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CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO DO AUTISMO E O LUGAR SOCIAL DA

1.3 A “MÃE-GELADEIRA” E O AUTISMO

Apesar de a semente da culpabilização das mães estar presente no trabalho de Leo Kanner, é importante destacarmos que a representação da mãe do autista como “fria” e “pouco amorosa” não deve ser vista como uma criação de um indivíduo. O solo em que cresceu a associação entre autismo e culpa das mães é

30 “I especially acquit you people as parents.” (COHMER, 2014; QUI…, 1995).

31 A neurologista Mary Coleman argumentou que, embora Leo Kanner fosse um pesquisador

excepcional, é evidente que o psiquiatra infantil foi influenciado pelo teor “anti-feminino” contido nas teorias psicanalíticas. (FEINSTEIN, 2010, p. 68).

32 “[...] pourrait-on dire, le mal était fait. Même se lui renonce à cette explication psychologique, d´autres à sa suite la reprendront, malmenant ainsi une multitude de parents, non seulement aux États-Unis mais un peu partout dans le monde et en France.” (PHILIP, 2009, p. 34).

40 um terreno marcado pela negação da mulher em realizar-se de qualquer outro modo para além das paredes que delimitam o espaço doméstico.

Tais ideias estão relacionadas com a “mística feminina”, tal qual apresentada por Betty Friedan (1971). Essa “mística”, a partir do período pós Segunda Guerra, retirou das mulheres dois elementos centrais na formação do sujeito: o reconhecimento da sua individualidade (aqui entendido como reconhecer-se como alguém para além de “a esposa de” ou “a mãe de”) e a capacidade de projetar-se no futuro e, assim, estabelecer planos e metas. Portanto, nesse sentido, a ênfase em relação à parentalidade do autismo foi dada às mulheres: pouco importava se os homens eram letrados, possuíam reconhecimento profissional ou fossem emocionalmente distantes, a mística dizia respeito às mulheres e a seus papeis sociais, sobretudo o cuidado dos filhos. Friedan (1971, p. 33) descreve da seguinte forma o ideal feminino no decorrer das décadas de 1940 e 1950: “[...] a orgulhosa imagem pública da jovem ginasiana namorando firme, da universitária apaixonada, da dona de casa com um marido de futuro e um carro cheio de crianças”.

Christine Philip (2009) nos chama ainda a atenção para o fato de que, no período em que Leo Kanner publicou o seu trabalho clássico sobre o autismo, proliferavam no âmbito acadêmico estudos voltados aos problemas gerados nas crianças devido às “carências afetivas”, impactos referentes à separação mãe-bebê, entre outros.

O período pós 1945 certamente colaborou tanto para a recepção da obra de Kanner quanto para a seleção entre o que seria apropriado e o que seria descartado em relação aos seus apontamentos. Nesse sentido, mesmo que Kanner tenha encerrado seu estudo relatando o caráter inato do quadro que estava apresentando à comunidade científica, tal descrição ficou em segundo plano. O que predominou foi a estigmatização das mães, afinal o perfil das mulheres que Leo Kanner apresentou não correspondia com o modelo socialmente desejado naquele momento.

A partir da leitura de Betty Friedan (1971, p. 34), podemos afirmar que o esperado de uma mulher naquele contexto é que fosse “[...] jovem, quase infantil; fofa e feminina; passiva, satisfeita num universo constituído de quarto, cozinha, sexo e bebês”. Uma mulher erudita e com uma carreira, além de negar o modelo de feminilidade imperante nesse período, poderia proporcionar consequências desagradáveis para a família, filhos e marido. Complementando esse raciocínio, e pensando especificamente no autismo, Patty Douglas (2014) argumenta que o

41 surgimento da psiquiatria infantil acrescenta novos elementos para o exercício da maternidade. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que colaborava para a criação da dicotomia entre o normal e o patológico (na criança), ajudava a afirmar o papel da mãe como figura essencial para o bom desenvolvimento do filho.

Ao observarmos o modo como Leo Kanner descreveu o perfil familiar das crianças diagnosticadas como autistas, fica evidente a distância entre aquilo que se desejava da mulher/mãe e aquilo que ela aparentava ser. Assim, à guisa de exemplificação, cabe aqui citarmos a interpretação feita por Rossano Cabral Lima (2014, p. 111) a partir de um artigo publicado por Kanner em 1949, no qual o psiquiatra enfatizara a relação entre autismo e influência familiar:

