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I. O NEGRISMO

1.3 Manifestações do negrismo na poesia caribenha

1.3.2 Luiz Palés Matos

Luiz Palés Matos nasceu em 20 de março de 1898, em Guayama e passou sua vida entre sua cidade natal e San Juan, capital de Porto Rico. Foi autodidata e detentor de uma cultura generalizada. A difícil situação econômica o obrigou a deixar a escola e procurar trabalho. Isso fez com que o poeta atuasse em diversas profissões: assistente de advogado, professor e funcionário público rural. Como jornalista, colaborou em diversas publicações literárias e comerciais. Começou a escrever na adolescência e, aos dezesseis anos, publicou

Azaléas (1915), sua primeira coleção de poemas. Seu livro mais conhecido é Tun tun de pasa y grifería (1937), com o qual ganhou o primeiro prêmio do

Instituto de Literatura de Porto Rico.

A obra de Luís Palés Matos é conhecida internacionalmente por causa de seu recorte negrista. O tema negro em sua produção literária aponta para um percurso criativo de influências diversas, que vão desde o modernismo europeu até as vanguardas latino-americanas, aqui marcadas pelo uso exacerbado de onomatopeias e jitanjáforas, termo empregado no castelhano caribenho para designar letras absurdas e sem sentido. O poema “Pueblo negro”, escrito em 1925 e incluído na coleção Tuntún de pasa y grifería, representa a mais potente produção de sua primeira etapa negrista. Se, por um lado, o poema é conservador em termos formais, por outro, pode ser entendido como uma espécie de quadro evocador no qual o negro se essencializa e se plasma de uma maneira estática e somente enquanto objeto literário.

Como bem aponta Mônica Mansour72, o autor se situou dentro e fora da produção negrista. Flerta com o irreal, o fantasioso, atingindo lampejos surrealistas. A poesia se converte em muitos aspectos da vida do poeta, a qual ele representa de maneira intuitiva e ilógica. Para Mansour, uma das leituras que

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mais chamou a atenção de Matos foi a Decadência do ocidente, de Spengler. Não por acaso, a sua poesia exprime, em alguns momentos, que a arte ocidental está sofrendo um instante de decadência e esgotamento a partir da abertura do século XX. Talvez por isso o poeta tenha se interessado pelos estudos referentes ao inconsciente coletivo de Jung e pela busca pelo instintivo e pelo primitivo. Desta forma, seus interesses se centram grandemente na exploração das culturas negras, sejam elas africanas ou antilhanas, justamente porque, segundo o escritor, nelas seria possível encontrar a manifestação humana mais próxima de seu estado primeiro, mais puro.

Palés Matos escapa da vida cotidiana de Porto Rico a partir de suas incursões pelo imaginário. No entanto, toda a sua poesia reflete a paisagem e o ambiente de seu país e, mesmo que de uma maneira pouco clara, reflete também Guayama, vilarejo onde o poeta nasceu e que era tão diferente do restante da ilha à época, justamente por conservar vestígios e patrimônios da tradição negra. Não sem razão, pode-se perceber, desde Azaléas, a desilusão ante a modernidade e a busca de outras possibilidades de vida através do sonho. Neste livro, a imaginação é alimentada por meio de diversas leituras e relações intertextuais com poetas de seu tempo e de obras e estudos críticos sobre países longínquos, os quais, uma vez assimilados, se convertiam em uma realidade literária para o poeta. Assim, surgem os poemas que representam aquilo que se considerava “bárbaro” e/ou “primitivo”, cuja fonte era a África. Nestes textos, há um confronto entre a civilização ocidental e a África em estado de natureza.

