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Profetisa da arquitectura

2.2. LUGARES DE MEMÓRIA

Se A Sibila é um romance escrito pela memória de Germa e, como já afir- mado, esta memória representa tanto Quina (e, antes desta, Maria) como a casa da Vessada, então, é seguro afirmar que todo o espaço da casa e envolvente são deno- minados como lugares de memória. Esta definição foi introduzida pelo historiador Pierre Nora (1931)129, definindo a existência destes locais pela residualidade em que se tornou o sentido de continuidade destes. Este conceito de memória é contraposto ao de história, sendo que o primeiro se fixa ao concreto (espaço, gesto, imagem, objecto), sendo um conhecimento absoluto, e o segundo se liga às continuidades temporais (evoluções e relações das coisas), sendo um relativo. Acrescenta-se que a memória, para o humano, é uma construção de lembranças que não armazenáveis (pela diversidade e quantidade) mas que, porventura, serão necessárias, algo que queda na percepção de passado, numa palavra, aquilo que não mais nos pertence. Quanto aos lugares de memória, seja qual for a sua utilidade, são já condenados a isso mesmo, a servir de memória dessa utilidade, são destroços que lembram a tota- lidade. Estes lugares, nos três sentidos da palavra (material, simbólico e funcional), nascem do querer preservar informação, arquivar, o que pode relativizar a questão; mas é precisamente pela ameaça de algo cair em esquecimento que é criado esse lugar que, em pouco tempo, se torna também ele história – a necessidade de memó- ria é, no entanto, uma necessidade de história. São locais em que o tempo é parado,

129 Cf. NORA, Pierre (1984). Les Lieux de Mémoire. Vol. 1 La République. Ed. Gallimard, Paris. Pp. XVIII- XLII.

onde o estado das coisas se fixa, onde se vive consoante as metamorfoses que estes nos deixam presenciar.

É nesta constante metamorfose dos lugares de memória que se enquadra grande parte d’O Mosteiro. Porém, é necessário rectificar como poderá este livro per- tencer à categoria de uma casa agustiniana e, ao mesmo tempo, descodificar a obra como um romance até certo ponto autobiográfico. Machado lança a questão com um mero raciocínio matemático:

“Desde o início do romance, essa plenitude do imaginário enraíza-se no agre- gado familiar, simbolizado por um mosteiro situado num vale «sempre um pouco sobrevoado por nevoeiros», mosteiro que, como prolongamento da casa familiar, encerra em si toda a carga mitológica da infância do persona- gem central, Belchior Teixeira, ou antes, Belche. Estamos então «por alturas de 1935», Belche tem treze anos. E não é por acaso (nada é por acaso numa obra-prima como esta) que Agustina assinala a data: Belche pertence a essa geração de portugueses que atravessa a segunda guerra mundial em plena juventude, em plena iniciação aos ritos sociais e eróticos, em plena crise de adolescência (teria, portanto, dezassete anos no início da guerra). Como a

própria Agustina, nascida em 1922.”130

A jornalista Ana Margarida de Carvalho defende o mesmo ponto de vista, referindo ainda que “quando Agustina fala das suas personagens ficamos a conhecer

onde o estado das coisas se fixa, onde se vive consoante as metamorfoses que estes nos deixam presenciar.

É nesta constante metamorfose dos lugares de memória que se enquadra grande parte d’O Mosteiro. Porém, é necessário rectificar como poderá este livro per- tencer à categoria de uma casa agustiniana e, ao mesmo tempo, descodificar a obra como um romance até certo ponto autobiográfico. Machado lança a questão com um mero raciocínio matemático:

“Desde o início do romance, essa plenitude do imaginário enraíza-se no agre- gado familiar, simbolizado por um mosteiro situado num vale «sempre um pouco sobrevoado por nevoeiros», mosteiro que, como prolongamento da casa familiar, encerra em si toda a carga mitológica da infância do persona- gem central, Belchior Teixeira, ou antes, Belche. Estamos então «por alturas de 1935», Belche tem treze anos. E não é por acaso (nada é por acaso numa obra-prima como esta) que Agustina assinala a data: Belche pertence a essa geração de portugueses que atravessa a segunda guerra mundial em plena juventude, em plena iniciação aos ritos sociais e eróticos, em plena crise de adolescência (teria, portanto, dezassete anos no início da guerra). Como a

própria Agustina, nascida em 1922.”130

A jornalista Ana Margarida de Carvalho defende o mesmo ponto de vista, referindo ainda que “quando Agustina fala das suas personagens ficamos a conhecer

