CAPÍTULO 3: Forasteiros no fazer e desfazer das comunidades escravas
3.5 A vida longe do Capão Alto
No ano da morte do senhor Villela, contavam nas comunidades escravas 123 escravos
procedentes de Capão Alto. Eram 54 mulheres, sendo 39 solteiras e 15 que eram ou já haviam
sido casadas. Entre os 69 homens, apenas 9 eram casados ou viúvos. Com respeito aos casais
de cativos formados ainda em Castro, inferimos que muitos deles vivessem em união
consensual400 e, quando levados para Campinas, não possuíam o matrimônio reconhecido
pela igreja. Um indício dessa situação é que, com exceção de um caso,401 todas as crianças
filhas de escravas procedentes de Capão Alto foram registradas em seus batismos como
possuindo pai incógnito e mãe solteira. Ora, se o casamento dos escravos paranaenses não
fora reconhecido pela igreja, então os filhos desses casais não tinham pais legítimos perante
a lei. O mesmo ocorria quando da união, sem legitimação matrimonial, entre escravos de
Castro e aqueles que, antes, já eram propriedade de Vilella.
400 Acreditamos que 34 registros de batismos, os quais foram encontrados nos livros paroquiais de Castro,
referentes ao período de mais de 100 anos, é um número muito baixo. Talvez, os escravos, nem sempre, legitimavam seus casamentos na Igreja Matriz, talvez o fizessem internamente sob as bênçãos da Sinhara na Capela do Capão Alto.
401 Justina foi batizada em 30 de maio de oitocentos e setenta, seus pais eram Jordão e Porfíria ambos naturais
do Paraná e seus padrinhos foram Rosa e Pedro. Fonte: Livros de Registros de Casamento da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e da Paróquia de Nossa Senhora da Cruz. Cúria Metropolitana de Campinas. Fundo Peter Eisenberg, AEL/UNICAMP.
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Um exemplo foi o caso da forasteira Benta. No dia 01 de março de 1859, na Paróquia
de Santana em Castro, Benta se casou com Ledoino, com quem teve ao menos dois filhos:
Miguel e Joaquim Santa Anna. Anos depois a família foi separada. Ledoino provavelmente
seguiu para o trabalho na Estrada de Ferro em Jundiaí, enquanto sua esposa e seus filhos
foram levados à Campinas. Passados alguns anos vivendo na fazenda de Santa Maria, Benta
conseguiu refazer sua vida e começar uma nova família. Ela conseguiu um companheiro com
quem teve o pequeno Domingos, batizado em oito de maio de 1876, pelos padrinhos Urbano
Pompeu de Camargo e Dona Carlota Miquelina de Abreu Rangel.402
Por meio dos registros de batismos, conseguimos afirmar que 24 crianças, filhas de
escravas procedentes de Castro nasceram nas propriedades do senhor Vilella.403 Como vimos
anteriormente, a análise desses registros de batismo pode nos revelar fatores importantes do
processo de adaptação e construção de laços de solidariedade entre os forasteiros, sobretudo
no que diz respeito ao compadrio. Vejamos o que eles nos contam a esse respeito.
QUADRO 31: CONDIÇÃO DOS PADRINHOS DOS FILHOS E FILHAS DAS ESCRAVAS PROCEDENTES DO CAPÃO ALTO, 1868-1879.
Fonte: Livros de registros de Batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e da Paróquia de Santa Cruz, 1850-1880. Cúria Metropolitana de Campinas. Fundo Peter Eisenberg, AEL/UNICAMP.
402Registros de Casamentos, 1796-1868. Paróquia de Santana. Castro, Paraná.
403 Esse número pode ser maior, tanto pela possibilidade de muitas crianças terem morrido antes de serem
batizadas e também porque em alguns casos não conseguimos precisar se a mãe das crianças era procedente do Capão Alto.
Padrinhos N°
Livres 13
Escravos de Vilella 8
Escravo de Vilella + Escravo de outro 2 Escravo de Vilella +Liberto 1
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Observamos que os forasteiros do Capão Alto estabeleceram mais laços verticais do
que horizontais de compadrio. Dentre as 24404 crianças batizadas 13 foram apadrinhadas por
padrinho e madrinha livres (entre eles, José Lopes da Silva, anteriormente mencionado). Para
outras 8 crianças, seus pais escolheram padrinhos entre os cativos do senhor Villela e com
quem conviviam na Comunidade. Por fim, apenas Gabriel, filho de Francisca e de pai
incógnito, teve como padrinho um escravo de outro senhor.405
A escrava Sebastianna é um exemplo bastante elucidativo do processo de integração
à nova comunidade. Proveniente do Capão Alto, ela batizou seu primeiro filho, Paulino, em
1874, e para padrinhos escolheu Virgilino e Edwirges, ambos eram seus companheiros de
Castro. Dois anos depois, batizou sua filha Elena, para quem escolheu padrinhos livres: João
Lopes da Silva e Dona Maria do Rozario Silveira. E em 1878, quando batizou sua filha
Lucilia, escolheu os escravos Valeriano, seu companheiro do Capão Alto, e Maria Joaquina,
uma cearense que vivia na fazenda de Santa Maria.
