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3 As ordens discursivas em disputa no SPA

4. Visualizando o processo de mudança no SPA através dos artistas gestores

4.3 A luta articulatória do ajustamento

Após observar todo esse processo de mudança que caminha para a normatização do

SPA, ou seja, sua inserção dentro da estrutura da prefeitura e seu, consequente,

ajustamento a ela, é importante observar como se dá, atualmente, a relação do coordenador do evento com os artistas. Para tanto, foram gravadas as reuniões abertas, momento existente desde o primeiro SPA em que os artistas são convidados a opinar e discutir os formatos do evento antes da realização do mesmo.

Foram selecionados alguns momentos em que ocorreram conflitos entre as propostas dos artistas e o coordenador (que funciona como uma espécie de mediador entre eles e a dimensão institucional). Esses momentos de crise são representativos da luta articulatória que se produz agora dentro do SPA: o que os artistas reivindicam, que mudanças sugerem e que repercussões suas propostas têm dentro da estrutura do evento. Ou seja, essa luta articulatória que acontece nas reuniões abertas promove mudanças no SPA? Que dimensão sai vencedora nesses embates, a dos artistas ou a da prefeitura? Qual é o tipo de relação social que se estabelece entre os artistas e o artista-gestor representada nessas reuniões?

Analiticamente falando, nesse momento iremos nos focar em questões como o controle interacional na análise dessas reuniões. Observar este ponto aqui é importante no sentido de que ele pode explicar a realização e a negociação concretas das relações sociais na prática social. O controle interacional deixa entrever, na conversação, até que

136 ponto o controle é exercido de maneira colaborativa pelos participantes, e onde pode haver assimetria quanto ao seu grau. Sendo assim, tem-se que as convenções de controle interacional de um gênero corporificam exigências específicas sobre as relações sociais e de poder entre os participantes.

A observação do controle interacional pode ser feita percebendo-se elementos como a distribuição de turnos, a seleção e mudança de tópicos, a abertura e o fechamento das interações e o controle da agenda. A partir desses elementos, iremos realizar a análise dos trechos retirados das reuniões, começando pela segunda reunião, realizada em 07 de junho de 2010. Este encontro foi selecionado por ter sido, em primeiro lugar, o que contou com uma maior participação dos artistas. Em segundo lugar, neste momento foi realizada uma importante sugestão de mudança para o evento, que dizia respeito à sua estrutura mais fixa: o edital. Vejamos o trecho 37, momento da reunião onde a questão de uma nova forma de seleção pro SPA é proposta e como ela é recebida na reunião (os três pontos significam pausa, entre chaves interrupções, letras em caixa alta elevação do tom da voz).

Esse trecho apresenta várias pistas importantes sobre a questão das lutas articulatórias no SPA. Em primeiro lugar, em relação à tomada de turno, Márcio Almeida vem falando, discutindo a respeito do que ele crê serem elementos indicativos da crise do

SPA, quando a artista C.D. toma o turno e rebate sua questão. Importante perceber que ela

toca, diretamente, na questão da estrutura do SPA e do edital. Reivindica uma revisão da estrutura, a inserção de novas formas de seleção no SPA, uma mudança dentro do evento que mexe com as estruturas já fixadas na dimensão institucional. Durante alguns minutos ela fala, sem interrupções, sobre o projeto Terra Una, apresentando uma possível forma de modificar o processo de seleção no SPA. Porém, ao final da sua fala, ela retoma a questão dos recursos, que vinha sendo discutida desde o início da reunião, o que desvia a atenção posterior dos participantes de sua proposta.

