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Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX a história conquistou sua autonomia em relação à filosofia e ciências humanas e desenvolveu seus próprios critérios e procedimentos de crítica e análise das fontes para produzir os escritos históricos.

A preocupação dos historiadores, então reconhecidos como cientistas, era a de se afastarem das interferências incômodas como a inevitável confusão entre história e ficção. Segundo Grespan, o praticante da nova ciência procurou se afastar também do filósofo, “cujos pressupostos metafóricos sobre o destino da humanidade passavam por cima do individual, tema por excelência da história” (2008, p.292). Os historiadores procuraram ainda se afastar do teórico de outras ciências humanas, “para quem esse

elemento individual seria apenas exemplos das leis sociais, seu verdadeiro objeto” (idem, p. 291-292).

O historiador, assim, deveria buscar documentos autênticos da época ou acontecimento estudado considerando-o na sua singularidade absoluta. Era o mesmo procedimento dos teóricos das ciências da natureza que utilizavam o método experimental. O problema é que os historiadores trabalham com o individual, avesso, portanto, às leis gerais como as das ciências naturais.

O método então desenvolvido pelos historiadores levava em consideração a ideia de verdade para distinguir a história da ficção. Nesta, não há um compromisso com o real, na história é imprescindível tal correspondência. O conceito de verdade foi emprestado das ciências naturais: “Verdade seria a correspondência, a adequação entre as proposições cientificamente formuladas e apresentadas pelo sujeito do conhecimento e o objeto real descoberto pela pesquisa empírica” (Grespan, 2008, p. 292).

Grespan chama a atenção, porém, que durante os procedimentos metodológicos – a autenticidade das fontes, sua análise correta, a seleção dos fatos individuais relevantes – a ideia de verdade não está sempre garantida: a verdade é obtida por meio de operações e atitudes específicas do historiador. Assim, o método forneceria a possibilidade de obter a verdade, mas não poderia simplesmente refletir a forma de certo conteúdo, “pois esta forma não se apresentaria diretamente ao cientista, para quem o real aparece, à primeira vista, como algo caótico” (idem, p. 293). A estrutura do real teria de ser descoberta e o método passa a ser concebido apenas como instrumento de trabalho, como ferramenta que pode ser bem ou mal utilizada.

Até o começo do século XX as formulações metodológicas eram ditadas pela Escola Histórica alemã, que pregava a neutralidade do saber como esvaziamento da subjetividade do cientista, procedimento que permitiria adequadamente dizer o objeto, refletir sua realidade. Ou seja, somente se obtém a objetividade por meio da neutralização do sujeito, o que significa que quaisquer hipóteses formuladas previamente sobre o tema teriam de ser abandonadas, pois elas poderiam influenciar e distorcer seus resultados. A respeito do pensamento da escola alemã, Grespan completa:

Embora seja inegável que haja conhecimentos anteriormente acumulados, sistematizados às vezes na forma de teorias, eles não deveriam ser levados em conta a ponto de impedir o historiador de perceber a diferença específica ou a novidade do objeto que se desvela na pesquisa atual. Hipóteses, expectativas e teorias fazem parte da subjetividade que justamente tem que ser afastada para garantir a adequação pretendida ao objeto” (Grespan, 2008, p. 294).

A partir do início do século XX, os historiadores reconheceram ser impossível esta atitude de neutralidade diante do objeto. E foram mais além, defendendo que nem tudo na pesquisa histórica é restritamente racional, que muitas vezes os historiadores devem apelar para a sua intuição e imaginação. Em outras palavras, é a revalorização da subjetividade.

A intuição e a fantasia seriam, então, decisivas na forma de fazer história, pois critérios puramente racionais não permitiriam ao pesquisador romper com os quadros teóricos estabelecidos e alcançar novas descobertas. Grespan diz que a partir dos anos 1970 alguns autores pretenderam ir além dessa nova postura:

Julgando estéril o saber objetivo, fechado num domínio unilateral, propuseram então considerar predominante a dimensão estética da História – a narrativa como arte, o ponto de vista como estilo. A fronteira entre a História e a Literatura se caracterizaria, assim, por uma indiscutível porosidade, resultante de uma suspeita em relação ao conceito mesmo de verdade: a ciência e o seu método não podiam garantir a objetividade do saber histórico; os limites entre este saber e a imaginação, entre os fatos e a ficção estariam suspensos. Contar a história “como ela aconteceu”, lema da Escola Histórica, soaria como um claro disparate, pela impossibilidade de se conhecer todos os aspectos envolvidos em um acontecimento e deste ter objetividade isenta de interpretações subjetivas” (Grespan, 2008, p. 297).

Grespan explica que é na perspectiva desse diálogo que se redefine hoje o conceito de verdade nas várias vertentes da fenomenologia e da hermenêutica, por exemplo, e acrescenta que se se reconhece que não existe objetividade pura, mas apenas a perpassada pelas incontáveis subjetividades que convivem objetivamente no mundo, não há porque descartar a ideia mesma de verdade, que poderia ser definida como o acordo das subjetividades:

Já nesse caso aparece um critério de objetividade que define uma função crucial para o método: ele não pode estar totalmente determinado no âmbito de cada teoria, de cada visão subjetiva de mundo, pois é

justamente um dos fatores que permite colocá-las de acordo. Ou seja, a intersubjetividade implica que a experiência realizada por alguém pode ser repetida por ele mesmo ou por outro, tendo de seguir regras e normas claras e imitáveis, portanto. É o que deve reger também a pesquisa histórica, por mais variados e inovadores que sejam seus materiais e procedimentos. Daí que o pesquisador tenha de se limitar a afirmações que encontrem contrapartida em material acessível a qualquer outro, que possa ser verificado, que seja de domínio público de alguma forma. E daí também que a intuição e a imaginação, por mais importantes que sejam na pesquisa individual, não possam ser critério de divulgação e generalização dos conhecimentos, depois de obtidos. Elas são faculdades cuja operação não tem a forma de um conjunto de regras de procedimento para serem seguidas por outros sujeitos; são íntimas, individuais, subjetivas no sentido definido pela Escola Histórica” (idem, p. 299).

Temos, assim, duas posições antagônicas: a Escola Histórica alemã propunha o método da neutralização do sujeito e afirmação do objeto; os seus críticos do século XX invertem a polaridade, recusando a objetividade do conhecimento e afirmando radicalmente a sua subjetividade. Para Grespan, se não se admite mais o conceito tradicional de verdade dada como correspondência com o real, é porque se aprendeu o quanto há de subjetivo no objeto, que de forma alguma é ‘puro’, assim como o sujeito do conhecimento, que não pode jamais ser considerado neutro.

Seção IV

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