o povo-que-não-lê, mas dantes lia, pelo menos, os ingénuos romances que iam de porta em porta, em fascículos semanais, levar-lhe um pouco de ódio e emoção. Talvez eu aspirasse modestamente a ser um romancista popular? Já o disse algures.” (Rodrigues, 1998, p. 363).

Na década de 80, anunciava o Jornal de Letras, Artes e Ideias, a “inserção de um livro inédito” de Augusto Abelaira, tratando-se este “romance folhetim” do regresso a “uma tradição, desde há muito abandonada, da nossa literatura (e não só), e que foi praticada por alguns dos mais famosos romancistas, como Camilo e Eça de Queiróz.” (Rodrigues, 1998, p. 372). Mário de Carvalho e Clara Pinto Correia, que se corresponderam por escrito, sem que se tivessem conhecido pessoalmente, entre 1985 e 1986, durante trinta semanas, escreveram para o Diário de Notícias o folhetim E Se Tivesse a Bondade de Me Dizer Porquê?

Para Ernesto Rodrigues, a relação mais ambígua e simultaneamente pura com o género é oferecida por Hélia Correia em A Fenda Erótica, ao que o autor diz “ambígua, na motivação,

na expressão e no exame de consciência crítico; pura, na envolvente lúdica, na fuga ao real com retorno simbólico e na intervenção de leitores próximos. (Rodrigues, 1998, p. 377). Adriano Duarte Rodrigues inclui o folhetim nos géneros narrativos, como os casos do dia, a informação geral e a reportagem, caracterizando-os do ponto de vista da mensagem, da conjunção acional, da intriga e da linguagem dos meios de comunicação de massas. (Rodrigues, 1998, p. 387).

Para finalizar, o folhetim “teria ainda um efeito de democratização da cultura e multiplicação de obras já existentes, além de possibilitar um maior acesso do público aos novos títulos. Elemento do passado, o folhetim marca, sem dúvida, uma época em que – com vantagens e inconvenientes – jornalismo e literatura apertavam as mãos sem receios.” (Freitas, 2002, p. 118).

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