Ao responder à C.D., Almeida apresenta aspectos de polidez, inciando sua fala com “eu concordo com você”, o que indica empatia com o falante anterior. Porém, ele hesita, a princípio, referindo-se, mais uma vez, ao problema relatado desde o início da reunião em relação aos recursos. Essa questão estará presente em todo o momento na fala de Almeida, tanto porque os participantes requisitam informações a esse respeito, quanto porque ele tenta apresentar ao público as dificuldades institucionais que enfrenta, tendo

137 os recursos para o evento sido drasticamente diminuídos, o que o obrigou a inscrevê-lo em outros editais para aumentar a verba. Essa estratégia de inserir o SPA em outros editais para ampliar a verba disponível para o evento, acaba tornando as ações de Márcio Almeida ainda mais restringidas, visto que os editais exigem o cumprimento de regras e do projeto como foi devidamente inscrito.

Dessa forma, a indicação de mudança sugerida, em um primeiro momento, é recebida com receio pelo artista-gestor, visto que, no momento, ele ainda não tem assegurado os recursos que terá para o evento. Sua fala hesitante: “EU concordo com você, agora eu esbarro um pouco ta... nessa questão dos recursos não é... eu não sei quanto é que dá (...)” dá a indicação desse receio. Durante o turno posterior, Márcio Almeida irá deixar clara a sua situação: ele depende de resultados de editais outros para saber quanto de verba terá. Essa preocupação parece deixá-lo apreensivo e pouco receptivo a propostas de mudanças tão profundas, como a sugerida por C.D..

A reunião segue o curso, quando, novamente, há um momento de conflito. Dessa vez, iniciado pela questão da quantidade de bolsas definidas para ações artísticas urbanas. A partir dessa questão, ressurge novamente a proposta de C.D. na pauta da discussão, como podemos observar no trecho 37.

Aqui, fica clara que a negociação da agenda da reunião, ou seja, dos temas tratados, da linha a ser seguida, é colaborativa. Apesar de tomar sempre maior parte dos turnos, Márcio Almeida não impõe os tópicos a serem discutidos, eles sempre partem dos artistas participantes. Isso pode ser percebido também, notando-se que, com frequência, os participantes escolhem a eles mesmos pra falar, tendo autonomia nas tomadas de turno. Nesse trecho, vê-se que o artista R.V. tenta retomar a discussão para o tópico que ele acredita ter ficado interrompido, mas Márcio Almeida continua sua fala anterior. A artista B.M. o interrompe, retirando o turno do Márcio Almeidae o devolvendo a F.A., que esperava sua vez para falar, mas R. se sobrepõe e começa a discutir outro tópico, referente à quantidade de bolsas para ações de intervenção urbana.

A participante sugere uma modificação na proposta, reivindicando mais bolsas para intervenção do que o estabelecido. Márcio Almeida, ao responder, mais uma vez retorna à questão do edital: ao inscrever o SPA em um outro edital, a fim de adquirir mais verba, ele precisou estabelecer mais um formato pro evento e determinar o número de bolsas para intervenção artística. A questão é discutida, uma das participantes informa que o

138 edital é passível de negociação de mudanças, recebendo de Márcio Almeida uma resposta positiva mas hesitante: “veja só uma coisa, há possibilidade dessa negociação, pode... o que eu não posso falar aqui é que isso vai acontecer (...)”. De repente, R.V. interrompe a discussão, formulando o tópico como não apropriado para o momento e B.M. interfere, devolvendo o tema levantado por C.D. para o debate. Ou seja, os participantes implicitamente estabeleceram uma agenda para a reunião e a estão policiando, evitando os desvios da mesma. O retorno do turno à C.D., dado pelos participantes, sugere que eles estabeleceram como agenda para a discussão a questão da mudança na estrutura do

SPA.

O artista R.V. é um dos que, nesse trecho, toma o papel de policiador da agenda. Em mais de um momento, ele interrompe a discussão para trazê-la de volta para os tópicos que ele crê serem mais importantes. Ele o faz, formulando as questões que estavam sendo feitas anteriormente, sugerindo que elas já haviam sido debatidas e tentando levar a discussão para outros pontos. Na segunda interrupção, ele conta com o apoio explícito de outros participantes, como B.M., que retoma a questão levantada por C.D. e devolve o turno da fala para ela. Logo, em vários pontos da reunião, esse tema será sempre retomado, tornando-se, de uma certa forma, a questão central do encontro. Em outro momento, quase ao final da reunião, o próprio artista-gestor aceita o tema de mudança proposto e sugere o consenso dos participantes, como visto no trecho 38.

