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A vida de Lorenzo da Ponte é permeada de episódios que poderiam muito bem servir como enredo para muitas óperas, tanto bufas, quanto sérias.

A 10 de março de 1749, em Ceneda: uma pequena cidade da Toscana, nasce Emanuele Conegliano. De família pobre, o jovem logo revela gosto pelo estudo e pela poesia. Aos 14 anos é adotado pelo bispo de Ceneda, Lorenzo da Ponte, amigo da família, que encarrega-se de sua educação. É dele que o jovem irá adotar o nome, pelo qual será mundialmente conhecido.

Mais tarde, o jovem da Ponte é aluno do abade Cagliari, conhecido por sua erudição. Sua família passa por muitas dificuldades financeiras, o que quase leva seu pai à falência. Graças à intervenção do monsenhor Ziborghi, que substituíra o bispo que legara o nome a Lorenzo da Ponte, o jovem é levado para o seminário de Portugruaro, junto com dois irmãos. Lá, torna-se excelente aluno nas ciências humanas, mas apenas razoáveis nas disciplinas de cálculo. Graças a um poema que o jovem escreve em homenagem a São Luís, monsenhor Gabrielli, diretor do seminário, oferece a Lorenzo a cátedra de retórica.

A inesperada ascensão do jovem poeta suscita inveja e difamação por parte dos outros professores. Em dois anos, cansado das intrigas, Lorenzo resolve mudar-se para Veneza. Lá, tem um caso de amor com uma nobre dominadora e invejosa, da qual a única coisa que se sabe é o nome: Angela. Seu cunhado é ainda pior do que a irmã, e consome todas as economias do casal no jogo. Desse homem, Lorenzo da Ponte, em suas memórias, recorda-se com ojeriza: “Ele jogou durante várias semanas, vencendo sempre, mas o que ganhava com o

jogo gastava com outros vícios, de que Sua Excelência era um verdadeiro depósito” (1998, p. 33).

Concomitante a isso, envolve-se com uma moça de dezessete anos, Matilda, filha de um nobre. Ela fugira das garras do pai pois ele queria casá-la à força com outro nobre, muito mais velho do que ela e de índole perversa.

Anos depois, Lorenzo da Ponte descobre que sua amante de Veneza, Angela, havia combinado, junto com seu novo amante, um pérfido plano para matá-lo. Amargurado, o jovem deixa Veneza e passa a dar aulas de literatura no seminário da cidade de Treviso. Lá, torna-se amigo de Giulio Trento, de quem recorda como “literato de infinita cultura” (ibidem, p. 45).

Mais tarde, sofre processo judicial por ter escrito um estudo chamado “Se o homem alcança a felicidade vivendo em sociedade ou se pode reputar-se mais feliz em estado natural”. O trabalho foi considerado escandaloso, imprudente e contrário à ordem e à paz social, “pela suprema ignorânica dos meus juíes e pelas malignas interpretações dos meus rivais” (ibidem , p. 46), segundo relata o próprio réu.

O escritor deixa Treviso e volta a Veneza. Lá recebe a proteção do nobre Bernardo Memmo. Não escapa, porém, de um novo processo, devido a um sermão intitulado “O homem, livre por natureza, torna-se servo por causa das leis” – uma paráfrase de Cícero: “tornamo-nos escravos das leis, a fim de que possamos ser livres”. Desse processo, resulta uma sentença fortíssima, que proíbe Lorenzo da Ponte a exercer o ofício de professor, leitor, preceptor, instrutor, etc, em qualquer colégio, seminário, universidade do “sereníssimo domínio vêneto” (ibidem, p 47).

Isso não impediu, porém, que o acusado, junto com seu irmão, se tornasse muito conhecido em Veneza por causa de seus versos, feitos, em grande parte, na base do improviso. Os dois chegaram a ser chamados de “os improvisadores de Ceneda”.

As intrigas, porém, voltaram – e agora de sua própria casa. A irmã do seu protetor, Teresa, conseguiu convencer o irmão a deixá-la casar com um pretendente, graças à intervenção de Lorenzo da Ponte. Mas o poeta ficou sabendo, de forma casual, que o jovem casal pretendia caluniá-lo para que Memmo o expulssasse de casa. Lorenzo da Ponte contou o ocorrido ao seu mecenas, que não acreditou na história. A tensão entre os dois amigos aumentou, chegando ao ponto de Memmo, a certa altura, indagar: “você sabe com quem está falando?”. O poeta recordaria em suas memórias que aquela “era a frase que os nobres venezianos geralmente tinham na ponta da língua” (ibidem, p. 58).

O noivado de Teresa foi rompido, mas ela logo se apaixonou por um jovem da plebe, que tencionava casar-se com ela apenas pela posição social. Lorenzo Da Ponte descobriu as intenções do rapaz e se comprometeu a ajudá-lo, desde que o jovem convençesse Teresa a confessar ao irmão a perfídia que armara contra o amigo.

