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Localização das fortalezas egípcias na Baixa Núbia [Adaptado de TRIGGER, Nubia Under the

AS FORTIFICAÇÕES NA GUERRA E NA PAZ

Mapa 4 Localização das fortalezas egípcias na Baixa Núbia [Adaptado de TRIGGER, Nubia Under the

com regularidade232. Mas por outro lado, a presença dos supracitados postos de sinalização evidencia as dificuldades de comunicação que existiam na época. Desde a fortaleza mais a norte, Buhen, até à que fica junto à fronteira com a chefatura de Kerma, Semna Sul, há cerca de 65 quilómetros em linha recta, sendo que a maior distância relativa fica entre Mirguissa e Askut233. As fortalezas da segunda catarata começam nesta e estendem-se pela região de Batn el-Hagar, a qual, como já foi sublinhado, é uma das zonas mais inóspitas e difíceis de navegar de toda a Baixa Núbia, acentuando-se ainda mais as dificuldades por um certo isolamento das estruturas defensivas entre si, especialmente entre o grupo que ficava a norte e o que se situava a sul, tornando assim as dificuldades de comunicação ainda maiores.

Por que razão a administração egípcia decidiu construir as fortalezas nesta região? De seguida tentar-se-á responder a esta questão, focando apenas os aspectos geográficos, e sabendo a priori que a construção da barragem de Assuão234 alterou irremediavelmente as características topográficas da zona entre a segunda catarata e Batn el-Hagar. Assim, esta vai ser uma análise feita exclusivamente sobre mapas que representam as fortalezas egípcias e bibliografia descritiva da região.

Antes da análise da geografia da região, há que fazer um ponto sobre o uso da expressão «Fortalezas da segunda catarata». Em termos geográficos, as fortalezas como Chalfak, Uronarti, Kumma e as Semna Oeste e Semna Sul, devido à sua distância da catarata, já pouca relação têm com o acidente geográfico e topográfico, não devendo portanto ser-lhes atribuído este nome. Talvez fosse mais correcto dar a estas o nome de «Fortalezas de Batn el- Hagar»235, por exemplo, devido a estarem situadas na região com o mesmo nome236, e manter

232 As regulares comunicações entre as fortalezas são confirmadas pelos «Despachos de Semna». Estes mostram

que um dos principais objectivos destas constantes comunicações e das fortalezas em si são o controlo e o conhecimento dos grupos nativos. A partir das cartas que circulavam entre as estruturas, é possível saber, por exemplo, que Uronarti recebia correspondência de Semna Oeste, Chalfak, Mirguissa e Buhen; cf. SMITH, «Administration at the Egyptian Middle Kingdom Frontier», in Aegean Seals, p. 204.

233 VOGEL, The Fortifications of the Ancient Egypt 3000-1780 BC, p. 13. A distância apresentada não tem em

conta as fortalezas mais antigas que ficavam a norte de Buhen, como é o caso de Serra-Este, Faras ou Aniba, já que estas não fazem parte do chamado grupo das fortalezas da segunda catarata.

234 A barragem construída em Assuão no ano de 1971, com o auxílio da União Soviética, regularizou o curso do

Nilo e colocou um fim às cheias que durante milénios deram vida às populações que sobreviveram nas suas margens. Ao estabilizar as águas do rio, este passou a ser mais navegável e a área de cultivo aumentou consideravelmente. Infelizmente, e apesar de todo o bem que fez ao Egipto, a subida do caudal o rio por causa desta barragem levou a que algum património ficasse perdido; cf. TREMOCEIRO, «Assuão», in Dicionário do Antigo Egipto, p. 118.

235

Roxanna Flammini diz que existem dois estádios diferentes de expansão na Baixa Núbia, o primeiro consiste no avanço feito sobre o controlo dos primeiros faraós da XII dinastia e a segunda fase começa no reinado de Senuseret III, tendo este chegado à fronteira com o Kuch; cf. FLAMMINI, «Ancient core-periphery interactions: Lower Nubia during Middle Kingdom Egypt (CA 2050-1640 B.C.)», JWSR, p. 54.

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VOGEL, The Fortifications of the Ancient Egypt 3000-1780 BC, p. 13; ADAMS, Nubia, Corridor to Africa, p. 25.

