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Lucien Freud

No documento Auto-retrato : eu não sou (páginas 89-92)

Sólido e Evanescente

61. Lucien Freud

Auto-retrato, Reflexão, 1985

Óleo sobre tela 56X51 cm Coleção particular

va pelas grandes telas manchadas e gestuais ou pelas composições geométricas, ele per- maneceu como um autêntico sobrevivente da representação realista em pleno século 20. A nota marcante mais sensível neste auto-retrato e em toda sua obra é a acintosa disposição com que o artista desafia as representações fotográficas em pleno final do século 20, quando essas técnicas ganham espaço na cena artística em todo mundo. O artista esquadrinha sua fisiono- mia imprimindo caráter e vitalidade em cada gesto e grumo de tinta aderido à sua figura. O olho foca cada parte e valoriza todas igualmente. As texturas e porosidade de sua pele/tinta, a fixidez do olhar com o gesto displicente da boca, nos remetem às efígies do Fayum e como estas nos transmitem a idéia de que aí na sua representação há vida. Os detalhes de sua face cuidadosamente construídos à base de pequenas e sucessivas pinceladas e o contraste mar- cante das sombras e luzes que culminam com a grande mancha sob seu queixo conferem à sua cabeça uma solidez inamovível. Seu busto desnudo com um contorno recortado em mas- sas de tinta sobre o fundo não deixa dúvida ou brechas para a fantasia do espectador. Sua figu- ra tem uma presença absoluta no espaço que não está exatamente na colocação da figura con- tra o fundo ou do fundo que a isola, mas entre as duas, no meio do contorno, onde uma ener- gia imperceptível parece estar afirmando: por mais perecível que eu seja, eu estou aqui, eu existo.

No modo evanescente, o desenho se faz a partir do fundo. As massas de tons escuros vão sendo distribuídas, conformando também as áreas mais claras de luz, trazendo a imagem à tona ou fazendo-a recuar na profundi- dade do suporte simultanea- mente. Os contornos são diluí- dos, a tensão da linha que delimi- ta é substituída pelo esgarçamen- to das bordas. Não há limites fixos, mas aberturas. Neste modo o espaço todo, figura e entorno, recebe um tratamento homogê- neo. A figura forjada no plano pelas manchas e esfumados aca- ba envolta numa atmosfera sol- vente, num movimento ambíguo de se afirmar ou desfazer-se

(figs. 62 e 63).

62. Gilberto Vançan

Auto-retrato, 2002

Esferográfica sobre papel 34X25 cm

Na elaboração da figura há um trabalho de sugestão que re- siste ao detalhe e ao excesso de informa- ções. As áreas de som- bra são descuidadas e indefinidas formando uma superfície granu- lada e irregular, que será o centro de inte- resse das percepções e sensações visuais. É nesta superfície vapo- rosa ou caótica, de at- mosfera instável, que se esboçam os con- trastes e se anunciam as formas estruturais que configuram a imagem. Nela o rosto não detém todo desta- que, mas participa do movimento geral da atmosfera que unifica o espaço.

Quando a figura vem representada em meio a esta superfície brumosa, ela reveste- se de um estado nos- tálgico, longínquo, fa- zendo aumentar a sensação de irrealida- de. Este espaço não é lugar nenhum e todos ao mesmo tempo, pois se tornou um lu- gar simbólico. É um espaço fluido em si mesmo, não uma janela como nas pinturas naturalistas, mas um micro- cosmo que estabelece uma evidente relação entre interior e exterior. O entorno que estaria ladeando a figura na sua função de fundo é “explodido”, vindo a ser espaço envolvente, pul- sante, infinito. Pode-se julgar que este campo seja suave e sereno, mas há uma tensão que nos faz indagar até que ponto esta superfície resiste sem a figura ou esta suporta tal evanescência sem desfazer-se.

63. Gilberto Vançan

Auto-retrato, 2003

Carvão sobre papel 40X30 cm

Cito para representar este modo dois artistas e seus respec- tivos auto-retratos que marcam épocas extremas em que a fotografia e suas pesquisas são o elo que os une: Eugène Carrière (1849-1906) e Gerhard Richter (1932). Em sua totalidade a obra de Eugène Carrière está fundada em atmosferas evanescentes, nas relações de luz e sombra e com- posições monocromáticas, nas quais os tons terrosos e ocres que temperam os brancos e negros são uma constante. Suas figuras elaboradas em sintéticas massas de claros e escuros nor- malmente emergem ou estão mergulhadas em atmosferas sombrias. Desfeitas nas áreas de sombra parecem incompletas ou inacabadas, o que confere à sua pintura a forte característica de sugestão. Neste auto-retrato (fig. 64) a definição e solidez da luz em sua testa contrasta com todo o entorno de sua cabeça que a partir deste ponto se desmancha no fundo da tela. A área em que o lado do seu rosto e o pescoço estão na sombra poderia ser vista como inacabada, mas não o é. O artista a valoriza tanto quan- to a área de luz e a incorpora ao fundo, num todo indistinto do

qual sua face se alça sobranceira, marcada por dois pontos negros simétricos que sugerem olhos indagadores. A partir disso as outras formas, sobrancelhas, nariz, faces e boca, são man- cha informe que faz sentido somente no conjunto. É pintura para ser vista a distância, em que a imagem vai se formar em nossos olhos.

No imenso rol de importância dos artistas e movimentos da história da pintura, E. Carrière, considerado por seus coetâneos um pintor simbolista, é um artista de segunda linha. Foi pro- fessor de Matisse e inspirou Picasso, mas sua obra permanece escondida. No Museu D’Orsay, por exemplo, onde muitos artistas de sua época como Odilon Redon, Edgar Degas, Paul Gauguin têm uma sala especial, algumas de suas obras e estudos estão numa grande sala, jun- tamente com outros artistas cujas pesquisas tinham alguma questão muito particular ou até

No documento Auto-retrato : eu não sou (páginas 89-92)