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Para concluir essa panorâmica sobre a recepção da obra Grande sertão: veredas na Itália, realizada através de vários e variados comentários deixados registrados por leitores de diferente formação literária e cultural, porém todos italianos – salvo pouquíssimos casos de pessoas brasileiras ligadas de qualquer forma à Itália –, decidimos colocar a apresentação presente no site da casa editora Feltrinelli113, que coincide exatamente com a contracapa do volume em língua italiana e que, claramente, foi escrito pela maior esperta italiana de literatura brasileira: Luciana Stegagno Picchio.

Devido à finalidade, como também ao limitado espaço da contracapa do romance de Rosa, a apresentação é bastante breve, ao contrário da recensão “Uma micro-epopeia” escrita, em 1985, também pela estudiosa italiana em ocasião da nova impressão do romance, na revista L’Indice, na qual ela se detém de forma bem mais extensa, como temos comentado em precedência114.

O primeiro ator ou agente da obra, isto é, o protagonista, não é considerado nem um dos personagens, tampouco o próprio Riobaldo, mas é o sertão, descrito como um “fabuloso altiplano do profundo Brasil”, sertão que é – nas palavras de Stegagno Picchio – deserto, terra seca e inculta dos Campos Gerais, no qual, de repente, aparecem palmeiras gigantes que tornam mais verde a região. Mas, lembra a professora italiana, o sertão é também um espaço mágico, onde, através das suas veredas, passam todos os tipos de homens, dos santos eremitas aos bandidos, homens pequenos com nomes aparentemente importantes e as boiadas; enfim o homem sertanejo e todos os animais que convivem com ele.

Mas a grandeza de Guimarães Rosa, diz Stegagno Picchio, é ter sabido transformar, elevar, este “teatro de gesta rusticanas” em uma metáfora do mundo, na qual estes indivíduos “provisórios e paradigmáticos” que vivem nele levam consigo uma própria pequena verdade. Para mostrar isto ao leitor, o autor-demiurgo Rosa utiliza um instrumento que em suas mãos se torna poderosíssimo: a linguagem. Uma linguagem criativa, fortemente expressiva,

113http://www.feltrinellieditore.it/SchedaLibro?id_volume=673536

que se realiza no tecido vivo do dia a dia, nas conversas cotidianas destes personagens rústicos e heroicos ao mesmo tempo, obrigando o leitor a comparticipar desta criação para poder acompanhar o enredo, a história narrada, ou melhor, as “estórias”, sendo, de fato, o enredo nada mais que um intricado labirinto de fatos, acontecimentos, que se perdem através das infinitas veredas do romance, até se reencontrarem todas no epilogo do livro, esclarecendo melhor ao leitor o sentido mais profundo representado por este “mundo misturado” que é o sertão mineiro descrito por Rosa.

Interessante, a este propósito, nos parece a reflexão feita pelo escritor Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva, em depoimento registrado no texto edito pela Editora Nova Fronteira, em ocasião da primeira publicação de A boiada, em novembro de 2011, o registro escrito das famosas cadernetas que o Doutor Rosa levou durante a viagem pelo sertão em 1952, preenchendo-as de anotações preciosas, que se tornariam a base documental para criar, nos anos sucessivos, as duas obras monumentais Corpo de baile e Grande sertão: veredas:

Entrar no Grande sertão: veredas é uma aventura. Aquela linguagem de Guimarães Rosa vai levando o sujeito não só para uma história que é uma aventura do sertão mineiro, ela vai aprofundando cada vez mais dentro do ser. A gente para dizer “dentro do ser brasileiro” poderia falar “o ser brasileiro”, “a metafísica brasileira”, “o mineiro”... Tem uma raiz mineira, mas qualquer coisa da língua portuguesa. E o Guimarães Rosa costuma pegar raízes de outras línguas também, do tupi ou mesmo de matrizes africanas. Ele vai colocar você cada vez mais no interior não só do sertão, mas no interior de sua mente. Você vai viajando, viajando, viajando e há de si descobertas pessoais... sobre o mundo, sobre todas as pessoas, sobre Deus, sobre o Diabo. Porque no fundo o livro também é uma luta entre Deus e o diabo, o monólogo do Riobaldo é saber do pacto que ele fez com o diabo, se ele vendeu a alma ou não.

O impressionante é que isso só é possível através daquela linguagem, é ela que abre essa perspectiva de você compreender as coisas de outras maneiras. 115

Também para Sérgio Andrade é a linguagem a porta necessária pela qual precisa-se passar para se abrir a novas dimensões. Mais uma vez vale citar uma das frases-aforismos de Guimarães Rosa, para o qual “a linguagem é a única porta para o infinito”. Ele sabia disso e queria, com toda a força, mostrá-lo para os seus leitores.

A estudiosa italiana faz também menção às referencias implícitas no texto que influenciaram a sua narrativa, especialmente o filósofo Platão com seu Mito da caverna, recordando – como também afirma Sérgio Andrade – que o homem é também “caverna-sertão interior” lugar privilegiado da eterna luta entre o Bem e o Mal, Deus e o seu oposto: o Demo.

Riobaldo-Rosa, conclui Stegagno Picchio, leva o leitor, desde a primeira linha do romance, dentro um redemoinho narrativo sem fim, contando ao leitor- ouvinte a própria história e revelando-lhe o sertão que leva dentro do seu coração.

A estudiosa italiana, pegando emprestadas as palavras do próprio Guimarães Rosa, afirma que “às vezes, um livro é maior do que o próprio autor” e também que GSV é “um livro mágico e consolatório” , acrescentando que talvez este romance de Rosa seja “o dom maior que a América Latina do realismo mágico tenha feito a uma Europa de dessecado cerebralismo”.

115 In: Depoimentos sobre João Guimarães Rosa e sua obra. A.A.V.V. Editora Nova Fronteira.

CAPÍTULO IV

GRANDE SERTÃO: VEREDAS À ITALIANA

E però sappia ciascuno che nulla cosa per legame musaico armonizzata si può de la sua loquela in altra transmutare sanza rompere tutta sua dolcezza e armonia.116

Dante, Convivio, Tratado I, capítulo VII, verso 14

Repetita iuvant.

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