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Lucrécio e a ciência correta da natureza

4. Parte III: Testemunhos tardios e Carta a Heródoto

4.6 Lucrécio e a ciência correta da natureza

Um excelente exemplo de como os epicuristas entendiam a verdadeira ciência da natureza e de como eles combatiam o mito e a falsa filosofia (à semelhança de Colotes) pode ser encontrado em Lucrécio, por meio de seu posicionamento contra a fórmula <a função faz o órgão>. Lucrécio foi um dos maiores combatentes dessa fórmula, quando por função entendemos “finalidade”. São três as passagens nas quais o antiteleologismo é evocado claramente. No Livro II, 167-183, há a ideia de que mediante a ignorância do princípio das coisas, não podemos chegar à conclusão de que o mundo foi criado em função do homem, já que o mal existente na natureza é patente e contrário à preservação da vida humana. No Livro IV, 825-857, vemos que não há nada em nosso corpo que tenha aparecido para que possamos fazer uso: a origem da língua, por exemplo, seria anterior à do falar. Igualmente, no Livro V, 110-234, há a rejeição à noção teleológica na natureza, já que, do contrário, Lucrécio teria de adotar a ideia teológica de que os deuses fizeram o mundo com um propósito específico68.

Essa demonstração da ciência da natureza epicurista por meio da rejeição à fórmula <a finalidade faz o órgão> ganhou destaque, no século XX, por causa das ideias darwinistas. Muitos passaram a entender que Lucrécio teria precedido Darwin, não obstante Darwin provavelmente ter lido apenas alguns trechos da física de Aristóteles - e, por conseqüência, da de Empédocles -, mas nada da física lucreciana. É fato que o poeta enfatiza, mais do que seus predecessores - Demócrito, Anaximandro e Empédocles -, dois elementos essenciais do pensamento darwinista, a antiteleologia e a seleção natural, mas, por outro lado, nada diz da seleção com modificação, que constitui o ponto arquimediano de Darwin69. O direcionamento lucreciano, a nosso ver, é mais modesto.

Contra uma função teleológica, Lucrécio diz que seria um erro supor que os olhos foram criados a fim de que possamos ver (IV, 825-6), já que nada surgiu em nosso corpo para que possamos usá-lo, mas é o fato de o órgão ser engendrado que cria a sua utilização

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Bailey (1936, p. 297-8), nesse último caso, adota a mesma perspectiva.

69 É verdade que muitos, como Gilson (1971) por exemplo, não aceitam facilmente a ideia de que Darwin rejeitou completamente a teleologia. Mas é patente que Darwin evitou fazer uso do termo evolução, uma vez que em sua época portava um significado finalista (cf. Tort, 1996 – termo evolução ; Zirkle, 1941, p. 71-123). Nesse caso, é-nos claro que Darwin tinha pelo menos alguma restrição ao teleologismo.

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(IV, 834-5). Esse argumento liga-se à falta de finalidade no surgimento de espécies débeis: as criaturas que por acaso foram mal formadas não seriam capazes de encontrar comida, de atingir a maturidade e se reproduzir, de modo que a própria natureza lhes impediria o desenvolvimento (V, 846-7). Não haveria, naturalmente, uma causa final na criação de monstros e aberrações.

A teoria das causas finais, nesse contexto, inverteria a ordem dos fatos, por tomar o efeito pela causa. Por exemplo, Lucrécio pensa que um pássaro voa porque é capaz de voar, que os olhos enxergam porque são capazes de enxergar: visão e voo são efeitos, mas, para ele, um filósofo finalista (tal como Aristóteles) tomaria, erroneamente, a visão e o voo enquanto causa. A negação da existência de causas finais da parte de Lucrécio mostra que só pode haver, no modo de ser da natureza, causas eficientes. Logo, o grande defeito da doutrina da causa final seria o de proporcionar uma inversão na ideia de criação de um órgão e de seu uso, considerando enquanto causa o que é efeito.

Alguns, como é o caso de Agostinho da Silva (1973, nota 65), consideram que Lucrécio deu um passo significativo rejeitando a tal fórmula e que ele estaria de acordo com a ciência contemporânea, a qual só admite causas eficientes. Mas há quem faça sérias restrições a essa rejeição. É o caso de Paul Janet (1884, p. 474 - 90), que pensa que Lucrécio, e por consequência o epicurismo, fracassou ao tentar combater o teleologismo aristotélico, já que supor um intervalo entre a origem dos órgãos e o uso deles seria um argumento sem efeito. Nesse caso, a suposição lucreciana de que o homem, percebendo que as pernas são boas para caminhar, comece a caminhar, ou percebendo que os olhos são capazes de enxergar, comece a enxergar, seria falsa e absurda. O motivo é dado com exemplos: seria evidente que ao coração convém pulsar e aos pulmões respirar assim que eles são produzidos. À boca, por exemplo, convém beber, a fim de manter a nutrição, cabendo aos membros do corpo receber essa nutrição quase imediatamente após o nascimento, já que, de outra forma, qualquer animal, ou mesmo o homem, não sobreviveria.

Se assumirmos, nesse caso, a existência dos olhos, assumimos a da visão. A fórmula deveria então ser convertida para <tal órgão, tal função>. Contra Lucrécio, portanto, Janet pergunta: mas como um órgão vem de fato a existir? Sua ressalva é que toda função é a

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solução de um problema, consistindo em harmonizar as condições internas de um organismo com as condições externas do meio físico. Quando essa harmonia é encontrada, o efeito aparece como algo bem claro. Mas de que modo essa harmonia surge? Eis uma pergunta a que Lucrécio não responderia, segundo Janet.

Mas pensamos que Lucrécio, nas passagens já mencionadas dos Livros II, IV e V, parece estar enfatizando que, se os órgãos fossem criados em vista de um fim, o fim já deveria ter precedido a produção dos órgãos, já que, sendo a causa dessa produção, deveriam, enquanto tais, preexistir. Assim, a visão deveria ter existido em algum lugar antes de os olhos serem inventados para ver - o que é absurdo. A ênfase na causa eficiente enquanto descrição do funcionamento dos organismos denota que as espécies têm uma história de desenvolvimento orgânico, de modo que Lucrécio pode perfeitamente reconhecer, em seu tempo, a harmonia entre órgão e função (olho e visão) sem negar que em algum momento remoto algum animal pudesse portar olhos, mas não enxergar, adquirindo, todavia, essa capacidade somente muito tempo depois. E desse modo se daria a investigação epicurista que corresponde à φυσιολογία ὀρθή, ressaltada por Polístrato, Filodemo e também por Lucrécio.

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