O intento deu resultado e a frágil amizade do poeta e de seu protetor foi reforçada. Mas um novo processo foi instaurado contra o escritor. Lorenzo da Ponte havia escrito um poema corrosivo contra a classe dos magistrados, pois um grande amigo seu, Giorgio Pisani, havia sido preterido em um concurso público, devido a conchavos políticos. O poeta foi obrigado a sair de Veneza, mas seu poema tornou-se muito popular na cidade, assim como

seus inúmeros versos feitos no improviso. A despeito disso, o velho poeta, escrevendo suas memórias, teria uma opinião negativa sobre o verso improvisado.

Devo confessar que tal exercício pareceu-me absolutamente contrário à poesia escrita; deve parecer supreendente que, entre tantos gênios sublimes que recitam ou cantam versos belíssimos de improviso, muito poucos são so que não se revelam medíocres quando escrevem (1998, p. 58).

Saindo de Ceneda, Lorenzo da Ponte fixou-se em Gorízia, ao norte da Itália, próxima à atual fronteira com a Croácia. Lá ele escreveu um poema em homenagem ao conde Guido Cobenzl, um dos principais responsáveis pelo acordo de paz entre a Prússia e a Áustria, depois da Guerra de Sucessão. Este poema dá ao poeta notoriedade como poeta “sério”. Como sustento, sobrevive traduzindo obras literárias do alemão e do francês para o italiano.

Mas Lorenzo é vítima de mais uma trama. Um amigo do poeta, Mazzolà, havia se mudado para Dresden, prometendo escrever ao amigo caso encontrasse para ele um bom emprego naquela cidade. Pouco depois, da Ponte recebe uma carta, assinada por Catarino Mazzolà, pedindo para que ele partisse imediatamente. Chegando a Dresden, o poeta descobre que a carta era uma fraude, feita provavelmente por um inimigo que fizera em Gorízia. Não havia emprego algum. Mazzolà havia escrito uma carta, mas dizendo justamente para Lorenzo da Ponte não deixar Gorízia.

Mesmo assim, é em Dresden que da Ponte escreveu uma série de sete poemas religiosos, que ele intitulou de “Salmos”, e dedicou a um padre chamado Huber. O trabalho faz o autor ser reconhecido fora de sua pátria. Feliz com o sucesso, e com uma carta de recomendação de Mazzolà, da Ponte decidiu fixar-se em Viena, onde conhece, graças às referências do amigo, o imperador José II e o então compositor oficial da corte, Antonio Salieri. É através do maestro conterrâneo que o poeta começou sua incursão no teatro. Escreveu o libreto da ópera “Un ricco de un giorno” (O rico de um dia), que, a despeito do pessimismo de seu autor, alcançou grande sucesso. Porém, em suas mémórias, o libretista não creditou a si o motivo do sucesso da história, pois Salieri havia feito “pequenas modificações” no libreto.

Mas em que consistiam essas pequenas modificações? Em mutilar ou ampliar a maior parte das cenas; em introduzir novos duetos, tercetos, quarteotos, etc., em mudar metros na metade das árias; em misturar os coros (que seriam cantados por alemães!); em suprimir quase todos os recitativos e, consequentemente, todo o enredo e o interesse da obra, se algum havia; de maneira que, quando o drama foi representado, não restavam mais do que cem versos do meu primeiro original (1998, p. 101).

Devido à suspensão de muitas pensões e regalias, decretada por José II logo após a morte da mãe, um dos prejudicados com a nova ordem foi Metastásio, poeta oficial da corte e renomado libretista. Lorenzo da Ponte tornou-se seu amigo, logo depois que Metastásio leu um de seus poemas e não poupou elogios ao recém chegado. A amizade não durou muito, pois Metastásio morre logo depois, amargurado com a política do novo imperador. É a esse grande poeta e dramaturgo que devemos a introdução, no repetório operístico, da arietta: pequena melodia de caráter sentimental.

Com o cargo vago, e com as referências de Mazzolà e Salieri, Lorenzo da Ponte tornou-se o poeta imperial de José II. Trabalhou, além de Salieri, também para um jovem compositor espanhol recém chegado à Viena, Martín y Soler. A parceria produz a ópera “Il burbero di buon core” (O rústico de bom coração), que obtém sucesso estrondoso. É nessa época que o poeta conheceu Mozart. Segundo o italiano, o primeiro encontro entre os dois deu-se na casa do barão Vetzlar. O poeta lembrou, em suas memórias, que, além de Martín y Soler, apenas Mozart tinha a sua simpatia como compositor. Sobre o segundo, da Ponte diz:

Conquanto dotado de talento superior ao de qualquer outro compositor do mundo passado, presente ou futuro, jamais pudera, graças às intrigas dos seus inimigos, exercitar seu gênio divino em Viena e permaneceria desconhcido e obscuro, como uma gema preciosa que, sepultada nas entranhas da terra, oculta o brilho do seu esplendor. Não posso recordar, sem regozijo e satisfação, que minha perseverença e firmeza foram em grande parte responsáveis para que a Europa e todo o mundo conhecessem as magníficas composições vocais desse admirável gênio (ibidem, p.112).

