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CAPÍTULO I – SOBRE ESCRITAS E ESCRITORAS INDÍGENAS

1.2 Márcia Kambeba

Foi nesse contexto que encontrei e conheci Marcia Wayna Kambeba, um ser humano, um ser indígena, um ser Omágua/Kambeba. Suas poesias reúnem a força do rio Amazonas, o encanto da floresta, o sabor do açaí, a voz dos ancestrais, o silêncio guerreiro, o poder originário da água, a alma sagrada da samaumeira: árvore da vida e resistência da terra, mãe que amamenta os filhos das águas do Solimões e demais filhos existentes neste país. (D’AMORIM JUNIOR

em KAMBEBA, 2018, p. 17).

Filha do povo Omágua/Kambeba, Márcia Vieira da Silva nasceu na aldeia tikuna Belém do Solimões, em 1979. Aos oito anos de idade, mudou-se para a cidade São Paulo de Olivença, no município do Alto Solimões que, segundo a autora, no passado já foi uma grande aldeia do seu povo Kambeba. A escritora indígena brasileira, Márcia Kambeba é uma jovem artista com muitas habilidades e atuação nas áreas de Ciências Humanas, Educação, linguística e Artes: geógrafa, fotógrafa, escritora, poeta, compositora, cantora e ativista.

Kambeba concluiu o curso de graduação em Geografia na Universidade Federal do Amazonas, em 2006, desenvolvendo estudos na área da Antropologia Cultural e investigando impactos ambientais no Estado do Amazonas. Depois disso, decidiu penetrar mais profundamente na história de seu povo e desenvolveu pesquisas em nível de pós-graduação. Assim, em 2012, defendeu sua dissertação de mestrado intitulada:

Reterritorialização e Identidade do Povo Omágua/Kambeba na aldeia Tururucari-Uka- AM, fazendo jus ao título de mestra em Geografia.

O empenho na construção de conhecimentos a respeito de seu povo fez dela autoridade no assunto. Assim, além de sua sensibilidade poética e artística, a autora contribui com a disseminação dos saberes indígenas, com esclarecimentos e correções de eventuais distorções. Nas palavras dela:

Os Omágua /Kambeba hoje estão territorializados em toda calha do rio Solimões, no Amazonas. Existem famílias em aldeia perto do município de Manacapuru, no rio Cueiras, adentrando o rio Negro. Os municípios onde há presença do povo de São Paulo de Olivença, Amaturá, Tefé, Coari, Alvarães e Manaus, capital do Amazonas. São aproximadamente 50 mil indígenas, ou mais, do povo Omágua/Kambeba, falantes do tronco Tupi. Alguns blogs e literaturas ainda com informações erradas apontam 780 no total, mas nossas pesquisas in loco mostram que só no Alto Solimões, segundo dados da OKAS (Organização do povo Kambeba no Alto Solimões), em São Paulo de Olivença, se tem registrado em ata 15 mil indígenas entre aldeados e moradores da cidade. No município de Amaturá há mais mil pessoas. Em Manaus, trabalhamos com um dado aproximado de 20 mil pessoas afirmando a identidade Kambeba. Ainda falta computar os dados de Tefé, Alvarães, Coari, das aldeias próximas ao rio Negro, entre outras. Esses dados mostram que estamos presentes e não fomos dizimados. (KAMBEBA, 2018, p. 9).

À argumentação precisa, estatisticamente fundamentada e com teor documental, soma-se a poesia de afirmação da identidade indígena da autora: “Sou Kambeba e existo sim” (KAMBEBA, 2018, p. 26). Assim, sua escrita poética se realiza como um prolongamento do esforço para compreensão da cultura e da re/existência de seu povo.

Ela é uma guerreira da palavra que leva adiante a luta das mulheres indígenas empunhando o seu verso, contando histórias, cantando músicas ancestrais em idiomas indígenas e executando suas performances visuais6 que incluem ornamentação corporal,

dança e música. O uso das mídias digitais na trajetória da autora constitui, ao mesmo tempo, uma marca do seu trabalho e um meio para divulgação de sua produção artística.