Talvez seja esta a razão pela qual o autor veja o negro a partir de um ponto de vista branco, exterior e intelectualizado. Ao menos os poemas negros de Palés Matos buscam em Guayama elementos para congregar a sua visão de desilusão e desesperança frente à realidade. O escritor não trata apenas do negro antilhano. Aliás, trata da África como paraíso perdido e o negro de lá como “bom selvagem”, bem ao gosto de Rousseau. A África é o refúgio imaculado pelas atrozes forças da assimilação colonial. Talvez o autor não estivesse percebendo que sua postura também opera na lógica da assimilação, a qual

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propõe a mestiçagem como diapasão ideológico. Eis as palavras do escritor, proferidas em El mundo, jornal editado em San Juan, em 13 de novembro de 1932:

la vida espiritual de nuestras islas, por su comunidad de origen, puede sintonizarse en un acento, en un modo, en un ritmo peculiar y homogêneo. [...] Este acento, traducido a términos de cultura, no es ni puede ser ya español ni africano. Porque si la cultura, en última instancia, há de tener un valor substancial y no meramente externo, habrá de ser un constante fluir, un perene producir-se del ser o de la raza, en armonía con el paisaje que nos rodea73.

Uma das características mais recorrentes dos movimentos de vanguarda latino-americanos foi exatamente a busca incessante pelo novo e pelo exótico. Neste sentido, a literatura passou a aceitar jogos de linguagem e experimentações em versificação livre, assim como uma maior abertura à incorporação de vocábulos de origem popular. Em “Pueblo negro”, nota-seum tom carinhoso, visto em sonho pelo eu-lírico, o que já o diferencia de muitos de seus contemporâneos, os quais viam os de pele escura com ressalvas. “Esta noche me obsede la remota/ visión de un pueblo negro.../ -Mussumba, Tombuctú, Farafangana-/ es pueblo de sueño.”74

A combinação de versos heptassílabos com os hendecassílabos se apresenta durante as sete estrofes que conformam o poema “Pueblo negro”. Também se faz presente a rima assonante nos versos pares. Curiosamente, a expressão do tema negro por meio de um formato clássico é marca da primeira fase negrista de Palés Matos, conforme já havia ocorrido em “Danzarina africana”, escrito entre 1917 e 1918. No caso deste escritor, esta preferência não significa uma ruptura, mas uma transição entre um início marcado pela herança modernista para uma produção madura e pessoal.

73 PALÉS MATOS, Luís, citado por BLANCO, Tomás. Sobre Palés Matos. Ciudad de México: Ediciones Orion, 1950. p. 35-36. “A vida espiritual de nossas ilhas, por sua comunidade de origem, pode sintonizar-se em um sotaque, em um modo, em um ritmo peculiar e homogêneo. [...] Este sotaque, traduzido em termos de cultura, não é nem pode ser já nem espanhol nem africano. Porque se a cultura, em última instância, há de ter um valor substancial e não meramente externo, haverá de ser um constante fluir, um perene produzir-se do ser e da raça, em harmonia com a paisagem que nos rodeia.” (Tradução minha)

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A estrutura do poema está marcada pela relação dialógica entre a voz poética e o tema do texto. Nos dois primeiros versos, o eu-lírico expressa sua obsessão pelo povo negro: “Esta noche me obsede la remota/ visión de un pueblo negro...”. Em seguida, inclui na construção poética três nomes de espaços africanos imaginários (Mussumba, Tombuctú, Farafangana), os quais podem ser entendidos, segundo o poeta, como cenários da remota visão. De todo modo, a inverossimilhança perpassa todo o texto. Portanto, pode-se pensar que o povo negro em questão passa a ser parte da recordação ou do pensamento do poeta.

Contudo é a estrofe final que recupera de maneira direta a relação emotiva entre o eu-poético e sua visão. O canto ao sujeito negro vai se convertendo a simples rumor. À medida que se dissolve sua voz, toda a imagem poética vai se dissipando, como quem desperta de um sonho ou se distancia de uma lembrança: “Al rumor de su canto/ todo se va extinguiendo,/ y sólo queda en mi alma/ la ú profunda del diptongo fiero”75.

