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Longevidade escolar: a luta pela ascensão social

No documento Desafios contemporâneos da educação (páginas 195-200)

Essa pesquisa se fundamenta no estudo dos fatores que in- fluenciam fortemente a trajetória escolar dos diferentes agentes investigados e também os condicionantes e condicionamen- tos que interferem nas diferentes expectativas, perspectivas e comportamentos das respectivas famílias em relação ao sistema de ensino. Como efeito, procura-se analisar a influência e os re- flexos desses aspectos na trajetória escolar dos filhos.

Sabe-se que a propensão que uma família tem de investir na escolarização de seus filhos e filhas depende, entre outros fatores, do peso relativo do capital cultural no conjunto do patrimônio e do ethos adquiridos pela mesma. Define-se ethos como o futuro escolar apreendido como possível para os filhos e as filhas, ou seja, as probabilidades de êxito escolar objetivamente deter- minadas que diferem segundo as condições de existência das

DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA EDUCAÇÃO 195 frações de classe de cada grupo de agentes. Estes, por sua vez, as interiorizam e as manifestam subjetivamente na forma de desejos, perspectivas, duração da escolaridade, escolhas profis- sionais e atitudes em relação à escola (Bourdieu, 1989).

Bourdieu (1989) afirma que cada família transmite à sua descendência uma herança cultural, que, puramente social, é constituída pelo capital cultural e pelo ethos. Se, por um lado, o

ethos – resultado do processo de apropriação das probabilidades

de êxito escolar – define a relação dos agentes sociais com o capi- tal cultural e com a escola, por outro, o capital cultural influencia diretamente os seus êxitos escolares.

Nas palavras de Bourdieu (1998, p.74-75), o capital cultural incorporado é resultado de um:

trabalho de aquisição [...] um trabalho do sujeito sobre si mesmo (fala-se em cultivar-se). O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da “pessoa”, um habitus. Aquele que o possui “jogou” com sua própria pessoa e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo.

O capital cultural no estado objetivado se apresenta na forma de computadores, escritos, obras de arte, podendo ser compra- do, trocado, vendido em sua materialidade, pois pressupõe ca- pital econômico, mas que para se ter uma apropriação simbólica é necessário capital cultural incorporado. Em outras palavras, o capital cultural objetivado na forma de livros, quadros, obras de arte pode ser apropriado radicalmente por qualquer agente desde que tenha capital econômico, mas para apropriá-lo simbo- licamente apenas a posse do capital econômico não é o suficien- te; é necessário e imprescindível ao agente deter capital cultural incorporado, que se traduz na posse de signos necessários para de/codificá-lo e também para gozar da satisfação simbólica de sua fruição.

196 CÉLIA M. D. • HILDA M. G. DA S. • RICARDO R. • SEBASTIÃO DE S. L. (ORGS.) O capital cultural no estado institucionalizado se apresenta na forma do diploma e, por sua vez, o diploma não se separa do agente singular que o possui, é o ser tomado corpo, ou seja, morre com seu portador. As instituições escolares têm a função de con- ferir ao capital cultural incorporado num organismo individual, um reconhecimento institucional, ou seja, a certificação esco- lar – o diploma. Essa herança cultural (capital cultural e ethos), herdada diretamente do meio familiar, pode ser entendida como um conjunto de saberes, conhecimentos, posturas, disposições, informações, códigos linguísticos, que diferem segundo a ori- gem social e cultural dos grupos de agentes. As desigualdades do rendimento dos agentes em relação ao sistema de ensino, em sua concepção, residem no fato de que a escola exige, consciente ou inconscientemente, para se obter uma trajetória escolar sem fracassos e interrupções, de todos os agentes, uma familiarização subjetiva principalmente com a cultura e com a linguagem. Em suma, exige que os agentes possuam, previamente, os códigos necessários para a apreensão da cultura dominante que ela trans- mite. Assim, requer que os agentes mantenham com a cultura e com a linguagem uma relação de proximidade natural, familiar, privilegiando, assim, a relação com o saber muito mais do que o saber em si mesmo. Tal relação de intimidade com a cultura e com a linguagem, a proeza verbal e a competência cultural, es- tará diretamente relacionada com o seu modo de aprendizagem. Na concepção de Bourdieu, essa familiarização com a cul- tura e com a linguagem só pode ser apropriada pelos agentes no interior de seu ambiente familiar, através da aprendizagem imperceptível proporcionada pelas famílias que tenham por cultura essa cultura da classe dominante. Ele acrescenta ainda que, como essa familiaridade com a cultura é proporcionada pela aprendizagem imperceptível no interior do contexto familiar, sem qualquer esforço metódico, isto é, ela não é percebida como tal pelos agentes, esses conhecimentos, em consequência, são

DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA EDUCAÇÃO 197 atribuídos ao dom, à vocação e às aptidões inatas. Em sua visão, as classes/frações de classe dominantes têm o poder de impor à escola os critérios de avaliação condizentes com suas normas educativas e com seus produtos culturais (Bordieu, 1974, p.308).