130 MACHADO, Álvaro Manuel (1983). Agustina Bessa Luís: O Imaginário Total. Op-cit. pp. 150-151.

melhor Agustina do que as suas personagens”131. É, no entanto, Anamaria Filizola, professora catedrática e investigadora, quem encerra a questão, afirmando que não é a primeira vez que tal sucede:

“A sócio-geografia nortenha, a temporalidade da história narrada, com mar- cas que a situam entre as décadas de 20 e 70 do século XX, alguns elemen- tos da diegese e, claro, o distanciamento temporal desta leitura, permitem que se identifiquem traços biográficos de Agustina muito bem entrelaçados na urdida da ficção. Em outros romances isso também se verifica, e os exem- plos clássicos são a Germa de A Sibila e a Maria de Os Incuráveis. Lembre- mos O Mosteiro, em que Belche teria a mesma idade de Agustina e se retira para a casa das tias para escrever uma biografia de D. Sebastião. Tal bio- grafismo não é – nunca o é – primordial para a leitura do texto, a não ser pelo facto de «o recuo» perante os acontecimentos (…) ser igualmente a tomada de consciência das experiências vividas, um balanço da própria vida no

tempo e no espaço e nas diversas esferas sociais.”132

A casa central d’O Mosteiro é denominada o viveiro. Esta é vista como um “espaço profundíssimo, no sentido bachelardiano do termo, nesse sentido em que o imaginário nele se concentra em absoluto desde a infância, e se concentra ao nível

131 CARVALHO, Ana Margarida de (2014). O denso despenhar de realidades iludidas. Colóquio Letras, Lisboa, n. 187. p. 79.

de símbolos cósmicos, arquétipos, imagens obsessivas e premonitoras”133, sendo constante a presença da água, sendo ela física ou não:

“(…) a grande sala meio escura com os reposteiros de fustão amarelo que pareciam cascatas de água inquinada; (…) a sala parecia ter lagos escuros e vários, onde se passasse um drama invisível, onde alguém podia assassinar

alguém sem que fosse reconhecido.”134

A casa estática, confrontada com a natureza mas, ao mesmo tempo, enrai- zada nesta, permite enquadrá-la nas categorias já descritas de casas, tanto a exis- tencial como a fenomenológica:

“Neste domingo de Outubro (…), no tépido agasalho dos caminhos bordeja- dos pelos lódãos carregados de uva preta e poeirenta, a casa das manas apresentava-se aparentemente parada no tempo, sem uma voz a varar as suas paredes dum azul pardacento. As janelas estavam fechadas e só a porta da cozinha parecia frequentável, com a vizinhança dos cães lobeiros, agachados como leões (…). Matilde limpou os sapatos na lâmina de ferro cravada na pedra, à entrada (…). A grande cozinha lajeada, reconduzida

133 MACHADO, Álvaro Manuel (1983). Agustina Bessa Luís: O Imaginário Total. Op.cit. pp. 149-150. 134 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 89.

de símbolos cósmicos, arquétipos, imagens obsessivas e premonitoras”133, sendo constante a presença da água, sendo ela física ou não:

“(…) a grande sala meio escura com os reposteiros de fustão amarelo que pareciam cascatas de água inquinada; (…) a sala parecia ter lagos escuros e vários, onde se passasse um drama invisível, onde alguém podia assassinar

alguém sem que fosse reconhecido.”134

A casa estática, confrontada com a natureza mas, ao mesmo tempo, enrai- zada nesta, permite enquadrá-la nas categorias já descritas de casas, tanto a exis- tencial como a fenomenológica:

“Neste domingo de Outubro (…), no tépido agasalho dos caminhos bordeja- dos pelos lódãos carregados de uva preta e poeirenta, a casa das manas apresentava-se aparentemente parada no tempo, sem uma voz a varar as suas paredes dum azul pardacento. As janelas estavam fechadas e só a porta da cozinha parecia frequentável, com a vizinhança dos cães lobeiros, agachados como leões (…). Matilde limpou os sapatos na lâmina de ferro cravada na pedra, à entrada (…). A grande cozinha lajeada, reconduzida