Estes [os pais das crianças] descreviam a si mesmos como reservados, não se sentiam à vontade na presença de outras pessoas e mantinham uma vida conjugal fria e formal, sem glamour, romance ou impetuosidade, mas também sem conflitos. Estaria assim caracterizada a “mecanização das relações humanas” em suas vidas, nas quais a objetividade substituiria o afeto. Na maioria dos casos, a gravidez não havia sido bem-vinda e ter filhos era nada mais que uma das obrigações do casamento. A falta de calor materno em relação ao filho ficaria evidente desde a primeira consulta, pois a mãe demonstrava indiferença, distanciamento físico ou mesmo incômodo com a aproximação da criança. A dedicação ao trabalho, o perfeccionismo e a adesão obsessiva a regras seriam outros dos traços dos pais, e os dois últimos explicariam o seu conhecimento de detalhes do desenvolvimento do filho. Mais que isso, os pais muitas vezes se dedicariam a estimular a memória e o vocabulário de sua criança autista, tomando o filho como objeto de “observação e experimentos”. Mantido desde cedo em uma “geladeira que não degela”, o autista se retrairia na tentativa de escapar de tal situação, buscando conforto no isolamento.

As “mães de autistas” de Kanner eram representadas como o oposto da “boa mãe”. Elas supostamente destoavam do modelo apregoado na época e defendido pelos especialistas, não se enquadravam no modelo idealizado pela “mística feminina”, cabendo-lhes o estigma: elas eram “mães más”.

Conforme apontado por Patty Douglas (2014), tal forma de categorizar determinadas expressões da maternidade são recorrentes ao longo da história. O que há de diferente no século XX é sua inserção/absorção dentro do discurso científico, racista, paternalista e classista. As mulheres inseridas no grupo das “mães más” possuem algumas características em comum: não se enquadravam às normativas sociais acerca do feminino. Eram mães lésbicas ou mães que não abdicaram de si e de suas carreiras para cuidar de seus filhos, por exemplo. O suposto comportamento inadequado da mulher era, então, considerado problemático, uma vez que os possíveis danos resultantes de suas ações

42 inapropriadas impactariam negativamente as crianças, podendo (conforme esse discurso) inclusive provocar desde problemas comportamentais a patologias emocionais.

No período pós Segunda Guerra, houve um enfraquecimento da família em detrimento do saber científico, a figura do “[...] terapeuta torna-se cada vez mais presente, intermediando relações e conflitos, que se transformam em um saber de expert.” (ROSA, 2008, p. 61). As patologias de cunho emocional passaram, nesse momento, a ser interpretadas como uma expressão de problemas que afligiam todo o círculo familiar, sendo atribuído um maior destaque ao papel desempenhado pela mãe. É nesse período, conforme nos informa Lúcia C. dos Santos Rosa (2008), que surgem termos como “mãe esquizofrênica” (elaborado por Frida Fromm Reichmann, em 1948), “mãe perversa” (de autoria de John Rosen, em 1951) e “mãe-geladeira” (elaborado por Kanner, em 1949). (EYAL; HART, 2010).

Quando analisamos o termo “mãe-geladeira”, vemos nele a síntese de vários elementos que marcam a conflituosa relação entre modernidade e feminilidade, principalmente após a Segunda Guerra: de um lado a sedimentação da imagem, já mencionada, da mulher como esposa/mãe/dona de casa; de outro lado, a geladeira enquanto instrumento/símbolo de um determinado modelo de sociedade que se projetava – urbana, moderna e que tinha no consumo um dos seus principais pilares. O uso da citada expressão fazia referência a dois fenômenos “modernos”: de um lado, a crescente inserção no cotidiano doméstico de aparelhos elétricos que prometiam facilitar a vida das donas de casa; de outro lado, um suposto afastamento das mulheres de suas atividades “naturais”. Ao refletir sobre o termo, Patty Douglas (2014) argumenta que a “mãe-geladeira” surge num contexto de contradição cultural, em que o saber científico propunha explicações para fenômenos que até então eram ignorados e, ao mesmo tempo, regulava a feminilidade, utilizando como um dos mecanismos de controle o binômio mãe boa versus mãe má.

Vale também destacar que, embora o discurso da mãe-geladeira tenha se espalhado por vários países, o que significa dizer que várias mulheres estiveram sujeitas à categoria, não podemos deixar de mencionar que há, conforme apresenta Patty Douglas (2014), um recorte de classe nessa discussão, uma vez que foram crianças e mulheres brancas, e da classe média, as primeiras a terem contato com a nascente psiquiatria infantil e a psicologia da criança.

43 Dessa forma, o conceito de mãe-geladeira surge num contexto em que a culpa se tornava um importante instrumento para o discurso moral e científico, emergente a partir da década de 1950. Esse instrumento de governo das mães é enfatizado a partir da década de 1960, tendo em Bruno Bettelheim seu principal expoente.

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