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Luto de D Catarina

No documento D. Sebastião (páginas 67-70)

No caso de D. Catarina, o luto teve a sua origem no conjunto de traumatismos que sofreu enquanto criana, atØ aos 1 8 anos, enquanto viveu encarcerada com a mªe, tendo-se perpetuado com as p erdas constantes que sofreu a morte do marido e a morte dos seus nove filhos.

Esta dor hemorrÆgica que teria, e que parecia nªo ser possvel escorar, seria uma forma de morrer aos bocadinhos. Isto Ø, cada abandono que sofria ia deixando uma ferida cada vez maior dentro dela e que, a certa altura, as feridas seriam de tal forma que parecia que a impediam de se descentrar do seu sofrimento e ter em consideraªo a alteridade.

Para uma pessoa que se confronta quase que permanentemente com a perda de alguØm prximo (mªe, filhos, marido, etc.), seri a de esperar que se agarrasse œnica pessoa que ficou por perto o neto. Mas nªo Ø isto que acontece. HÆ uma dificuldade ou impossibilidade por parte de D. Catarina para se relacionar com D. Sebastiªo.

Quando ficou sem o marido, D. Catarina ficou mais s do que nunca. Podia apenas contar com D. Sebastiªo, como o familiar pr ximo. Em princpio, alguØm que estÆ tªo s e necessitada de afecto deveria investi r no neto, como investiria no prprio filho. Mas ela Ø incapaz de se relacionar afectivamente com ele.

Para D. Catarina, D. Sebastiªo aparece como um obje cto narcsico, em que investe s o necessÆrio para que se sinta valorizada. Ou seja, nªo o vŒ como um ser parte e com necessidades prprias, mas como agente que permite a sua prpria gratificaªo. Esta dificuldade em compreender o out ro e as suas necessidades traduz- se, segundo SÆ (2003), na falha bÆsica sempre presente na vida de D. Sebastiªo. A palavra falha foi utilizada por Balint (1993) par a descrever uma lacuna (que nªo Ø uma pulsªo nem um conflito), uma falha, na mente, q ue necessita ser reparada. algo que o sujeito sente que falta na sua vida e que provavelmente sempre faltou. Esta Ø uma falha bÆsica porque Ø algo que estÆ inerente complexidade do indivduo, que se prolonga a toda a estrutura psicobiolgica do su jeito.

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Na origem desta falha bÆsica, podem estar factores como grandes necessidades biopsicolgicas da criana (causa cong Ønita); carŒncias no cuidar, ou num cuidar deficiente, aleatrio, minado por angœst ias, superprotector, severo e rgido (causas ambientais) (Balint,1993). Este cuidador serÆ incapaz de investir de afectos o sujeito, o que implica que, posteriormente, o sujeito terÆ a necessidade de encontrar o que faltou nessa relaªo (no caso de D. Sebastiªo, com a mªe e os avs). No entanto, sem ser investido como objecto (amor objectal) nªo Ø capaz de investir nos outros. Consequentemente, fecha-se sobre si prprio e torna -se o seu prprio objecto de amor ao que se chama narcisismo.

No fundo, ao abandonÆ-lo, e ao trocÆ-lo por Filipe, inquinou o crescimento de D. Sebastiªo com uma falha bÆsica que ele tentou livrar-se atravØs de feitos grandiosos.

IX.Um crescimento coagido por D. Catarina e por D. Henrique

A forma como os pais se relacionam enquanto casal determina a forma como estes se relacionam com a criana (SÆ, 2009). No caso de D. Sebastiªo, as figuras que, na sua vida, mais se assemelhavam a uma figura materna e a uma figura paterna seriam D. Catarina e D. Henrique, respectivamente. Todavia, essa seria uma triangulaªo impossvel, entre duas personagens que pareciam querer influenciar e manobrar mais do que educar, sem que se vislumbrassem em ambos objectivos que convergissem de forma benigna para o jovem rei. Essa pseudo-triangulaªo desorganizadora, tŒ-lo-Æ colocado, quiÆ, no meio de um conflito de lealdades, impedindo-o de se identificar a um ou a outro. Consequentemente, nªo seria possvel a criaªo de uma identidade prpria e de um sentime nto de integridade.

De facto, neste caso estaramos perante aquilo a qu e Erikson (1968, cit por SÆ, 2007) chama identidade difusa. Ou seja, nªo hÆ uma integraªo das diferentes caractersticas do self, que se encontram separadas em ilhas. A apreensªo que o sujeito faz de si mesmo nªo Ø integrada, logo Ø incompleta. Estes nœcleos que nªo interagem resultam da limitaªo pobre dos contornos do eu que, para impedirem a descompensaªo psictica, se tornam mais enevoados. Esta identidade difusa, que se organiza a partir de arquipØlagos psquicos, leva a um relacionamento que varia entre angœstias gora e claustrofbicas.

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Para alØm do mais, aqui parecem observar-se duas relaıes duais mais do que uma relaªo triangular: D. Catarina e D. Sebast iªo; D. Henrique e D. Sebastiªo; e D. Catarina e D. Henrique.D Sebastiªo servia como possibilidade de D. Catarin a e de D. Henrique projectarem massivamente todas as experiŒncias de sofrimento, que nªo foram capazes de integrar. D. Sebastiªo ter-se-Æ sentido desorientado e perdido, uma vez que estas representaıes contraditrias levanta m conflitos no psiquismo do mesmo, impedindo-o de se posicionar perante o conflito, ao mesmo tempo que favorece a depressividade.

Para se defender, e impossibilitado de se identificar com qualquer um dos dois, recorre a uma relaªo simbitica. Na ausŒncia de identificaªo recorre-se simbiose. A este tipo de relaªo chamou Green (1990 ) de psicose fria, isto Ø, uma relaªo que, nos seus aspectos relacionais, teria o s ndices de desorganizaªo duma psicose, sem que, todavia, no registo dos sintomas que a caracterizam, ela nªo fosse assim. Ironicamente, o luto patolgico de terªo pad ecido D. Joana e D. Catarina terÆ inquinado o crescimento de D. Sebastiªo. S assim s e perceberÆ a perda precoce dos seus pais, sem reparaªo palpÆvel nos seus substitu tos, D. Catarina e D. Henrique. No caso da mªe, a perda assumirÆ contornos mais cruØis, na medida em que depois de ter abandonado o filho em Portugal se dedicou educaª o do seu sobrinho, o infante Carlos.

O narcisismo implica o amor do sujeito por si mesmo, contrariando a ideia de amor objectal. As relaıes com os outros parte do i nvestimento que Ø feito no bebØ. De facto, para que ele se possa amar a si mesmo, serÆ necessÆrio que seja amado primeiro. S este processo permitirÆ que o sujeito invista, mais tarde, no outro. Mas, para isso, serÆ necessÆrio que o sujeito exista dentro do outro, ao que Coimbra de Matos (1997) denominou constncia do sujeito no interior do seu objecto .

Se isto nªo acontece, isto Ø, se nªo hÆ um investimento inicial no sujeito, ficarÆ um vazio, uma falha bÆsica, que o sujeito tentarÆ preencher, a partir de feitos que permitam a sua valorizaªo. SerÆ isto que terÆ acontecido com D. Sebastiªo a falta de investimento por parte da mªe, do pai e do s avs, terªo originado um vazio interno, de difcil preenchimento. Talvez por isso a sua vida se tenha pautado por um conjunto de desejos e atitudes de megalomania.

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No documento D. Sebastião (páginas 67-70)

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