Tal qual o escravo Valeriano, verificamos que os forasteiros do Capão Alto também
foram chamados para apadrinhar. Por exemplo, entre 1874-1877, Virgilino, tropeiro, batizou
cinco crianças, através das quais reforçou laços com a companheira do Paraná e criou novas
de redes de solidariedade. Sobretudo, como nota-se na figura abaixo, Virgilino estreitou os
vínculos com seus companheiros do Capão Alto. Talvez essa tenha sido uma estratégia dos
forasteiros de Castro para enfrentarem o novo cativeiro.
404Não foi possível identificar a naturalidade de dois casais de padrinhos.
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Ademais, outro caso que chama a atenção é do batismo da ingênua Maria, em doze
de abril de 1872, cujos padrinhos eram os libertos Marcelino, de 26 anos, e Cecilia, de 40
anos, ambos de Castro. Maria era filha de Emília, escrava de aproximadamente 30 anos, que
era dita solteira e procedente de Capão Alto. O intrigante é que, segundo o registro de
batismo, o casal de padrinhos em menos de quatro anos após a sua chegada à escravaria de
Vilella teria conseguido sua liberdade.406 Façamos uso, portanto, de tal ensejo para investigar
outros casos de liberdades conquistadas pelos cativos do Capão Alto, quando sob o julgo do
Comendador.407
Para iniciar, retomemos aquele incidente contra a suposta amante do senhor Vilella.
A escrava Leocádia, ré no processo, tinha idade aproximada de 18 anos, era solteira, natural
do Paraná e filha de Isabel. As pistas desse processo revelam-nos que, pouco depois de ser
desenraizada de sua comunidade no município de Castro, Leocádia foi, mais uma vez,
afastada de seus companheiros, pois foi destinada ao trabalho na casa da senhora Maria
Leopoldina.408
Lembremos que, ao longo daquele processo, houve a hipótese do senhor Vilella ter
prometido a alforria a Januário, Candido e Leocádia em troca de matarem a dita amante. Se
tal promessa ocorrera, não o sabemos, mas é fato que naquele momento os forasteiros não
406 Não conseguimos localizar as cartas de alforria do casal.
407 Livros de registros de Batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e da Paróquia de Santa Cruz,
1850-1880. Cúria Metropolitana de Campinas. Fundo Peter Eisenberg, AEL/UNICAMP.
408Além de Leocádia, Belarmina, de 25 anos e natural do Paraná, também exercia o serviço doméstico na casa
de Leopoldina. Como Leocádia, a escrava também fora separada de seu companheiro quando levada a servir a amante do Comendador. Pelo que consta, Belarmina foi testemunha no processo que averiguava aquela acusação de tentativa de homicídio. Fundo: Crimes de São Paulo, DOC 001, MR 0215. AEL/UNICAMP.
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receberam a alforria. Entretanto, ao menos para Leocádia, a liberdade chegou pouco tempo
depois.
Em 1873 a forasteira, no alto dos seus 20 anos, comprou sua carta de alforria pelo
valor de 1:200$000 réis.409 Leocádia passara a viver como forra no município de Campinas
e anos mais tarde ajudou sua irmã Ursulina a conseguir a alforria. Aconteceu em 1875, a
forasteira Ursulina (irmã de Leocadia) de 45 anos, oriunda da fazenda do Capão Alto, iniciou
um processo contra sua senhora, Maria da Conceição Vilella, e seus filhos, requerendo sua
liberdade através da compra com pecúlio.
A escrava alegava ter um pecúlio 200$000 réis, “em quanto calcula valer sua pessoa
já velha e doentia”. No entanto, sua senhora e os herdeiros não pretendiam conceder-lhe a alforria por esse preço. A princípio, os senhores exigiam o pagamento de 300$000 réis,
provavelmente imaginando que a escrava era incapaz de levantar tamanha monta de recursos.
