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LUA NOVA

No documento americanas (páginas 85-99)

Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaço Ei-la assoma serena e indecisa: Sopro é dela esta lânguida brisa Que sussurra na terra e no mar. Não se mira nas águas do rio, Nem as ervas do campo branqueia; Vaga e incerta ela vem, como a idéia Que inda apenas começa a espontar.

E iam todos; guerreiros, donzelas, Velhos, moços, as redes deixavam; Rudes gritos na aldeia soavam, Vivos olhos fugiam p’ra o céu: Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,

Que, entre um grupo de brancas estrelas, Mal cintila: nem pôde vencê-las,

Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.

***

E um guerreiro: “Jaci, doce amada, Retempera-me as forças; não veja Olho adverso, na dura peleja, Este braço já frouxo cair.

Vibre a seta, que ao longe derruba Tajaçu, que roncando caminha; Nem lhe escape serpente daninha,

Nem lhe fuja pesado tapir.”

***

E uma virgem: “Jaci, doce amada, Dobra os galhos, carrega esses ramos Do arvoredo co’as frutas* que damos Aos valentes guerreiros, que eu vou A buscá-los na mata sombria, Por trazê-los ao moço prudente, Que venceu tanta guerra valente, E estes olhos consigo levou.”

***

E um ancião, que a saudara já muitos, Muitos dias: “Jaci, doce amada, Dá que seja mais longa a jornada, Dá que eu possa saudar-te o nascer, Quando o filho do filho, que hei visto Triunfar de inimigo execrando,

Possa as pontas de um arco dobrando Contra os arcos contrários vencer.”

***

E eles riam os fortes guerreiros, E as donzelas e esposas cantavam, E eram risos que d’alma brotavam, E eram cantos de paz e de amor.

*

Rude peito criado nas brenhas,

— Rude embora — terreno é propício; Que onde o gérmen lançou benefício Brota, enfolha, verdeja, abre em flor.

SABINA

Sabina era mucama da fazenda; Vinte anos tinha; e na província toda Não havia mestiça mais à moda, Com suas roupas de cambraia e renda.

Cativa, não entrava na senzala, Nem tinha mãos para trabalho rude; Desbrochava-lhe a sua juventude Entre carinhos e afeições de sala.

Era cria da casa. A sinhá-moça, Que com ela brincou sendo menina, Sobre todas amava esta Sabina,

Com* esse ingênuo e puro amor da roça.

Dizem que à noite, a suspirar na cama, Pensa nela o feitor; dizem que um dia, Um hóspede que ali passado havia, Pôs um cordão no colo da mucama.

Mas que vale uma jóia no pescoço? Não pôde haver o coração da bela. Se alguém lhe acende os olhos de gazela, É pessoa maior: é o senhor moço.

***

Ora, Otávio cursava a Academia.

*

Era um lindo rapaz; a mesma idade Co’as passageiras flores o adornava De cujo extinto aroma inda a memória Vive na tarde pálida do outono. Oh! vinte anos! Ó pombas fugitivas Da primeira estação, porque tão cedo Voais de nós? Pudesse ao menos a alma Guardar consigo as ilusões primeiras, Virgindade sem preço, que não paga Essa descolorida, árida e seca Experiência do homem!

***

Vinte anos

Tinha Otávio, e a beleza e um ar de côrte* E o gesto nobre, e sedutor o aspecto; Um vero Adônis, como aqui diria Algum poeta clássico, daquela Poesia que foi nobre, airosa e grande Em tempos idos, que ainda bem se foram... Também eu a adorei, uma hora ao menos, E suspirei destes remotos climas

Pelas formosas ribas do Escamandro, Onde descia, entre soldados gregos, A moça Vênus; frívolo suspiro

Que não pode acordar dos seus sepulcros Esses numes brincões da velha idade, Mortos por seus pecados — que os tiveram,

*

E por sossego nosso. Eram amáveis E belos no seu tempo; hoje fariam Igual papel ao do tardio máscara

Que, ao desdobrar a aurora os panos de ouro, Entre madrugadores se aventura.

