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Luz: efeitos e significações

3. AS FACES DO NARRADOR E A LINGUAGEM POÉTICA

3.2. Luz: efeitos e significações

A presença da luz é uma constante em toda a obra, sendo expressa principalmente por meio dos raios do sol ou da claridade proporcionada pela lua. Seu sentido simbólico surgiu com a contemplação da natureza desde a origem dos tempos e associa-se a acepções simbólicas, metafóricas e artísticas na obra em análise.

Antes de tratar das manifestações dessas acepções, é necessário apresentar a carga simbólica do astro fonte de luz, o sol.

Segundo Chevalier & Gheerbrant (2005), o sol é um símbolo diversificado entre as culturas e exerce função ambivalente, pois é fonte de calor, de energia e de vida, mas

também pode queimar e matar o que gerou, provocando seca. Está no centro do céu, assim como o coração, no centro do ser19, tornando-se símbolo universal da ressurreição e imortalidade representadas pelo ciclo solar de um dia. É considerado metáfora do conhecimento e do intelecto, emblema de Buda e de Cristo, por “irradiar a justiça” e também o símbolo imperial tendo conotações em flores, animais e no ouro. Assim, na cultura ocidental, o sol é considerado ativo, yang, e a lua, passiva, yin, pois, a luz da lua é proporcionada por reflexos do sol. Porém, “objetos simbólicos [...] não são puros, mas constituem tecidos onde várias dominantes podem imbricar-se” (DURAND, 2001, p.54).

Voltando para as manifestações da luz em Os Pescadores, pode-se afirmar que, sendo símbolo da vida, da claridade e do ato de ressurgir, a luz faz referência a um mito de origem, o mito do nascimento ao representar o nascer e findar de cada dia.

Com relação ao sentido metafórico, a presença da luz geralmente aparece associada à “iluminação” diante da capacidade racional humana, da descoberta de novos conhecimentos e da própria revelação poética, já que, conforme diz Bachelard (1974), a luz tem um princípio de centralização e é a primeira na hierarquia das imagens. Assim, observa-se na citação:

Mas fecho os olhos – abro os olhos... Imensa vida azul – jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul estremece e vem até mim em constante vibração. Quem sai da obscuridade para a luz é que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia... (BRANDÃO, 1985, p. 91)

Nesse trecho é possível identificar a metáfora da luz em oposição à obscuridade relacionada respectivamente ao presente, “abro os olhos”, momento da realidade em que observa a luz do sol refletida nas águas do mar em oposição ao passado em que se encontra a infância já nebulosa na memória “[...] fecho os olhos”. Há uma ação seguida por outra, a de fechar e abrir os olhos, ou seja, nota-se a metáfora do olhar fazendo referência àquilo que o narrador “quer” ver que são, na realidade, as mesmas imagens de uma infância idealizada. O narrador substantiva a cor azul associada à vida e ao mar atribuindo a ela a “vibração”. Essa vibração pela qual o espetáculo natural chega aos olhos do narrador lembra os atributos sobre a memória salientados por Santo Agostinho

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É importante lembrar que a referência ao coração como estando no “centro do ser” é simbólica devido à convenção social de que é o coração o órgão que retém as emoções e sentimentos e, portanto, um dos órgãos de maior importância. Mas, na realidade, o que se encontra no centro do ser, a cerca de dois centímetros do umbigo, no sentido denotativo e com base em valores esotéricos, é o plexo solar. Ele é responsável pela irrigação do sistema digestivo e pela distribuição das energias que se localizam sob o diafragma, sendo representado fisicamente pelo pâncreas, estômago e fígado. Assim, tendo entre outras finalidades a de “distribuir energias” para o corpo, pode-se aproximá-lo aos raios solares na Terra.

(1973) de que com o passar do tempo a memória humana deixa de ser nítida. É como se, num instante, aquela cena comum e ao mesmo tempo única todos os dias da luz nas águas do mar fosse capaz de conduzir o narrador a momentos bons de sua infância proporcionando-lhe a revelação poética, deixando-o “estacado” diante deste “ser” cuja maneira mais fiel de descrever é por meio da poesia. A associação freqüente entre a cor azul, a vida e o mar faz referência aos simbolistas que consideraram essa cor como pertencente ao código do movimento relacionando-a à figura do céu e aos mistérios que o envolve.

Ainda nessa citação, na última frase, o narrador apresenta um trecho metafórico em que ocorre uma associação por semelhança entre o deslumbramento do narrador lírico perante a cena e a narrativa mítica da Caverna de Platão. Ambas se assemelham no fato de que a luz com a qual se tem contato depois de muito tempo de escuridão provoca o ofuscamento e estonteamento da visão, inicialmente, mas, logo em seguida, também possibilita a “iluminação”.

Por último, a acepção artística da luz manifesta-se por meio das relações com as técnicas da pintura impressionista, sendo seus variados efeitos como os reflexos e modulações na água, considerados como um dos principais instrumentos de trabalho dos pintores dessa estética. Na obra, apresenta-se através de exemplos desses efeitos já citados anteriormente e por meio de trechos metafóricos que se apresentam como intertextos diretos ou indiretos associados também pela semelhança, por exemplo, há uma referência ao pintor impressionista e romântico inglês Willian Turner (1775 – 1851) da primeira metade do século XIX num momento em que o narrador descreve o céu da ria:

Lá no fundo incendeiam-se os borrões violetas das nuvens. Outra vez a amplidão se modifica. [...].São neblinas em farrapos que ascendem dos fundos. A humidade alapardada entra de novo em cena e engendra nova vida. Reparo no céu... Como num quadro inverossímel de Turner as névoas esgarçadas embebem-se em reflexos vermelhos – cores delicadas de nácar, interiores de conchas, tons róseos bebidos pelas gotas de humidade. (BRANDÃO, 1985, p.40).