A respeito da presença das mídias tecnológicas na realidade dos escritores indígenas, a escritora ressalta:

Mas, hoje, temos indígenas que se utilizam das redes sociais, blogs e páginas de cunho literário que são visualizadas todos os dias. Nasce outra ferramenta, se bem usada, de divulgação do pensamento indígena. Aos poucos vai-se ganhando um público leitor nas redes virtuais para uma literatura virtual, com o mesmo peso que a literatura publicada em papel. (KAMBEBA, 2018, p. 42).

Márcia Kambeba faz questão de reafirmar a sua identidade indígena e o faz tanto pela literatura quanto pela militância, canto e nas demais manifestações artísticas. Ela reitera que viver na cidade não faz com que o indígena perca a sua identidade ancestral e ressalta os ensinamentos que trouxe da aldeia, da família e que orientam sua identidade indígena. Nas palavras da autora:

Esses ensinamentos ainda mantidos hoje, contribuem para constituição de identidade, da noção de pessoa, dos valores e crenças, do coletivo social, da relação com a natureza, do respeito ao outro, do entendimento de partilha, da percepção de cada indivíduo dentro da sociedade indígena e da responsabilidade que cada pessoa carrega consigo. O cacique sabe que a ele foi dado a responsabilidade de conduzir e zelar pelo bem viver do povo. Ao pajé cabe a responsabilidade de ser o médico da nação e proceder com a cura física e espiritual. As mulheres são as guardiãs dos saberes ancestrais e educadoras, os jovens tornam-se guerreiros, as crianças se esforçam na aprendizagem do cotidiano e a vida segue sem pressa e sem tempo de relógio sempre obedecendo o rio e sua ciência. Assim cresci e aprendi ouvindo o silêncio que em mim habita nesse Amazônico chão. (KAMBEBA, 2018a, p. 14).

Essa força que vem da tradição e da conexão com os costumes da aldeia orienta a produção artística e a militância da autora. Assim, Dorrico assevera que:

Os versos de Kambeba mostram que a tradição faz parte da identidade, do modo de vida, de práticas adotadas no cotidiano dos indígenas que habitam os centros urbanos. Apesar de os costumes terem mudado, e por extensão terem mudado de espaço, da floresta para a cidade, a identificação com a ancestralidade persiste na memória, na língua, nos cantos, na exaltação à sua etnia. (DORRICO, 2018, p. 27).

Nos versos do seu poema “Ay Kakyri Tama (Eu moro na cidade)” que também é o título de seu primeiro livro lançado, em primeira edição, em 2013 pela editora Grafisa Gráfica e, a segunda edição em 2018, pela Editora Pólen:

Ay kakyri tama.

Ynua tama verano y tana rytama. Ruaia manuta tana cultura ymimiua, Sany may-tini, iapã iapuraxi tanu ritual.

Tradução:

Eu moro na cidade

Esta cidade também é nossa aldeia, Não apagamos nossa cultura ancestral,

Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual. Nasci na Uka sagrada,

Na mata por tempos vivi, Na terra dos povos indígenas, Sou Wayna, filha da mãe Aracy. Minha casa era feita de palha, Simples, na aldeia cresci Na lembrança que trago agora, De um lugar que eu nunca esqueci. Meu canto era bem diferente, Cantava na língua Tupi, Hoje, meu canto guerreiro, Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani. Hoje, no mundo em que vivo, Minha selva, em pedra se tornou, Não tenho a calma de outrora, Minha rotina também já mudou. Em convívio com a sociedade,

Minha cara de “índia” não se transformou, Posso ser quem tu és,

Sem perder quem sou, Mantenho meu ser indígena, Na minha Identidade,

Falando da importância do meu povo, Mesmo vivendo na cidade.

(KAMBEBA, 2018, p. 24).

A poeta indígena se apropria dos espaços da cidade; “Esta cidade também é nossa aldeia”, mas não abandona a identidade dos povos originários: “Na terra dos povos indígenas, /Sou Wayna, filha da mãe Aracy” e reafirma essa identidade reiteradas vezes: “Minha cara de ‘índia’ não se transformou”, [...] “Mantenho meu ser indígena,”.

No poema, a voz poética individual aparece acompanhada da voz coletiva: “Hoje, meu canto guerreiro, /Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani”. Nos versos, a autora ressalta a oralidade dos povos indígenas:

Na cultura indígena mantemos nossa narrativa oral, mesmo que a escrita tenha uma importância fundamental na transmissão de saberes. Nas rodas de conversas ouvem-se narrativas contadas e recontadas pelos mais velhos com direito à repetição, para melhor assimilação e entendimento. (KAMBEBA, 2018, p. 10).