***

Cursava a Academia o moço Otávio; Ia no ano terceiro: não remoto Via desenrolar-se o pergaminho, Prêmio de seus labores e fadigas; E uma vez bacharel, via mais longe Os curvos braços da feliz cadeira Donde o legislador a rédea empunha Dos lépidos frisões do Estado. Entanto, Sobre os livros de estudo, gota a gota As horas despendia, e trabalhava Por meter na cabeça o jus romano E o pátrio jus. Nas suspiradas férias Volvia ao lar paterno; ali no dorso De brioso corcel corria os campos, Ou, arma ao ombro, polvorinho ao lado, À caça dos veados e cotias,

Ia matando o tempo. Algumas vezes Com o padre vigário se entretinha Em desfiar um ponto de intrincada Filosofia, que o senhor de engenho, Feliz pai, escutava glorioso,

Do* suas ricas esperanças.

***

Era Manhã de estio; erguera-se do leito Otávio; em quatro sorvos toda esgota A taça de café. Chapéu de palha, E arma ao ombro, lá foi terreiro fora, Passarinhar no mato. Ia costeando O arvoredo que além beirava o rio, A passo curto, e o pensamento à larga, Como leve andorinha que saísse Do ninho, a respirar o hausto primeiro Da manhã. Pela aberta da folhagem, Que inda não doura o sol, uma figura Deliciosa, um busto sobre as ondas Suspende o caçador. Mãe d’água fora, Talvez , se a cor de seus quebrados olhos Imitasse a do céu: se a tez morena, Morena como a esposa dos Cantares, Alva tivesse; e raios de ouro fossem Os cabelos da cor da noite escura, Que ali soltos e úmidos lhe caem, Como um véu sobre o colo. Trigueirinha, Cabelo negro, os largos olhos brandos Cor de jabuticaba, quem seria,

Quem, senão a mucama da fazenda, Sabina, enfim? Logo a conhece Otávio, E nela os olhos espantados fita

*

Que desejos acendem. — Mal cuidando Daquele estranho curioso, a virgem Com os ligeiros braços rompe as águas, E ora toda se esconde, ora ergue o busto, Talhado pela mão da natureza

Sobre o modelo clássico. Na oposta Riba suspira um passarinho; e o canto, E a meia luz, e o sussurrar das águas, E aquela fada ali, tão doce vida

Davam ao quadro, que o ardente aluno Trocara por aquilo, uma hora ao menos, A Faculdade, o pergaminho e o resto.

***

Súbito erige o corpo a ingênua virgem; Com as mãos, os cabelos sobre a espádua Deita, e rasgando lentamente as ondas, Para a margem caminha, tão serena, Tão livre como quem de estranhos olhos Não suspeita a cobiça...Véu da noite, Se lhos cobrira, dissipara acaso Uma história de lágrimas. Não pode Furtar-se Otávio à comoção que o toma; A clavina que a esquerda mal sustenta No chão lhe cai; e o baque surdo acorda A descuidada nadadora. Às ondas A virgem torna. Rompe Otávio o espaço Que os divide; e de pé, na fina areia, Que o mole rio lambe, ereto e firme, Todo se lhe descobre. Um grito apenas

Um só grito, mas único, lhe rompe Do coração; terror, vergonha... e acaso Prazer, prazer misterioso e vivo

De cativa que amou silenciosa,

E que ama e vê o objeto de seus sonhos, Ali com ela, a suspirar por ela.

***

“Flor da roça nascida ao pé do rio, Otávio começou — talvez mais bela Que essas belezas cultas da cidade, Tão cobertas de jóias e de sedas, Oh! não me negues teu suave aroma! Fez-te cativa o berço; a lei somente Os grilhões te lançou; no livre peito De teus senhores tens a liberdade, A melhor liberdade, o puro afeto Que te elegeu entre as demais cativas, E de afagos te cobre! Flor do mato, Mais viçosa do que essas outras flores Nas estufas criadas e nas salas, Rosa agreste nascida ao pé do rio Oh! não me negues teu suave aroma!”

***

Disse, e da riba os cobiçosos olhos Pelas águas estende, enquanto os dela, Cobertos pelas pálpebras medrosas

Duas únicas lágrimas. O rio

No seio as recebeu; consigo as leva, Como gotas de chuva, indiferente

Ao mal ou bem que lhe povoa a margem; Que assim a natureza, ingênua e dócil Às leis do Criador, perpétua segue

Em seu mesmo caminho, e deixa ao homem Padecer e saber que sente e morre.

