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Em Codó, para conseguir o seu próprio sustento e das crianças, Luiza trabalhava no “que aparecia”. Todas as atividades as quais se dedicou estavam relacionadas à zona rural e à sua vivência naquele espaço, como a quebra de coco, a limpeza de terrenos, a capina de mato e também a venda de verduras e frutas. Muitas pessoas de sua família ainda trabalham nestas mesmas atividades. Na esquina da rua de Luiza mora seu primo, que é “padrinho” da tenda e planta arroz no interior. Na época certa, ele seca os grãos ali na rua mesmo, em frente à casa da mãe de santo. Uma de suas irmãs continua mantendo uma banca de frutas e verduras no Mercado Municipal, no centro da cidade. Luiza não trabalha mais por causa de sua idade e porque recebe uma pensão, de um salário mínimo, desde a morte do seu marido.

Morando em Codó, Luiza não quis “brincar” em nenhuma tenda. Tomou esta decisão comparando o terecô da cidade com o do interior – que em sua opinião, era mais “sério”, onde

94 o mestre era mais respeitado, onde ele cuidava dos seus discípulos e onde havia menos vaidade. Na cidade, frequentava o tambor apenas para vender laranjas e, quando o fazia, vestia roupas masculinas (calça comprida e blusa de manga longa) e carregava uma faca na cintura, por causa dos perigos de andar sozinha à noite. Seus encantados não gostaram de sua decisão de não “brincar” e aproveitaram sua proximidade com as tendas, quando vendia laranjas, para incorporar, provocando muita confusão. Em duas tendas da cidade Luiza recebeu um caboclo e ele entrou na gira. Como não estava com roupa de dançar, foi retirada nas duas ocasiões. Na segunda vez, o caboclo teria ficado extremamente chateado e enquanto era retirado da casa, amaldiçoou a festa. Em dois dias o tambor do festejo furou e a programação teve que ser cancelada.

A decisão de tornar-se mãe de santo e ter sua própria tenda surgiu do pedido dos encantados, mas também de uma demanda familiar. Duas irmãs de Luiza começaram a apresentar sinais de “mediunidade” e como ela acreditava que os pais de santo da cidade não cuidavam dos filhos de santo, pensou ser o momento certo para “colocar seu barracão”. Sua tenda foi registrada em 1982 e nela, atualmente, “brincam” oito filhas de santo e três abatazeiros (pai e filhos). Em outros momentos, Luiza teve muitos filhos de santo e trabalhava intensamente. Hoje ainda cumpre suas obrigações, mas pede aos seus encantados para diminuir as atividades e fechar o salão (tema do último capítulo). Ela mora sozinha, ou como costuma dizer, bem acompanhada de Deus, seus santos e encantados, em uma casa de alvenaria, com dois quartos, sala, cozinha e tenda. Com a velhice e com o “peso” das atividades como mãe de santo, Luiza se preocupa com a possibilidade de não conseguir mais dançar seu terecô.

Além das atividades de sua própria tenda, ela “brinca” na Casa de Mestre Bita do Barão, assim como algumas de suas filhas de santo. Conheceu a tenda deste pai de santo quando veio à cidade para um tratamento médico, mas se aproximou dela apenas alguns anos depois. Uma das filhas de santo mais antigas de Mestre Bita me disse que Luiza é “uma mulher muito sabida, e não é de livro não”.

Um menino carregado em saia de encantado

A história de Pedro é, em diversos sentidos, diferente da vida de Luiza. Pedro tem trinta e quatro anos, morou em outras cidades do Brasil (como Teresina, Recife, São Luis e

95 Fortaleza), mas é codoense de nascimento e sempre viveu no perímetro urbano da cidade. Uma das diferenças significativas em relação à Luiza é o fato de Pedro ter nascido em uma família que conhecia muito bem “essas coisas de espiritismo” ou de Encantaria. Como comentei na introdução da tese, Pedro é neto de Seu Gili, citado como destacado conhecedor do terecô e também como um dos grandes feiticeiros do passado, que teria nascido em Santo Antonio dos Pretos. Vivendo na cidade de Codó, foi padrinho da Tenda Santo Antonio, de Maria Piauí, e frequentador de barracões de outros pais e mães de santo.

Diferente do estranhamento da infância de Luiza, os encantados sempre fizeram parte das histórias de Pedro e o acompanham desde que nasceu. Segundo me contou, o seu parto foi feito por Dona Chica Baiana, encantada do seu avô, “em cima” dele – ou seja, nele incorporada. Depois da morte de Seu Gili, a encantada continuou na família, sendo recebida por Pedro, onde é chefe de croa (ou seja, onde é a encantada mais importante).

Dona Chica Baiana está na vida da minha família há muitos anos. Acho que mais de cem anos. Desde minha bisavó, mãe do meu avô, que chamava de Catita e que morreu com noventa e oito anos. Mas, quando morreu ela já tinha preparado meu avô para cuidar da missão dela na terra. E quando eu tinha sete anos meu avô me preparou, mas acho que Dona Chica Baiana me acompanha desde o ventre da minha mãe, porque quando eu nasci, a parteira que me pegou foi Dona Chica Baiana, incorporada em meu avô

(Pedro, 24/09/2011).

Como o caso de Pedro, em Codó existem encantados que tem como especialidade fazer partos. Durante o campo, conheci outras histórias semelhantes, como a de Dona Concita, em Santo Antônio dos Pretos, cujo encantado já fez mais de 35 partos; ou o nascimento do pai de santo Zé Willan, “pego” no nascimento, por um encantado parteiro em uma noite de tambor. Soube ainda de “médiuns” que somente descobriram ter encantados parteiros depois de ter “pego menino” quando incorporados. Igualmente ao caso de Pedro, é comum que alguns encantados sejam recebidos como herança familiar, tendo tido como “cavalo” algum parente da geração anterior (tema que retomo em outros momentos da tese).

Embora a família de Pedro tivesse grande proximidade com os encantados, nem sempre o pai de santo aceitou seu ‘destino’. Os primeiros sinais de “mediunidade” foram por ele sentidos em sua infância, quando via diversas coisas que o assustavam, o faziam gritar e chorar. Pedro foi acompanhado pelo avô a partir dos sete anos de idade quando, junto com um primo (que eu desconfio também tenha “mediunidade”), passou a residir e ser criado na casa de Seu Gili. Os dois meninos conviveram com a familiaridade com que o avô se relacionava com as tendas e as “brincadeiras” e Pedro se lembra de ouvir quando ele, depois de colocá-

96 los para dormir, saia para dançar terecô. Recorda-se, ainda, de segui-lo, atrás do som dos tambores, para assistir os toques e giras. Neste período as crianças não podiam “brincar” dentro dos salões (até hoje é raro encontrar alguma criança participando) e Pedro se lembra de ser reprimido pelos encantados do avô que acreditavam que ele era muito novo para dançar. Outros encantados, porém, logo percebiam sua “mediunidade”, enrolavam-no nas suas saias e o levavam para dentro do salão.

Foto 06: Pedro, no quarto de santo de Chica Baiana,