Nas comunidades indígenas, a educação das crianças se dá pela oralidade, nas histórias contadas que fazem parte do imenso patrimônio cultural desses povos que, segundo registros históricos, habitam em terras americanas há mais de 10 mil anos. Além disso, Kambeba celebra em seus versos o culto à ancestralidade, intrínseco às comunidades indígenas de forma geral. Ela agradece a avó, dedicando-lhe sua grande vitória; “À minha avó, Assunta, em memória, dedico toda a minha conquista” (KAMBEBA, 2018, p. 5). A autora relata que a avó Assunta foi a responsável pelo seu gosto por poesia, desde muito cedo. Quando era menina, recitava os poemas que a avó escrevia na aldeia. Mais tarde, no início da adolescência, começou a compor os seus próprios poemas. Da relação próxima e salutar com a avó, Kambeba herdou o amor pela literatura e a força para lutar em favor das mulheres do seu povo e demais etnias.

Ela defende a literatura como um meio para combater o preconceito contra as mulheres, minimizando-o. Alerta para a importância desse trabalho e realça o papel da mulher indígena como mãe, defensora dos territórios e guardiã da sabedoria ancestral. Preocupada com o lugar que o indivíduo indígena ocupa hoje na sociedade brasileira, Márcia Kambeba desenvolveu pesquisas em nível de mestrado acadêmico, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde defendeu a dissertação intitulada: Reterritorialização e Identidade do Povo Omágua/Kambeba na aldeia Tururucari-Uka- AM. O tema de sua pesquisa revela que a trajetória acadêmica da escritora se tornou parte integrante de sua luta por direitos, visibilidade e reconhecimento para o seu povo Omágua/Kambeba. Nesse sentido, ela afirma:

Reterritorialização e Identidade do povo Omágua/Kambeba é um estudo que pretende contribuir com a discussão de território, não propriamente só com os conceitos clássicos da Geografia, mas, sobretudo, com a conceituação a partir de uma luta política vivenciada

por indígenas Omágua/Kambeba aldeados na aldeia Tururucari-Uka no município de Manacapuru – AM e que reivindicam seus direitos a terra para viver e rememorar seus costumes e tradições, imprimindo no território sua identidade étnica que é manifestada na territorialidade, onde os mitos, os cantos, as danças, a língua, são revividos e transmitidos evitando que a cultura e a identidade Omágua/Kambeba se perca. (KAMBEBA, 2012, p. 10).

Kambeba ressalta que além das questões acadêmicas e epistemológicas da área dos conhecimentos geográficos, há um forte vínculo de sua pesquisa com a luta política vivenciada pelo povo Omágua/Kambeba de Manacapuru, da aldeia onde coletou dados para análise. Conclui-se, portanto, que, na condição de militante indígena e guardiã da sabedoria ancestral, a autora se vale de sua escrita acadêmica e literária como mecanismos para o fortalecimento de sua luta.

Alguns poemas de seu livro, como exemplo, o texto abaixo transcrito, foram compostos a partir dessas reflexões sistemáticas. A aldeia Tururucari-uka foi o local da coleta de dados para os seus estudos. Eis o poema:

Aldeia Tururucari-uka [A casa de Tururucari] Euaracy quando desperta Seus raios vêm nos saudar Mostrando que o dia começa É hora de tra balhar.

A aldeia do povo Kambeba

Não é construída em qualquer lugar O rio é determinante

Para se poder habitar Imprimindo nesse espaço Nossa cara, nosso olhar. Diz o Tuxaua maior

O Kambeba é povo agricultor Não se pode deixar de plantar Escolheu São Tomé como protetor Para que tivesse boa colheita Nesse santo se apegou. Na aldeia Tururucari-Uka, As casas representam união Ordenadas em forma de círculo Facilitam a comunicação Feitas de madeira e palha Mantendo a antiga tradição.

Á noite Yacy se aproxima Chamando o povo para ensinar O que os mais velhos deixaram Manifestado na forma de cantar Nas danças que representam

A cultura imaterial, nossa herança milenar. O som do maraká anuncia

A dança vai começar No sopro do meu cariçu O som começo a tirar Do canto que vem trazer O curupira para dançar.