133 MACHADO, Álvaro Manuel (1983). Agustina Bessa Luís: O Imaginário Total. Op.cit. pp. 149-150. 134 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 89.

duma antiga estrebaria (tinha agora argolas nos muros onde se suspendiam as toalhas), estava vazia.”135

A opulência que se vivia no viveiro contrastava com a escassez que se sentia no país em altura de entre-guerras:

“A mesa estava posta, uma mesa para dezoito pessoas, mas que parecia insignificante no meio do salão enorme directamente aberto para o terreiro. Uma escada de dois braços ligava-a a esse adro branco onde, nas noites de Verão, se faziam as esfolhadas. No meio da ceia apareciam visitas, senta- vam-se e comiam sem mais formalidades. Dizia-se que os Teixeira não sa-

biam em quantas porções se podia dividir uma galinha.”136

Havia, no entanto, ritos que eram inseparáveis da essência da habitação e também a manutenção da sua memória, como o “cerimonial do encontro com os ne- gociantes de vinho e de cereal, que nunca eram recebidos dentro de casa, mas no pátio, à entrada da cozinha”137 que advinha “do tempo em que eles eram judeus ou mouros e não podiam, por lei, franquear o umbral duma casa cristã”138. Há uma su- cessão de camadas, peles habitadas, ao longo da casa, que funcionam não só pe- rante os estranhos, mas também perante os próprios habitantes:

135 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 12. 136 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 18. 137 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 31. 138 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit.

“Em casa, além da mãe que se apagava nos seus murmúrios intermináveis (…). Para Assunta, no seu grande quarto encerrado onde os tacões faziam um ruído repicado, o dia começava mais tarde (…). Se chovia, aquele gotejar nas janelas dava (…) um sentimento de conforto secular, como se tudo o que é desastre e tristeza decorresse lá fora e, ali, houvesse só a história da família (…)”139

Entretanto, a vivência habitacional alterou-se pois, “com a morte da mãe, que ocorreu em 1937, a casa tornou-se de repente imensa, como um orfanato abando- nado”140. Para atenuar esta perda, Josefina (amada de Belche) foi ocupar um lugar no viveiro; mesmo que por pouco tempo tenha sido, provocou em Belche sentimentos nostálgicos, atenuados pela já referida profundidade da habitação:

“Belche sorriu com alguma ternura àquela imagem antiga de Josefina ao pé da mesa no salão onde se comia nesse tempo e cujas tábuas rangiam de maneira lúgubre. Agora tomavam as refeições num aposento mais pequeno e que, apesar das portadas de vidro sobre o terreiro e o tanque, não tinha muita luz. Mesmo num dia de sol, a sala estava sempre mergulhada numa meia escuridão. Havia um abat-jour de seda vermelha sobre a mesa e que podia baixar ou subir por meio de um carreto. Os móveis estavam pintados

139 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. pp. 73-74. 140 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 76.

“Em casa, além da mãe que se apagava nos seus murmúrios intermináveis (…). Para Assunta, no seu grande quarto encerrado onde os tacões faziam um ruído repicado, o dia começava mais tarde (…). Se chovia, aquele gotejar nas janelas dava (…) um sentimento de conforto secular, como se tudo o que é desastre e tristeza decorresse lá fora e, ali, houvesse só a história da família (…)”139

Entretanto, a vivência habitacional alterou-se pois, “com a morte da mãe, que ocorreu em 1937, a casa tornou-se de repente imensa, como um orfanato abando- nado”140. Para atenuar esta perda, Josefina (amada de Belche) foi ocupar um lugar no viveiro; mesmo que por pouco tempo tenha sido, provocou em Belche sentimentos nostálgicos, atenuados pela já referida profundidade da habitação:

“Belche sorriu com alguma ternura àquela imagem antiga de Josefina ao pé da mesa no salão onde se comia nesse tempo e cujas tábuas rangiam de maneira lúgubre. Agora tomavam as refeições num aposento mais pequeno e que, apesar das portadas de vidro sobre o terreiro e o tanque, não tinha muita luz. Mesmo num dia de sol, a sala estava sempre mergulhada numa meia escuridão. Havia um abat-jour de seda vermelha sobre a mesa e que podia baixar ou subir por meio de um carreto. Os móveis estavam pintados