Márcio Almeida, em certo ponto quase ao fim da reunião, tenta sistematizar as sugestões colocadas pelos participantes, exigindo deles uma formulação do que pretendem modificar. Ele pede aos participantes um consenso em torno do que sugeriram. Essa atitude, demonstra uma abertura dele para as modificações sugeridas: ele já pensa em como inserir essas questões na dimensão estrutural e em como fazer para instituí-las. A requisição de Almeida pelo consenso dos participantes funciona como um meio de encerrar este tópico e partir para a discussão de outros. Nesse momento, ele tenta retomar o controle da interação, redistribuindo a ordem de discussão dos tópicos e tentando negociar consensos em torno dos pontos discutidos. Após fechar o tópico do edital, ele tenta conseguir que os participantes cheguem a um acordo agora em relação às palestras no SPA. Ele coloca outro ponto para ser discutido na reunião, ainda tentando manter o controle – tentando levar a reunião à uma resolução. Mas essa tentativa de controle dos tópicos é provisória, visto que os participantes, em seguida, começam a impor, eles

139 mesmos, novos tópicos a serem discutidos.

Percebe-se, por sua atitude geralmente mediadora na reunião, que o artista-gestor se coloca na posição de intermediário entre os artistas e a dimensão estrutural, pedindo maiores informações sobre as sugestões de mudança para levar à instituição. Ele precisa entender o que os artistas sugerem para pensar que tipo de recursos institucionais irá mobilizar para realizar as mudanças sugeridas. Os artistas pedem por uma mudança no esquema de seleção do SPA, querem que este seja mais colaborativo, ou seja, que conte novamente com a participação mais efetiva deles. Ou seja, reivindicam ao SPA um retorno maior da participação artística no evento, não só mandando projetos para editais. Claro que os pontos discutidos não ficaram apenas em torno da mudança do edital do

SPA. Várias outras questões como o número de bolsas para intervenção urbana, a questão

das oficinas e das palestras foram bastante discutidas, algumas das sugestões tendo sido incorporadas. Mas o ponto principal, que exigia uma modificação mais ampla da estrutura do evento, foi o que tocava na questão do edital. Essa era uma demanda que exigia uma reestruturação do evento, uma movimentação em direção a uma mudança desta estrutura que, no momento, parece cristalizada na prefeitura.

Márcio Almeida, então, termina a segunda reunião sinalizando positivamente no sentido da mudança. Mas, na terceira reunião, as amarras estruturais em que encontra-se inserido parecem desanimá-lo a tentar a modificação sugerida pelos artistas, como pode se observar no trecho 39.

Almeida começa a reunião apresentando polidez em relação à ideia dos artistas. A formula positivamente e, em seguida, nomeia C.D. para assumir o turno e responder uma questão colocada em torno da ideia sugerida por ela. Mas, rapidamente, ele retoma o turno, mudando o tópico da discussão. Inicia afirmando positivamente a ideia como sendo boa, a única forma de inserir uma mudança dentro do SPA, para, em seguida afirmar que, mesmo assim, as dificuldades institucionais em que se encontra inserido podem não tornar possível realizá-la.

Sendo assim, o artista-gestor muda o tópico da discussão, levando-a para um debate sobre as dificuldades institucionais encontradas por ele dentro da atual gestão e as modificações realizadas, por esta, dentro da estrutura municipal. A adaptação às novas regras criadas na prefeitura parece ser uma das grandes preocupações dele, tomando-lhe a maior parte do tempo e do foco. A necessidade de entender as mudanças na estrutura, de

140 saber lidar com esses novos processos burocráticos parece ser, neste momento para o Almeida, mais importante e urgente do que pensar em novas estratégias para movimentar o SPA. Quase toda reunião será pautada por este tópico, o da dificuldade institucional sentida pelo coordenador diante das modificações da PCR.