Contam os mais velhos com sabedoria, Que o Kambeba tem um exemplo a seguir, De um líder que lutou pelo povo

Para não os ver sucumbir Pelas armas dos may-tini

Tururucari, não deixou a etnia se extinguir. Hoje, Tururucari representa,

União, força, luta e coragem Não se sabe como ele era

Mas se faz uma ideia de sua imagem

Retratado no desenho do indígena Uruma Marcando essa nova linhagem.

(KAMBEBA, 2018, p. 34-35).

A obra de Márcia Kambeba chama o leitor para o envolvimento com o texto literário, “Euaracy” introduz o verso inicial do poema, é o nascer do dia que traz ao leitor as revelações sobre a vida na aldeia, a força poética dessa imagem – Tururucari- Uka vestida com os primeiros raios solares para se mostrar majestosa – é capaz de, por si só, hipnotizar o leitor. A poesia de Kambeba pede isenção de julgamento e disposição para aceitação do outro enquanto exercício de alteridade. Seus versos simples, de rimas claras e fáceis sugerem a necessidade da aceitação da diferença e da partilha cultural, sem a imposição de um ponto de vista sobre o outro. Os versos do poema descrevem a aldeia e narram os costumes dos seus moradores, retratando as práticas dessa comunidade com simplicidade e transparência, no ritmo calmo das águas do rio, dos ciclos da Mãe-Terra.

Outro aspecto recorrente da escrita literária da autora é a riqueza linguística de seus poemas, em que a língua nativa é sempre trazida por meio de palavras e expressões que emergem, no texto, em meio às expressões da língua oficial. Essa estratégia de

escrita poética é fruto da preocupação da autora com o futuro da língua de seu povo, patrimônio simbólico de valor incalculável não só para os indígenas, mas para a cultura, de forma geral.

A autora demonstra grande consciência a respeito da necessidade de se manter viva a língua do seu povo e se utiliza da poesia para essa finalidade também. Assim, seus escritos trazem muitos termos e expressões da língua nativa e alguns poemas se apresentam em forma bilíngue, como é o caso do texto que dá nome ao seu livro de poemas: Ay Kakyri Tama (Eu Moro na Cidade). De acordo com ela, manter viva a língua materna também faz parte da luta dos povos originários:

A luta do povo Omágua/Kambeba e dos demais povos não se resume apenas a defender seus limites territoriais. Lutam também por uma forma de existência presente no modo diferente de viver, ver, sentir, pensar e agir e de seguirem construindo sua história, exigindo seus direitos, tendo como um dos objetivos o ensino da língua materna. A língua Omágua/Kambeba, durante anos vem apresentando sinais de declínio, mas se mantém viva pelos ensinamentos às crianças e aos adultos. (KAMBEBA, 2018, p. 8).

A escrita bilíngue ou mesclada com termos e expressões das línguas nativas representam estratégias de resistência na poética de Márcia Kambeba e encontram ressonância nas escritas ameríndias, com as poetas Mapuche e na escrita dos intelectuais na comunidade lusófona, principalmente em países da África e Timor Leste, em Língua Portuguesa. Como exemplo, o poema Em que língua escrever, da poeta guineense Odete Semedo, cujos versos foram transcritos a seguir:

Em que língua escrever As declarações de amor? Em que língua cantar

As histórias que ouvi contar? Em que língua escrever

Contando os feitos das mulheres E dos homens do meu chão? Como falar dos velhos Das passadas e cantigas? Falarei em crioulo? Falarei em crioulo! Mas que sinais deixar Aos netos deste século? Ou terei que falar

Nesta língua lusa E eu sem arte nem musa

Mas assim terei palavras para deixar Aos herdeiros do nosso século? Em crioulo gritarei

A minha mensagem Que de boca em boca Fará sua viagem Deixarei o recado Num pergaminho Nesta língua lusa Que mal entendo No caminho da vida Os netos e herdeiros Saberão quem fomos.

(CAMPATO JR., 2016, p. 297).

O eu poético tensiona questões relativas ao pertencimento cultural e à identidade diante da imposição do idioma luso a partir do processo de colonização em Guiné Bissau. Há um claro dilema expresso na superfície textual: “Falarei em crioulo?”. O crioulo é uma importante língua falada em Guiné-Bissau. A consciência de que há termos intraduzíveis, bem como traduções inadequadas leva o sujeito lírico a um paradoxo.