***

Pela azulada esfera inda três vezes A aurora as flores derramou, e a noite Vezes três a mantilha escura e larga Misteriosa cingiu. Na quarta aurora, Anjo das virgens, anjo de asas brancas, Pudor, onde te foste? A alva capela, Murcha e desfeita pelo chão lançada, Coberta a face do rubor do pejo, Os olhos com as mãos velando, alçaste Para a Eterna Pureza o eterno vôo.

***

Quem ao tempo cortar pudera as asas Se deleitoso voa? Quem pudera Suster a hora abençoada e curta Da ventura que foge, e sobre a terra O gozo transportar da eternidade? Sabina viu correr tecidos de ouro Aqueles dias únicos na vida

Toda enlevo e paixão, sincera e ardente Nesse primeiro amor d’alma que nasce E os olhos abre ao sol. Tu lhe dormias, Consciência; razão, tu lhe fechavas A vista interior; e ela seguia

Ao sabor dessas horas mal furtadas Ao cativeiro e à solidão, sem vê-lo O fundo abismo tenebroso e largo Que a separa do eleito de seus sonhos, Nem pressentir a brevidade e a morte!

***

E com que olhos de pena e de saudade Viu ir-se um dia pela estrada fora Otávio! Aos livros torna o moço aluno, Não cabisbaixo e triste, mas sereno E lépido. Com ela a alma não fica De seu jovem senhor. Lágrima pura, Muito embora de escrava, pela face Lentamente lhe rola, e lentamente Toda se esvai num pálido sorriso De mãe,

***

Sabina é mãe; o sangue livre Gira e palpita no cativo seio

E lhe paga de sobra as dores cruas

Da longa ausência. Uma por uma, as horas Na solidão do campo há de contá-las,

E suspirar pelo remoto dia

Em que o veja de novo... Pouco importa, Se o materno sentir compensa os males.

***

Riem-se dela as outras; é seu nome O assunto do terreiro. Uma invejosa Acha-lhe uns certos modos singulares De senhora de engenho; um pajem moço, De cobiça e ciúme devorado,

Desfaz nas graças que em silêncio adora E consigo medita uma vingança.

Entre os parceiros, desfiando a palha Com que entrança um chapéu, solenemente Um Caçanje ancião refere aos outros Alguns casos que viu na mocidade De cativas amadas e orgulhosas, Castigadas do céu por seus pecados, Mortas entre os grilhões do cativeiro.

***

Assim falavam eles; tal o aresto Da opinião. Quem evitá-lo pode

Entre os seus, por mais baixo que a fortuna Haja tecido o berço? Assim falavam Os cativos do engenho; e porventura Sabina o soube e o perdoou.

Volveram Após os dias da saudade os dias

Da esperança. Ora, quis fortuna adversa Que o coração do moço, tão volúvel Como a brisa que passa ou como as ondas, Nos cabelos castanhos se prendesse Da donzela gentil, com quem atara O laço conjugal: uma beleza

Pura, como o primeiro olhar da vida, Uma flor desbrochada em seus quinze anos, Que o moço viu num dos serões da corte E cativo adorou. Que há de fazer-lhes Agora o pai? Abençoar os noivos E ao regaço trazê-los da família.

***

Oh longa foi, longa e ruidosa a festa Da fazenda, por onde alegre entrara O moço Otávio conduzindo a esposa. Viu-os chegar Sabina, os olhos secos Atônita e pasmada. Breve o instante Da vista foi. Rápido foge. A noite A seu trêmulo pé não tolhe a marcha; Voa, não corre ao malfadado rio, Onde a voz escutou do amado moço. Ali chegando: “Morrerá comigo O fruto de meu seio; a luz da terra Seus olhos não verão; nem ar da vida Há de aspirar...”

***

Ia a cair nas águas, Quando súbito horror lhe toma o corpo; Gelado o sangue e trêmula recua, Vacila e tomba sobre a relva. A morte Em vão a chama e lhe fascina a vista; Vence o instinto de mãe. Erma e calada Ali ficou. Viu-a jazer a lua

Largo espaço da noite ao pé das águas, E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros; Nenhum deles, contudo, o disse à aurora.

No documento americanas (páginas 85-99)

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