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seu lugar na tradição Cf Alexander Dolínin, in: Julian Connoly, The Cambridge Companion to

Nabokov, cit., p. 57.

149 Devemos lembrar aqui da comparação de Tyniánov entre o estilo de Dostoiévski e o de

Gógol, chegando a demonstrar como o escritor em suas primeiras obras fazia uso da paródia do estilo e dos temas gogolianos, numa espécie de diálogo com a tradição literária russa. Cf. I. Tyniánov. “Dostoiévski i Gógol (K teorii parodi)” (“Dostoiévski e Gógol - Para uma teoria da paródia”), cit.

150 Esse caráter parodístico da obra de Dostoiévski fica bastante evidente já em sua primeira

obra. Gente Pobre é um romance em cartas, gênero muito comum no século XVIII. Porém, as personagens que escrevem as cartas e os temas tratados nelas são novos, característicos do século XIX, inaceitáveis na época em que o gênero do romance epistolar teve sua maior popularidade. O Duplo, segunda obra do escritor, é reconhecido por muitos críticos, entre eles o próprio Nabókov, como uma paródia do estilo e de temas gogolianos. Outras obras, como

Noites Brancas e A Senhoria, são encaradas como paródias de temas caros ao Romantismo

mais tarde. Cabe aqui lembrarmos também da frase de Tyniánov, que reconhece a linha de evoluçуo literпria como uma eterna luta, a “destruição do velho e a nova ediПicaçуo de antiРos elementos”151. Novamente, percebe-se que a antipatia de

Nabókov com relação a Dostoiévski não se dá quanto ao método do escritor, mas sim no que tange à forma com que Dostoiévski usa o método de representação realista e a paródia. Como vai ficando cada vez mais claro, é a linguagem (Bakhtin diria “linРuaРens”) de Dostoiévski e a Пorma como o escritor orРaniгa seu material que tanto incomodam Nabяkov. Em sua visуo aristocrпtica, “leavista”, de literatura e do Пaгer literário não há espaço para o estilo dostoievskiano, tão saturado de aspectos trágicos, de conПlitos dramпticos, tуo distante do “belo” que Nabяkov reconhece em TurРuêniev, Tolstói e Tchékhov. Nabókov tem em tão grande estima certas convenções do romance ocidental do século XIX (com as quais Dostoiévski rompe em busca de seu “realismo que estп na proПundeгa”), que acaba por desvaloriгar Dostoiévski, muito embora ainda apresente semelhanças essenciais com o escritor quanto ao método de criação literária. Em sua atitude iconoclasta e elitista, Nabókov parece reconhecer a necessidade nуo de “tirar Dostoiévski do pedestal”, mas de deslocп-lo para outro espaço que não seja o dos romances realistas do século XIX. Ao desvalorizar algumas das técnicas que Dostoiévski usava para representar sua concepção de realidade e realismo (tão diferentes daquelas de sua época), o autor busca colocá-lo em outro patamar, que não seja aquele de Púchkin ou Tolstói. Em certa medida, isso também é feito por outros críticos, como Bakhtin, que reconhece o romance dostoievskiano como algo novo, diferente daquele de sua época.

A discussão que Nabókov suscita ao criticar as obras de Dostoiévski é de certa maneira uma discussão sobre as técnicas que definiriam o romance. Esse gênero tão difícil de ser definido (justamente por estar em constante evolução) acaba ramificando-

discutido por diversos autores, entre eles Bakhtin, que reconhece a paródia como uma das técnicas essenciais para a compreensão do romance polifônico de tipo dostoievskiano.

151I. Tyniánov. “Dostoiévski i Gógol (K teorii parodi)” (“Dostoiévski e Gógol - Para uma teoria

se, oferecendo diferentes caminhos, como já disse Erich Auerbach152. De certa forma,

Nabókov desprezava o romance dostoievskiano numa tentativa de estabelecer sua definição normativa de gênero romanesco; o autor buscava mostrar por meio do exemplo negativo a única forma que acreditava ser a correta, o único caminho que via como dotado de real valor artístico, que muito exatamente correspondia ao seu próprio. Esse combate interno reflete a dificuldade que qualquer estudioso do gênero romanesco tem ao tentar definir as características essenciais do romance. Esse gênero vivo, fluido, está, segundo Bakhtin, numa luta frequente e profunda com os outros gêneros e consigo mesmo153. As críticas de Nabókov são um reflexo dessa luta

interna.

Fica claro que, ao criticar Dostoiévski, Nabókov está na verdade alinhando-se a uma certa corrente de estilo definida, de viés clássico e estilisticamente conservadora no que tange à construção da narrativa, e que busca reinventar elementos da tradição fazendo uso de uma linguagem e de certas técnicas muito caras ao estilo do século XIX. O “caos” dostoievskiano, visto por Bakhtin e por outros teяricos como o prenúncio de uma nova forma de romance, é rebaixado por Nabókov, que, mesmo fazendo uso de técnicas modernas de criação romanesca (e de algumas semelhantes às de Dostoiévski, como a paródia), ainda enxerga a construção da obra com o olho clínico e detalhista do observador do século XIX. Por mais que divergências político-ideológicas possam ser levantadas entre os dois autores, a antipatia de Nabókov frente à obra de Dostoiévski é motivada essencialmente por questões estéticas. Da mesma forma que fazia com seus contemporâneos emigrados quando escrevia sob o pseudônimo de V. Sírin, o professor Vladímir Nabókov rebaixa a obra de Dostoiévski para se afirmar esteticamente e ocupar a posição que acredita caber-lhe na tradição da literatura universal. Por meio de uma atitude iconoclasta e aristocrática, o autor apropria-se da tradição, faz uso de algumas das características do romance do século XIX

152 Erich Auerbach, Mimesis, cit.

(subvertendo aquelas para as quais já não vê utilidade), criando assim seu próprio mundo literário e afirmando-se como um autor de sua época.

“FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821 – 1881)”

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