Na poesia de autoria indígena contemporânea brasileira, a resistência se impõe de diversas maneiras, entre elas, a partir do emprego dessa linguagem híbrida, em que, diante de algumas circunstâncias, o léxico das línguas nativas é empregado para suprir lacunas e reafirmar a identidade indígena. Constitui-se, portanto, importante estratégia de resistência e existência, como Márcia Kambeba pretende reafirmar: “Sou Kambeba e existo sim!”.

Alguns pesquisadores reiteram a força de coesão que as línguas indígenas desempenham no interior dessas comunidades. Nas palavras de Machado (2019, p. 14):

As línguas indígenas ligam as crianças à Mãe Terra. Essa relação é forte e merece ser respeitada. Consideramos que a educação escolar no Brasil está míope porque oculta os valores que as culturas, literaturas e línguas indígenas transmitem. O conhecimento das línguas indígenas reitera os conselhos dos antepassados.

A literatura produzida pelos intelectuais indígenas pode contribuir para o debate necessário acerca dessas questões em escolas e demais instâncias de produção do

conhecimento. Para isso, é necessário que haja ampla divulgação desses escritos na sociedade, principalmente, nos espaços de atuação de professores, estudantes e profissionais do ensino em diferentes níveis e segmentos.

Cada língua falada carrega um sistema simbólico e conceitual rico, diverso e único. O valor cultural dessas línguas faz parte do patrimônio da humanidade. A partir desse reconhecimento, o líder e articulador Ailton Krenak reitera: “Para a Unesco, 2019 é o ano internacional das línguas indígenas. Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas, um desses idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade, é deletada” (KRENAK, 2019, p. 23).

Assim, a escrita produzida pelas mulheres indígenas cumpre esse importante papel de contribuir também para a manutenção e fixação dos idiomas originários por meio da leitura de suas obras literárias, tanto nos espaços da educação escolar, nas aldeias, quanto em outras localidades vinculadas ou não à produção formal do conhecimento. Vale ressaltar que a literatura de autoria indígena tem suas potencialidades de consumo alargadas pela ampla divulgação de sua produção em ambientes virtuais.

Ao desenvolver suas próprias regras a poética da literatura contemporânea, de autoria indígena, rejeita a clássica inclinação para a ausência do mundo. Ao contrário, são versos carregados de sabedoria empírica, a fim de garantir a sobrevivência desses povos com a dignidade de poderem se desenvolver em seus territórios sagrados e serem respeitados em suas culturas e modos de vida, tanto pela sociedade quanto pelo Estado. Os versos do poema Silêncio Guerreiro são reveladores dessas estratégias:

No território indígena,

O silêncio é sabedoria milenar, Aprendemos com os mais velhos A ouvir, mais que falar.

No silêncio da minha flecha, Resisti, não fui vencido, Fiz do silêncio a minha arma Pra lutar contra o inimigo. Silenciar é preciso, Para ouvir com o coração, A voz da natureza, O choro do nosso chão, O canto da mãe d’água Que na dança com o vento, Pede que a respeite, Pois é fonte de sustento.

É preciso silenciar, Para pensar na solução, De frear o homem branco, Defendendo nosso lar, Fonte de vida e beleza, Para nós, para a nação! (KAMBEBA, 2018, p. 29).

Percebe-se que o silêncio tem função estratégica e o conhecimento, função pragmática. Os versos do poema ressaltam o aprendizado, obtido com os sábios e as sábias ancestrais, sobre a importância de ouvir, compreender e refletir sobre as formas mais adequadas de lutar pelas transformações necessárias: “Ouvir com o coração”. Assim é a poeta guerreira indígena Márcia Kambeba que faz de seus versos, armas na luta pelo reconhecimento do valor da cultura ancestral indígena, sem se esquecer de que partilha também de uma identidade urbana, conforme os versos do poema “Tucum”:

Na fibra que vem da natureza Vou tecendo fio a fio

Cultura, identidade e beleza Arte que a realeza ensinou. Minha linha vem do mato Minha agulha é o espinho Vou costurando meu caminho Sou a pena do amanhã.

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