139 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. pp. 73-74. 140 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 76.

de preto e as paredes eram forradas de papel aveludado que fingia pano de

Génova lavrado.”141

A última estadia relatada de Belche no viveiro é a troca de quarto, mudando- se “para o quarto de tio Bento, o mais pobre de todos”142, pormenor importante pela simples descrição de ser esse espaço “«da primitiva», como dizia Aurora, referindo- se à casa dos Teixeira e à sua traça inicial. Casa pequena, com janelas quadradas e uma cozinha de terra calcada”143, o que acentua ainda mais esta questão de meta- morfoses, de peles habitadas.

Torna-se, no entanto, debatível ser o viveiro uma casa agustiniana. Apesar de ser a casa da avó paterna de Belche (consequentemente a de Agustina) não há um sentido de proximidade entre a personagem central e a casa de família:

“Se não fosse pelos seus amigos, criadores de galgos e filhos de fidalgos degenerados, ignorantes e de coração despreocupado, como já iam desapa- recendo da face da terra, Belchior não suportaria «a casa das manas» (…). Que as terras eram improdutivas e a casa um pardieiro sagrado em Covas do Douro.”144

141 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 183. 142 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 187. 143 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 188. 144 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 11.

Há ainda uma característica que o afasta deste conceito. Este lugar não pode ser de memória, não é nostálgico por si (é-o apenas quando associado a persona- gens) e não tem, até aqui, uma história associada que o transforme em tal. É aqui que surge o mosteiro e a sua relação com o viveiro. O primeiro parágrafo do romance, remetendo a 1935, revela não haver planos para uma reabilitação do edifício, con- centrando-se os esforços do abade Cândido na igreja romana. O mosteiro, “despido de brumas, ao sol da manhã de Outubro, guardava uma sentenciosa face sem glória, as janelas rebentadas e ramos de amieiro a ferir-lhe o velho reboco cinzento”145, tinha à sua volta uma quinta maltratada, trespassada pela população da freguesia para encurtar caminho, ficando à vista esse convento “com as suas varandas como prate- leiras a que faltassem o anteparo e os objectos aí contidos”146. Todas estas caracte- rísticas do mosteiro enquadram-se na época de bonança do viveiro, referida previa- mente, onde se notava a opulência em que vivia a família Teixeira.

A partir deste momento, Belche interessou-se pelo mosteiro e pela sua his- tória. Foi também devido a uma história familiar que tal sucedeu:

“Foi Matilde quem revelou a Belchior o possível parentesco com Frei Domin- gos Teixeira, eleito abade do mosteiro em 1578 (…). Essa data sinistra para o reino trouxe ao vale de S. Salvador a exortação propícia à sua prosperi- dade. Até aí, as rendas do convento beneditino eram devoradas pelos seus padroeiros (…). Mas, na alvorada do grande desastre de 1578, o vale respi- rou, liberto da expropriação dos usurpadores. A grande propriedade do mos- teiro, com os seus muros caiados de branco, recebeu novas benfeitorias (…).

145 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 10. 146 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. .

Há ainda uma característica que o afasta deste conceito. Este lugar não pode ser de memória, não é nostálgico por si (é-o apenas quando associado a persona- gens) e não tem, até aqui, uma história associada que o transforme em tal. É aqui que surge o mosteiro e a sua relação com o viveiro. O primeiro parágrafo do romance, remetendo a 1935, revela não haver planos para uma reabilitação do edifício, con- centrando-se os esforços do abade Cândido na igreja romana. O mosteiro, “despido de brumas, ao sol da manhã de Outubro, guardava uma sentenciosa face sem glória, as janelas rebentadas e ramos de amieiro a ferir-lhe o velho reboco cinzento”145, tinha à sua volta uma quinta maltratada, trespassada pela população da freguesia para encurtar caminho, ficando à vista esse convento “com as suas varandas como prate- leiras a que faltassem o anteparo e os objectos aí contidos”146. Todas estas caracte- rísticas do mosteiro enquadram-se na época de bonança do viveiro, referida previa- mente, onde se notava a opulência em que vivia a família Teixeira.