O primeiro trabalho da dupla é a ópera “Lo sposo deluso, ossia La rivalità di tre donne per un solo amante” (O noivo enganado ou A rivalidade de três mulheres por causa de um mesmo amante). A peça, porém, foi um fracasso, pois Mozart não conseguiu terminar a música no prazo estipulado, enxertando o trabalho com algumas árias de suas óperas anteriores. O libretista teve que fazer o mesmo, e o resultado, conforme consta em suas memórias, “foi uma embrulhada, uma confusão sem pé nem cabeça, que foi representada três vezes e relegada ao esquecimento” (ibidem, p. 113). O fracasso, porém, não os desanimou. Segundo Lorenzo da Ponte, foi Mozart quem teve a idéia de musicar a peça de Beaumarchais.

Recomecei tranqüilamente a pensar nos dramas que faria para os meu caros amigos Mozart e Martín. Quanto ao primeiro, compreendi facilmente que a magnitude do seu gênio exigia um tema vultoso, multiforme, sublime. Certo dia, enquanto conversávamos sobre essa matéria, ele indagou se eu poderia adaptar a

comédia de Beaumarchias Le nozze di Figaro (As bodas de Fígaro) com facilidade. A proposta agradou-me sobremaneira, e prometi que o faria (ibidem, p. 113).

O trabalho levou seis meses para ser composto, e a dupla trabalhou concomitantemente: “à medida que escrevia as palavras, Mozart compunha a música” (ibidem, p. 114). Antes disso, porém, coube a Lorenzo da Ponte a difícil tarefa de convencer o imperador a liberar a encenação da ópera. O poeta, em suas memórias, narra a conversa com o monarca dessa forma:

Aproveitei a ocasião e fui, sem falar com quem quer que fosse, oferecer o

Figaro ao próprio imperador. “Como!” disse ele. “Não sabeis que Mozart, embora

seja um compositor talentosíssimo de música instrumental, escreveu apenas um drama vocal e que não era grande coisa?!” “Nem eu”, repliquei respeitosamente, “teria escrito mais de um drama em Viena, sem a clemência de Vossa Majestade.” “É verdade”, replicou, “mas eu não permiti que a companhia alemã respresentasse essa peça.” “Sim”, acrescentei, “mas tendo composto um drama para música e não uma comédia, tive de omitir várias cenas e reduzir outras, e omiti e reduzi o que poderia ofender a urbanidade e decência de um espetáculo a que Vossa Majestade preside. Quanto à música, pelo que posso julgar, parece-me de uma beleza grandiosa”. “Bem: se é assim, confio em vosso gosto quanto à música e na vossa prudência quanto aos costumes. Enviai a partitura ao copista” (ibidem, p. 114).

Assim, após o esforço diplomático de Lorenzo da Ponte, a ópera foi liberdada para apresentação. A batalha pela liberdade de expressão, porém, continuou durante os ensaios. Ao saber que Mozart havia colocado uma balé em sua ópera – o que a lei imperial proibia –, o diretor do teatro proibiu a cena, que estava programada para o segundo ato. Mozart ameaçou queimar as partituras, caso não fossem atendidas suas exigências. A disputa entre os dois foi resolvida pelo imperador, que abriu uma brecha em sua própria lei para ouvir o balé de Mozart – graças, convém salientar, a outra intervenção providencial de Lorenzo da Ponte. A 1º de maio de 1786, a ópera finalmente estreava, no Burgtheater.

CENA 7

E é lá que vemos Lorenzo da Ponte, assistindo a peça de seu camarote. A ópera está na última cena: um coral que reune todos os principais personagens. Logo que a música acaba, prorrompe novamente uma explosão de aplausos. O libretista levanta-se para aplaudir, enquanto o jovem maestro vira-se para o público. Os dois trocam um olhar contente e cúmplice, como dois meninos que acabaram de fazer uma estripulia, sem serem punidos.

Do outro lado da platéia, há um camarote vazio. Nele estava o nosso nobre da cena 1 do segundo ato deste trabalho. Assim que acabou a ópera, ele saiu às pressas, com uma expressão de desagrado. Agora, ele já está fora do teatro, entrando em sua carruagem. Em poucos minutos, chega em casa. Senta-se em sua escrivanhia para escrever alguma coisa em seu diário. Rabisca apenas algumas palavras, que podemos ler em Norbert Elias: “acabei de assistir a mais nova ópera de Mozart, ‘As bodas de Fígaro’, e saí do teatro profundamente irritado” (1994, p. 97).

TERCEIRO ATO

(a intertextualidade entre Le mariage e Le Nozze di Figaro)

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