Assim, a escola, por meio de seu veredicto (juízos, sanções, repreensões, advertências, conselhos etc.), valoriza implicita- mente essa cultura dominante (proeza verbal, relação de in- timidade com o saber) e a exige dos diferentes agentes, que receberam heranças culturais diferentes. Quanto mais essa he- rança recebida do meio familiar se afasta da cultura dominante, menos “valor” ela recebe diante da escola.

Em suas palavras, a escola:

uma instância oficialmente incumbida de assegurar a transmis- são dos instrumentos de apropriação da cultura dominante, que não se julga obrigada a transmitir metodicamente os instrumentos indispensáveis ao bom êxito de sua tarefa de transmissão, está des- tinada a transformar-se em monopólio das classes sociais capazes de transmitir por seus próprios meios, quer dizer, mediante a ação da educação contínua e difusa e implícita que se exerce nas famílias cultivadas [...], os instrumentos necessários para assegurar a essas classes o monopólio dos instrumentos de apropriação da cultura dominante e, por essa via, o monopólio desta cultura. (Bourdieu, 1974, p.307)

Segue o autor:

A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crian- ças originárias de um meio burguês (ou, a fortiori, camponês e ope- rário) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom gosto, o talento, em síntese, essas atitudes e aptidões que só parecem naturais e naturalmente exigíveis dos membros da classe cultivada, porque

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constituem a “cultura” [...] dessa classe. Não recebendo de suas famílias nada que lhes possa servir em sua atividade escolar, a não ser uma espécie de boa vontade cultural vazia, os filhos das classes médias são forçados a tudo esperar e a tudo receber da escola, e sujeitos, ainda por cima, a ser repreendidos pela escola por suas condutas por demais “escolares”. (Bourdieu, 1989, p.11)

Ressalta, ainda, que o capital de informações (1989; 1974) sobre o funcionamento do sistema de ensino, sobre as uni- versidades, sobre as profissões de maior prestígio social e as indicações que levam até elas constitui uma das partes mais im- portantes e rentáveis que integram o capital cultural, da qual as frações da classe cultivada se servem.

A falta desse capital de informações na antecipação de be- nefícios pode se manifestar de várias formas na trajetória dos diferentes agentes. Uma delas pode se dar pela detenção/apro- priação de um capital cultural ilegítimo, confuso, sem escla- recimentos efetivos e profícuos sobre o universo escolar nos benefícios materiais e simbólicos que o certificado escolar ga- rante. Assim, dependendo de sua raridade, os investimentos em tempo, em capital cultural e em capital econômico podem ser muito menos rentáveis e distintivos do que se previa no mo- mento em que eles foram mobilizados e realizados, e, portanto, jamais superados.

Como se sabe, o investimento escolar só tem sentido se hou- ver um mínimo de convertibilidade objetivamente garantida desse investimento em capital econômico, em prestígio e em distinção. Para Bourdieu (1990, p.82):

o habitus como sentido de jogo é jogo social incorporado, transfor- mado em natureza [...]. O habitus, no indivíduo biológico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades e de exigências objetivas; as coações e as

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exigências do jogo, ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se aqueles e somente aqueles que, por terem o sen- tido do jogo, isto é, o senso de necessidade imanente do jogo, estão preparados para percebê-las e realizá-las.

O autor observa que a sociedade é composta de regulari- dades que diferem em cada fração de classe. Bourdieu utiliza a noção de jogo para demonstrar que os agentes pertencentes ao mesmo grupo social participam de situações regradas, uma situação em que, sem ser produto de uma regra, obedecem a certas regularidades.

A reflexão de Bourdieu parte da questão de como as condu- tas, os comportamentos, as escolhas dos agentes de um grupo so- cial podem ser regrados sem ser o produto da obediência a regras.

O jogo social é regrado, ele é lugar de regularidades. Nele as coisas se passam de modo regular, os herdeiros ricos se casam com caçulas ricas. Isso não quer dizer que seja regra, para os herdeiros ricos, desposar caçulas ricas. (Bourdieu, 1990, p.83)

O princípio da regulação e das regularidades das condutas sociais está no habitus, “essa disposição regrada para gerar con- dutas regradas e regulares, à margem de qualquer referência a regras” (Bourdieu, 1990, p. 84).

Para se obter, ou melhor, se apropriar dessa familiaridade com a cultura e com a linguagem através de aprendizagem insensível, imperceptível, oferecida muitas vezes inconscientemente pela família, é necessário que no contexto familiar ocorram práticas culturais. Ou seja, que a família possua disposições e inclina- ções a consumir os bens culturais considerados legítimos e que, consequentemente, incite os seus descendentes a essas práticas. Como indica Bourdieu (1974, p.297), os bens culturais consi- derados legítimos são “os bens simbólicos que uma formação

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