Uma das técnicas utilizadas por Turner foi a aplicação da luz e sua incidência sobre as cores da maneira mais natural possível, tendo como temas principais de sua pintura o mar, a névoa e as paisagens em diversas fases de sua vida. Tomando a citação mencionada, percebe-se que novamente o narrador lírico refere-se a uma cena do espaço paradisíaco observado, enfocando-a ao dizer “Reparo no céu...” e, conforme as descrições, não é possível identificar nada de definido, somente impressões relacionadas ao elemento “ar” como as nuvens, as neblinas, a umidade, as cores e a luz além da

mudança constante do cenário: “Outra vez a amplidão se modifica”. Essa mudança constante de panorama associa-se à mobilidade do ar no sentido denotativo e com a mobilidade da vida pensando conotativamente. Assim, o narrador utiliza um intertexto direto, “Como num quadro inverossímil de Turner” em função metafórica com efeito de síntese da sensação que pretende transmitir. No mesmo momento, lembra-se dos quadros de Turner a fim de identificar aquele que melhor caracterize esse efeito e nessa procura, encontrou-se O Porto de Margate ao nascer do sol (1835 – 1840), cuja foto está no anexo B, e mesmo que o título do quadro cite o “nascer do sol”, tanto a citação de Brandão como a pintura podem fazer referência tanto ao nascer como ao pôr-do-sol em um dia que o céu está úmido e coberto pela neblina. Porém, é importante salientar que as impressões transmitidas pelo discurso poético em que o intertexto está inserido, remeteram-me ao quadro acima mencionado podendo fazer com que outro leitor relacione-o com outro quadro de Turner. Portanto, observa-se que essa técnica de utilização de um intertexto exercendo função metafórica é essencialmente marca da poesia no aspecto da forma e do sentido por apresentar a síntese e a ambiguidade, dando liberdade na transcendência de significações.

Outros trechos metafóricos que apresentam-se como intertextos indiretos estão relacionados à acepção artística da luz por meio do Impressionismo e dizem respeito a Claude Monet (1840 – 1926) sendo identificadas em várias passagens na obra, como em: “ Tudo aqui ganha com a amplidão e é a luz o grande pintor. É ela que nos ilude na atmosfera carregada de vapores invisíveis[...]. É um nada – é um quadro onde a luz tem o papel principal.” (BRANDÃO, 1985, p. 41), em que a luz assume o papel de protagonista, o papel do “grande pintor” . A colocação dessas palavras remete tanto ao poder divino, às mãos do Criador que metaforicamente fora o “grande pintor” do mundo, como faz alusão a Monet, um dos maiores pintores franceses do movimento impressionista, cujos quadros a “luz tem o papel principal”.

A catedral de Rouen (1893), quadro em que Monet transmitiu todos os efeitos da

luz refletidos sobre a catedral em momentos sucessivos, alternados e em ângulos diferenciados aparece indiretamente em Os Pescadores : “Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das coisas, que a cada minuto se transformam.” (BRANDÃO, 1985, p. 39). Além dessa alusão, pode-se afirmar que o ato de observar e registrar a mudança de aparência da catedral com base nas diferenças entre os efeitos proporcionados pela luz em cada horário escolhido por Monet, também foi utilizado pelo narrador na obra em análise, figurativizando-se na

composição do Capítulo V, intitulado A Ria de Aveiro. Nesse capítulo, as descrições não são agrupadas pela marca cronológica dos dias como nos demais capítulos. Brandão escolheu dois aspectos da Ria para retratar, A Paisagem e Os Sítios ignorados sob vários aspectos: ambientação, água, luz e peculiaridades, que são apresentados além das marcas cronológicas de dias, a partir de horas, como pode-se notar na tabela em anexo, lembrando o procedimento utilizado por Monet, sendo inclusive, o capítulo em que se encontra inserida a citação acima.

Por fim, foi possível identificar um quadro impressionista como sendo a condensação de Os Pescadores, a materialização da obra em análise na pintura, segundo a minha interpretação, já que, em vários momentos o narrador refere-se a essa estética artística. Esse quadro é Impressão, sol nascente ( 1872) de Monet, cuja foto encontra-se impressa em anexo.

A tela transmite o instante em que o sol aponta na bruma, ou seja, a aurora, como sendo a cena principal, visto que o sol e seus raios refletidos na água são centralizados em uma faixa com tonalidades amarelo-alaranjadas e espalham-se na parte superior da tela de maneira mais amena. A sugestão da bruma também é notável com os efeitos das pinceladas. Além do registro do espetáculo da aurora no instante idealizado, o quadro traz a presença humana intuída nos pescadores, os barcos e a maquinaria do porto de Le Havre.

Por meio desses elementos tão presentes em toda a obra em análise, como a descrição da aurora, a figura mítica dos pescadores e de suas respectivas embarcações e o trabalho de “impressão” transcrito pela linguagem por meio de construções predominantemente poéticas é possível afirmar a semelhança e a síntese de Os

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