a referência de «Fortalezas da segunda catarata» para os fortes de Buhen e de Mirguissa. A única fortaleza que aparenta estar, em termos geográficos, fora de ambos os grupos, é a fortificação de Askut, devido à sua equidistância entre Mirguissa e Chalfak237. Em primeiro lugar há que olhar para o mapa, que aqui se apresenta, e por ele se verá que o grupo que fica a norte junto à segunda catarata é composto por Buhen e Mirguissa e entre esta fortificação e Chalfak, distam cerca de 31 km238. Trata-se de uma distância considerável que torna difícil a comunicação entre as duas, acabando esta apenas por ser possível devido à navegação no rio Nilo (quando ela é possível), por sinais de fumo ou devido à existência da fortaleza de Askut, onde os extraordinários armazéns desta estrutura a tornam um factor nevrálgico para a sobrevivência de, pelo menos, o grupo das fortalezas de Batn el-Hagar239. Suponhamos que Askut era o ponto base para a distribuição da maior parte dos mantimentos que iam abastecer as guarnições destacadas nas fortalezas que ficavam a sul desta, enquanto Buhen e Mirguissa eram suportadas directamente pelo Egipto, já que a capacidade agrícola dos terrenos na zona da segunda catarata, não seria capaz de alimentar as populações egípcias e nativas da região240. Estes alimentos iriam assim ser armazenados em celeiros, como é o caso do bloco D em Buhen, possibilitando o abastecimento das populações da região241. Esta diferença torna mais evidente a necessidade de dividir estas estruturas em dois grupos, algo ainda reforçado por algumas valências de fortalezas como Uronarti ou Semna Oeste, as quais apresentam um forte aparelho administrativo que reforça a autonomia destas fortalezas em relação às grandes estruturas do Norte242. Por fim, a fortaleza de Askut, tendo em conta a maior proximidade que esta tem em relação a Chalfak (9 km243) e a questão já referida do possível suporte que dava às fortificações que estavam a sul, deve fazer parte do grupo das fortalezas de Batn el-Hagar. Esta divisão do conjunto das fortalezas em dois grupos deve-se à constatação de que apesar de os fortes egípcios terem muito em comum, desde logo a tarefa de suportar as campanhas e explorar a região, têm entre si também muitas diferenças, o que fundamenta a teoria de proceder à divisão entre as fortalezas da segunda catarata e as fortalezas de Batn el-Hagar.

Os locais onde estas estruturas foram construídas evidenciam uma clara diferença em termos geográficos de região para região, e fortalecem a separação em dois grupos das

237 VOGEL, The Fortifications of the Ancient Egypt 3000-1780 BC, p. 13.

238 SMITH, «Askut and the Role of the Second Cataract Forts», JARCE, pp. 107-109. 239 Ver subcapítulo 4.1, pp. 107-118.

240 TRIGGER, Nubia, Under the Pharaohs, pp. 14-15.

241 VOGEL, «Master architects of Ancient Nubia», in Between Cataracts, p. 425. 242

BADAWY, «Festunganlage», in Lexikon der Ägyptologie, II, col. 198.

fortalezas, já que as fortificações a norte são consideravelmente maiores que as do sul244, algo que já Barry Kemp tinha defendido ao dividir as fortalezas em dois grupos, usando como suportes os aspectos geográficos e arquitectónicos. A sua teoria irá ser descrita no início do próximo capítulo. Enquanto as fortalezas construídas junto à segunda catarata estão situadas numa região com alguma prosperidade e já relativamente pacificada, o que permitiu a fortalezas como Buhen e Mirguissa desenvolverem outras valências, em Batn el-Hagar as condições eram diferentes, para além da maior ameaça militar que Kerma representava. Por outro lado, as próprias condições geográficas da região eram muito mais hostis. Em Batn el- Hagar o rio Nilo era mais perigoso que na primeira catarata, e ao longo de 19 quilómetros o curso era bloqueado por centenas de pequenas ilhas, que por sua vez geravam rápidos e passagens estreitas que tornavam a navegação à vela praticamente impossível. Só era possível transpor estes obstáculos içando os barcos com ganchos e durante as cheias do Nilo que ocorriam a partir de meados de Julho245.

Mas não é apenas no rio que esta zona é complicada, em terra o deserto chega praticamente junto ao Nilo, retirando assim quaisquer hipóteses de haver uma atividade agrícola246. Qual terá sido o nível de importância que estas características tiveram na construção das fortalezas? Certamente que estas condições eram um obstáculo para a circulação de pessoas e mercadorias, dificuldades estas que as fortalezas podiam ajudar a superar, dando apoio logístico que iria permitir a exércitos subirem e descerem o rio, e a comerciantes trocarem e chegarem ao Egipto, como a estela de Semna Oeste, anteriormente apresentada neste subcapítulo, mostra, ao dizer que os comerciantes núbios para chegarem a Iken (Mirguissa) tinham de passar pela alfândega de Semna Oeste.

Não é surpresa que as próprias condições geográficas de Batn el-Hagar, que se estende por 160 km, desde a segunda catarata até à catarata de Dal247, tenham sido uma razão para a edificação das fortalezas naquela região. Estas davam, além da altura necessária, já antes descrita, para uma melhor defesa da estrutura, e também seriam uma dificuldade extra para qualquer frota inimiga atingir as fortificações. Por outro lado, estes fortes facilitavam quaisquer tentativas dos faraós egípcios em chegar a Kuch por via fluvial, (o que ocorrerá

244 ARNOLD, Ancient Egyptian Architecture, p. 92.

245 Na região de Semna e em outras zonas de Batn el-Hagar, durante a estação seca o percurso do rio Nilo ficava

comprimido e tornava-se muito estreito, sendo aí impossível a navegação de longa distância, algo que obrigava os comerciantes a fazerem as suas rotas por terra; cf. ADAMS, Corridor to Africa, p. 27.

246 Os cumes de granito tornam o terreno muito acidentado, não permitindo aos aluviões atingirem terras que

poderiam ser cultivadas. Mas mesmo nos poucos sítios onde o rio conseguia chegar, mesmo aí a prática da agricultura e pastorícia é difícil devido às discrepâncias das margens deste; cf. Idem, p. 26. Veja-se ibidem.

com mais evidência no Império Novo), que de resto era o mais usual, permitindo ainda a reparação de navios, abastecimento dos soldados e um provável reforço do contingente a ser levado para a campanha.

CAPÍTULO III