Após vários minutos de explicação institucional, surge um dos grandes momentos de conflito na reunião. Os artistas pressionam uma atitude de Almeida em relação à proposta dada anteriormente. Seu posicionamento torna a ser defensivo, ainda refletindo os receios de gerar modificações numa estrutura que passa por mudanças institucionais ainda não dominadas por ele. Isso pode ser observado no trecho 40 do anexo.

Nesse momento, Márcio Almeida apresenta a estrutura com que ele conta para poder realizar a modificação pedida pelos artistas, quando uma das participantes, toma o turno, nomeada anteriormente por ele. Ela, então, apresenta de maneira mais técnica do que se trata a plataforma que os artistas sugeriram como alternativa para o SPA. O Márcio Almeida retoma o turno, admitindo um certo desconhecimento sobre o assunto, quando é interrompido por C.D., que se auto-nomeia para falar. A fala dela inicia com uma certa expressão de irritação “ Ai gente, olhe, não sei não. Eu acho que (…), eu acho um (…), não sei”, seguida de uma afirmação de desacordo em relação à fala do Márcio Almeidae, em geral, à agenda da reunião estipulada desde o início (as dificuldades institucionais). C.D. cobra de Márcio Almeida uma atitude mediadora, questionando o fato dele não ter consultado a instituição sobre a possibilidade de realizar a mudança sugerida por eles. As questões de gestão, colocadas pelo artista-gestor, são, para ela, internas, não devendo ser debatidas naquele momento, reservado para a discussão com a classe artística.

Márcio Almeida, por sua vez, responde demonstrando polidez e empatia com ela: “eu concordo muito com você” e tenta justificar sua ação, seu receio de não consultar a instituição antes de ter certeza do que se tratavam aquelas mudanças; que funcionários e que tempo teria disponível para fazer, toda uma série de preocupações institucionais que o deixaram mais limitado em sua ação. C.D., por sua vez, rebate dizendo que, se Márcio Almeida não insere a mudança na instituição, jamais saberá se ela poderia acontecer ou não. A sensação de impotência ao fim da sua fala demonstra como ela, na posição de artista, sente-se impedida de agir, visto que o mediador diante dela, no caso Almeida, não consegue levar à instituição as mudanças propostas. Os artistas propuseram a mudança, mas ela não pode ser aceita ou realizada, visto que o mediador está envolvido e

141 mergulhado em questões institucionais mais amplas, que o impedem de tentar inserir modificações no interior da estrutura do SPA.

Dificuldades como falta de pessoal para trabalhar, desentendimentos em relação à nova estrutura burocrática instaurada e limitações financeiras fazem com que Márcio Almeida fale mais como gestor do que como artista nessa reunião, colocando-se, quase sempre, em uma posição defensiva diante dos artistas. Na medida em que ele foi inserido na estrutura municipal como gestor, dentro de um cargo que possui atribuições e tarefas bem-definidas, sua atitude, cada vez mais, é a de prestar contas do que está sendo realizado e listar dificuldades institucionais. Toda e qualquer ação proposta para o SPA é logo trazida por Almeida para esta realidade institucional em que está inserido, sendo pensada e considerada a partir desta dimensão.

Por isso, não é errado dizer que, ao final dessa luta discursiva – representada aqui na reunião do SPA – a dimensão que sai vencedora é a da instituição, que tende à reprodução ao invés da mudança. Ela se impõe, tornando as reivindicações dos artistas questões de difícil operacionalização e incorporação. O artista-gestor, no momento, aparenta uma atitude temerosa diante do fato de inserir a mudança nessa estrutura onde o SPA está conformado.