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Capítulo 2 – Modernismo Paraense

2.4 Benedito Nunes: poemas, confissões e ensaios críticos

2.4.1 O método crítico de Benedito Nunes

Que isso de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão.

Machado de Assis A formação de Benedito Nunes como crítico literário se fortaleceu, portanto, por sua renúncia à poesia, enquanto poeta e pelo seu interesse para os estudos filosóficos. E um dos primeiros ensaios lítero-filosóficos, em termos gerais, foi publicado no Suplemento da Folha

do Norte, sob título de Ação e poesia, em 1947, quando Nunes tinha 17 anos de idade. Nesse ensaio, já era evidente o argumento filosófico dialogando com a poesia:

Pela ação o homem se coloca num plano avançado de conhecimento e, reagindo ao mundo pela experiência animal e pela inteligência humana, faz desaparecer essa inacessibilidade do número, criando um plano de transcendência no qual se move quase livre. Esse plano de transcendência não deve ser entendido no sentido de sobrenatural, mas na harmonia entre a ideia e o mundo (NUNES, 1947, p, 3).

Benedito Nunes não aplica a filosofia para compreender a literatura, e nem tenta fazer dessa última o seu instrumento de ilustração para as verdades filosóficas. Ele afirma que a filosofia já se encontra implícita na crítica literária, e esta, independente do mecanismo

45 Introdução à filosofia da arte (1991) (primeira edição de 1967); A filosofia contemporânea (2004) (primeira

edição de 1967); O dorso do tigre (2009) (primeira edição de 1969); Passagem para o poético (2008) (primeira edição de 1986); O tempo da narrativa (1988); No tempo do niilismo e outros ensaios (1993); Crivo de papel (1999); Hermenêutica e poesia (2007) (primeira edição de 1999); Dois ensaios e duas lembranças (2000) e A

metodológico, avalia o alcance do texto literário por meio da linguagem, da sociedade e da história.

A linguagem é o que há em comum entre elas, a forma escrita; a mensagem estética; o sentir por imagens e a maneira de pensar munida de recursos retóricos para persuadir,

Mas concretizando-se em obras cada um desses domínios, a linguagem, o discurso escrito que têm em comum é, para dizê-lo de maneira simples com o risco de simplificação – trabalhado de modo diferente: na filosofia preponderam a proposição e o argumento, em que prima o conceito ou o significado, na literatura preponderam a imagem e o significante, bem como os chamados tropos (metáfora, metonímia etc). Uma e outra, porém, como obras de linguagem posta em ação – fontes da palavra ativa, atuante – permitem-nos discernir o real para além do dado imediato, empírico (NUNES, 2009 b, p. 27).

Nunes sinaliza que esse encontro entre filosofia e poesia, o qual ele aceita e teoriza, já teria ocorrido desde o século XVIII, sob orientação da disciplina filosófica chamada Estética, oriunda do pensamento kantiano relativo à crítica do juízo quanto ao Belo natural, ao Belo artístico. Desse encontro pode acontecer um “traspasse”, como explica o crítico paraense. É quando ambas se encontram, se correspondem e se atravessam, mas mesmo assim cada uma permanece com a sua individualidade, com as suas diferenças. Nesse ponto, elas coincidem, enriquecem-se reciprocamente,

[...] apesar do traspasse ou da mútua conversão dos termos, poeta e filosófo conservam cada qual a sua identidade própria; e, ainda, o traspasse deixa patente que filosofia e poesia, longe de serem unidades fixas, monádicas, sem janelas, mantendo entre si conexão unívoca e hierárquica, à maneira de duas disciplinas distintas, conforme nos alegou a tradição clássica que Hegel averbou ao absorver a poesia na filosofia, são unidades móveis, em conexão recíproca (NUNES, 2009 b, 29).46

Nunes ressalta que nesse ponto de reciprocidade, a filosofia indaga à obra literária, quanto ao que ela é, ao que visa e qual a sua estrutura; e a obra literária reverte sobre a filosofia, “a instância concreta, reveladora (ou desveladora) das originariamente abstratas indagações filosóficas” (NUNES, 2009 b, 29). Dessa interação, o crítico afirma:

46 Segundo Nunes, o trânsito entre a filosofia e a poesia efetuava-se desde a Lebensphilosophie (filosofia da

vida) para encontrar “o elemento pré-teórico da experiência humana” (NUNES, 1997,18), cujo ponto de culminância foi o pensamento existencial de Jaspers, que, por sua vez, rememora Schelling e Kierkegaard, passando pela ontologia de Heidegger e pelas fontes do existencialismo sartriano, até a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. Essa última vertente citada foi responsável pelo elo entre a hermenêutica da