A conformação estrutural do poema, somada a seu aspecto formal, analisado anteriormente, demonstra que, no negrismo de Palés Matos, o elemento africano está ligado à representação subjetiva do poeta. O poema resume boa parte dos procedimentos composicionais que nutrem os vetores do negrismo do escritor. Trata-se de jogos linguísticos que deságuam na representação de sons diversos (bilabialismos, onomatopeias, guturações) e na utilização de ritmos, cantos, dança, plástica, sensualidade, entre outros. O autor colore, com as mais fortes tonalidades, o antilhano e o imerge em roupagens africanas. O negro de Palés Matos, ressaltemos, é um sujeito “teórico”, abstrato, idealizado. Ainda em “Pueblo negro”, predomina a representação estereotipada do negro e a descrição do povo acaba criando uma atmosfera “primitiva” e ideal. Sem dúvida, Palés Matos foi um dos pioneiros a trazer para a literatura uma expressividade musical colhida de África. As marcações rítmicas de seus textos sempre seguem os ritmos de agogôs. O compromisso atestado no ritmo é

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esvaziado de sentido político justamente porque o exotismo preside boa parte de seus poemas, como é o caso de “Danza negra”:

Calabó y bambu Bambú y calabó

El Gran Cocoroco dice: tu-cu-tú La Gran Cocoroca dice: to-co-tó

Es el sol de hierro que arde em Tombuctú76.

Não se desconsidera, porém, que este artifício de implantar na língua de Castela elementos africanos seja uma tentativa de solapar o enrijecimento das possibilidades poéticas e, ao mesmo tempo, um apontamento para novos rumos para o Caribe, entendido aqui como uma confluência de culturas, de temporalidades, de histórias.

Pasam tierras rojas, islas de betún: Haití, Martinica, Congo, Camerún; las papiamentosas antillas del ron y las patualescas islas del volcán, que el grave son

del canto se dan77.

Não seria exagero dizer que os versos do escritor, mesmo enunciados de uma condição externa à afrodescendência, são simpáticos ao universo negro. Há vocábulos retirados de África, ou dela imitados, o que ajuda a configurar este ponto de vista. Leia-se, por exemplo, “Lamento”:

Sombra blanca en el baquiné tiene changó, tiene vodú. Cuando pasa por el bembé

Daña el quimbombó, daña el calalú. Al jueguito va su zombí

Derribando el senseribó, Y no puede el carabalí

Ñañiguear ante Ecué y Changó... ¡Oh papá Abasí!

¡Oh papá Bocó! [...]

76 MATOS, Luís Palés, apud SCHWARTZ, 1995, p. 581. 77 Ibidem.

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Hombre negro triste se ve

Desde Habana hasta Zimbambué, Desde Angola hasta Kanembú Hombre negro triste se ve... Ya no baila su tu-cu-tu78.

A aglutinação do castelhano com vocábulos afrodescendentes colhidos pelo artista aqui e ali, ou inventados, cria uma atmosfera desconexa, que dificulta a compreensão do texto em sua totalidade. Contudo, cada um destes vocábulos, dada a ressonância de sua peculiar estruturação fonética e sua evocação imaginativa, mantém um positivo valor estético. O último verso, por exemplo, evoca o som dos tambores e caixas utilizados nos Reinados de Nossa Senhora do Rosário. Estes instrumentos simbolizam palavras que chamam, respondem, falam e cantam a fé e a história dos filhos do Rosário. Ou, como pontua Edimilson de Almeida Pereira, são “a extensão dos devotos”79.

O sentimento de confraternização, apregoado por Palés Matos, será elemento motriz de boa parte da poesia negrista latino-americana. Logo, é possível estabelecer uma linhagem de poetas que se assemelham no trato da cultura afrodescendente, começando por Matos, passando por Guillén e chegando a Raul Bopp, Jorge de Lima e Mário de Andrade.

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