A partir deste momento, Belche interessou-se pelo mosteiro e pela sua his- tória. Foi também devido a uma história familiar que tal sucedeu:

“Foi Matilde quem revelou a Belchior o possível parentesco com Frei Domin- gos Teixeira, eleito abade do mosteiro em 1578 (…). Essa data sinistra para o reino trouxe ao vale de S. Salvador a exortação propícia à sua prosperi- dade. Até aí, as rendas do convento beneditino eram devoradas pelos seus padroeiros (…). Mas, na alvorada do grande desastre de 1578, o vale respi- rou, liberto da expropriação dos usurpadores. A grande propriedade do mos- teiro, com os seus muros caiados de branco, recebeu novas benfeitorias (…).

145 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 10. 146 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. .

Figuras 22-26.

Aquilo que foi para a nação uma catástrofe tão vasta que a tomariam por inaceitável, para o mosteiro e as terras foi uma libertação. O vale (…) adquiriu uma identidade muito própria. No mosteiro estabeleceu-se uma escola de

humanidades, e ensinavam lá mestres de Vila do Conde e de Coimbra.”147

O que se destaca aqui é a polaridade mosteiro – país; mais tarde, apareceu a polaridade mosteiro – família Teixeira:

“A lavoura, com os aforamentos feitos ao mosteiro e depois remidos, deu origem às casas agrícolas, como a dos Teixeira que eram, até aí, pequenos negociantes, alfaiates e penhoristas envergonhados. Nem pajens nem gente de armas, os Teixeira, depois de libertarem as terras, não exactamente cam- pesinos, mantiveram a curiosidade pela política, o gosto da intriga e da novi-

dade, assim como o respeito pela fortuna.”148

O mosteiro articula por isso a história familiar com uma história local mais alargada, tornando-se espaço de memória, uma casa, um sítio habitável, tanto pela memória como pelo simples habitar humano. Noémia, uma das mulheres do viveiro, é a primeira personagem a identificar essa qualidade:

147 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. pp. 32-33. 148 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 33.

“(…) dirigia-se ao mosteiro, sua guarida em tempo de perturbação. Já quando era criança e em casa sofria um desgosto (…), ela ia refugiar-se no mosteiro, que nesse tempo tinha um coro até metade da nave (…). Tudo estava arrui- nado (…). Mas os altares tinham sido desmontados para se observar a traça primitiva (…). Ela encostou-se a um dos pilares e ficou sobre a sua cabeça a gárgula rampante dum grifo, a cauda em dardo e as unhas curvas. Dantes, tudo isso estava coberto de cal e não se viam as figuras medonhas (…). E sentiu que a casa onde brincara e crescera, com seus jardins e moitas, se

perdia numa distância para sempre irrecuperável.”149

Apesar da súbita compreensão da irrecuperabilidade do mosteiro como No- émia o vivenciara, compreende-se uma certa revalorização do local, havendo sido feitos trabalhos para melhor entender o que fora o mosteiro – mesmo antes da família Teixeira.

Por alturas da visita de Noémia ao mosteiro pode-se verificar que o viveiro continuava produtivo, já que a “indústria dos bordados, que até aí fora um devaneio que Noémia considerava sua invenção e lhe dava pretexto para sair e correr o vale (…), desenvolveu-se mais”150, confirmando o que acontecia até então.

Será, entretanto, pouca ou insuficiente informação que possa retratar o mos- teiro como um local de habitação. Porém, nove anos antes da publicação d’O Mos-

teiro, era publicado um livro de contos, A Brusca, que inclui o conto Casa Morta e Pia Baptismal. Esta história relata um funeral a decorrer no mosteiro de Travanca: o da

149 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. pp. 69-70. 150 BESSA-LUÍS, Agustina (1980). O Mosteiro. Op-cit. p. 73.

“(…) dirigia-se ao mosteiro, sua guarida em tempo de perturbação. Já quando era criança e em casa sofria um desgosto (…), ela ia refugiar-se no mosteiro, que nesse tempo tinha um coro até metade da nave (…). Tudo estava arrui- nado (…). Mas os altares tinham sido desmontados para se observar a traça

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