[...] não é a Filosofia que impõe seu método à parceira, mas é esta mesma que o sugere; a Filosofia pode garantir ou legitimar a escolha de um ou mais de um método, eis que para o conhecimento da Literatura, a conveniência deste e daquele é assentada filosoficamente em estado de simpósio: cada qual pode servir ao iluminar de certa maneira a obra estudada. Reciprocamente a obra estudada também pode oferecer um ponto incisivo de aclaramento filosófico (NUNES, 2009 b, 29).

Assim, o pensamento necessita da linguagem para se transformar em fala ou discurso, e nesse processo a linguagem interpreta o pensamento. Há uma relação mútua e precisa: “a Poesia Moderna, consciente de sua fatura verbal, como nô-lo mostra a ocorrência nesta tematização predominante do ato poético, é a que mais se aproxima da Filosofia. Tal é o requerimento da linguagem sobre nossa experiência de interpretantes” (NUNES, 2009 b, p. 41)

Perto dos seus 80 anos, ao tentar definir-se, Benedito Nunes (2009 b, p. 24) afirma: “não sou um duplo, crítico literário por um lado e filósofo por outro. Constituo um tipo híbrido, mestiço das duas espécies. Literatura e filosofia são hoje, para mim, aquela união convertida em tema reflexivo único, ambas domínios em conflito, embora inseparáveis, intercomunicantes”. Desse tipo hibrido de critica surge o método de Benedito Nunes.

“Mas... o que é isso de método?” Como sugere Machado de Assis, em Memórias

póstumas de Brás Cubas (trecho transcrito na epígrafe deste subcapítulo), o método é um recurso que não podemos descartar, porém devemos saber usar com moderação, não tão presos aos preceitos limitadores das regras. Há que se encontrar um meio termo, e Nunes inseriu uma experiência de leitura e de reflexão para sua crítica literária, não como método, porque quando perguntado sobre qual o seu método, ele com seu bom humor latente, respondia, sorrindo marotamente: que método?

Sabemos que nenhum método seria capaz de apreender uma obra literária, uma vez que ela não se esgota nas possibilidades de leituras. Para Nunes, a crítica é realizada pela leitura em constante movimento, esse caráter reflexivo na confrontação filosófico-literária – o que fez a sua crítica ser considerada como singular na crítica literária nacional.

Benedito Nunes é, antes de tudo, um grande leitor; encontra na leitura uma atividade vital, a partir da qual impulsiona seu pensamento. Como Clarice Lispector observou, viveu-a e viveu-se nos livros dela, interpretando-os, por isso, tão profundamente [...]. Ele reconhece que o mesmo se deu com Guimarães Rosa, outro autor de sua preferência: “Absorvia-o na sua obra, que me absorvia” (PINHEIRO, 2009, p. 11).

A crítica de Nunes, ao compartilhar da criação verbal do poeta/prosador, alia a sensibilidade teórica e a analítica. Compreender um texto é postar-se perante o mundo da obra e entrar nele, para entendê-lo e, por extensão, entender a si mesmo, pois, segundo o crítico (1999, p. 57), “toda interpretação envolve [...] uma preliminar e antecipada autocompreensão do intérprete”.

A leitura dos poemas de O Estranho, à qual dedicamos o capítulo seguinte, não tem a pretensão de empreender o vaivém reflexivo entre filosofia e poesia, em uma tentativa, que seria de antemão frustrada, de seguir os caminhos da crítica filosófico-literária de Benedito Nunes. Se fizemos essa brevíssima descrição de seu trajeto e de seu “método” como leitor- intérprete (correndo o risco da simplificação, para usar uma expressão dele) foi porque, além de Benedito Nunes e Max Martins (como já dissemos) terem trilhado seu caminho nas letras lado a lado – um, intérprete, o outro, poeta –, pensamos, como ele: que o mais importante é desvelar a referência do texto, o mundo o qual ela descortina e redescreve; a referência do texto, onde repousa a metáfora. Procuramos, pois, ler a ambiguidade das imagens – estratégias do texto que permitem à interpretação uma dinâmica de leitura, a qual não procura algo por detrás do texto, mas se apropria das questões abertas pela potência criadora da linguagem poética.

Capítulo 3