Todavia, diante da disponibilidade da escrava em realizar o depósito exigido, a senhora e
seus herdeiros lançaram mão do mesmo artifício, que seria utilizado anos depois no caso da
escrava Rita: questionam a procedência do pecúlio oferecido.410 A tal questionamento, a
forasteira responde:
(...) ter o acumulado [o pecúlio] em virtude de seu trabalho e de doações pequenas que lhe fizeram algumas pessoas, tendo recebido algum dinheiro de sua mãe que lhe mandou da província do Paraná e também de sua irmã, forra existente nessa cidade, que se a quantia exibida for insuficiente para completar o preço da indenização do seu justo valor, tenciona obter o que faltar, pedindo ou por empréstimo a alegue que se queira confiar para depois de liberta pagar, ou
409Alforrias de escravos, Fichas de Peter Eisenberg, Pasta 2, ficha n°544. Fundo Peter Eisenberg,
AEL/UNICAMP.
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empenhando-se com sua irmã Leocádia do Carmo que lhe forneça a quantia precisa (...).411
Uma vez que a escrava conseguiu provar a “boa” procedência de seus recursos, seus
proprietários empreendem nova estratégia, passando a argumentar que a quantia oferecida
pela escrava era muito pequena. Segundo Dona Maria Josepha, a forasteira não era doentia e
também não tinha idade avançada como alegava, por isso exigia 1:200$000 réis pela carta de
alforria. Para resolver mais essa pendenga, realizou-se um exame médico, a partir do qual,
identificou-se que a escrava sofria de uma série de enfermidades e já estava muito fraca. Por
fim, o valor da escrava foi arbitrado em 650:000 réis.412 Ursulina realizou o pagamento e
recebeu sua carta de alforria.
A história da escrava Ursulina é impressionante. Através dela, podemos perceber a
união de uma família escrava que, mesmo separada pelo comércio interno, foi capaz de criar
meios para se comunicar, para preservar os laços e para se ajudar a se livrarem do jugo da
escravidão. Todavia, muitas questões surgem da declaração da forasteira para provar a
legitimidade do seu pecúlio. A mais intrigante delas é: de que modo Ursulina recebia o
dinheiro de sua mãe? Acreditamos que Ursulina contava com solidariedade de seu
companheiro Virgilino, aquele forasteiro que encontramos há pouco batizando cinco
crianças. Virgilino exercia o ofício de tropeiro na comunidade de Santa Maria, o que deve
tê-lo permitido manter contato com seus companheiros, os quais ficaram no Paraná e assim
levava notícias e encomendas de um canto a outro.
411Ação de Manumissão, 2°ofício, processo 1669, TJC/CMU, UNICAMP. 412Ação de Manumissão, 2°ofício, processo 1669, TJC/CMU, UNICAMP.
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Assim como Virgilino, o forasteiro Florencio também exercia seu ofício para além
das cercas das fazendas.413 É plausível pensar que os trabalhos fora do alcance dos olhos do
senhor fossem destinados a escravos de confiança, uma vez que era preciso ter a certeza de
que o escravo retornaria à fazenda após o trabalho. Sendo assim, é possível inferir que
Virgilino e Fortunato, que residiam há a cerca de quatro anos nas comunidades de Vilella,
tenham conquistado a credibilidade do senhor e ou do feitor. Ademais, tais ocupações
poderiam possibilitar para esses escravos maiores chances de realizar trabalhos externos e
remunerados, o que poderia contribuir para a compra de sua alforria, ou a de algum familiar.
Além disso, como vimos na trajetória de Ursulina, esses ofícios podiam ser essenciais para a
manutenção de redes de solidariedades entre os cativos.414
A adaptação à nova vida nas comunidades de Vilella deve ter sido bastante difícil
para os escravos do Capão Alto. Apesar de terem alguns de seus familiares e companheiros
por perto, foi preciso acostumar-se a uma nova rotina de labuta e a um novo cativeiro.415
Ademais, ao serem levados para Campinas, foram forçados a deixar para trás mais de um
século de história, um modo de vida próprio e centenas de entes queridos com quem
compartilhavam o cotidiano na Comunidade do Capão Alto. Tanto para aqueles que seguiram
para a estrada de ferro de Jundiaí, quanto para aqueles que chegaram à Campinas, o trauma
do desenraizamento e a violência do comércio interno devem ter sido devastadores. Todavia
413 Descrito na avaliação como escravo de serviço externo. Inventário post mortem do Comendador Francisco
Teixeira Vilella, 1° ofício, processo 4359, CMU/UNICAMP.
414Além de Virgilino e Florencio, apenas 10 forasteiros do Capão tiveram acesso a ofícios especializados. Eram
6 mulheres dedicadas ao serviço doméstico e ao trabalho de cozinheira e 4 homens, que trabalhavam como tropeiro, carapina e em serviços fora da fazenda.
415 Amancio e Ladislao buscaram na fuga uma maneira de livrar-se daquela nova realidade a que foram
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ao seguir a trajetória de alguns desses indivíduos vimos que, de maneiras diversas, eles
criaram meios para superar e para recomeçar.