• Nenhum resultado encontrado

A MÍSTICA NO MST: CAMPO DE REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADE Construindo representações: a mística como uma prática cultural e

política no MST

Compreender a mística no MST é um desafio para múltiplos olhares. A riqueza e a dinamicidade e a sua relação com os sujeitos que fazem parte do Movimento não se explicam por si só. Diversas são as possibilidades de interpretação sobre a prática da mística no MST. A diversidade de interpretações sobre uma única prática está ligada aos aportes teóricos e me-todológicos de cada autor, bem como de suas respectivas áreas de pesquisa. Analiso a mística como uma “prática cultural e política”, que se manifesta de forma plural no MST. E quando digo “prática”, recorro às ideias do historiador Roger Chartier, que destaca que a estrutura do mundo social é construída por meio de práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas), que são historicamente produzidas (1990, p. 27). Logo, as práticas estão presentes nos diversos grupos sociais, sendo elas complexas, múltiplas e diferenciadas.

No caso da mística desenvolvida pela organização do MST, por ser uma prática apro-priada dos grupos religiosos que lhe prestavam assessoria (especialmente a CPT), ela também possui sua historicidade, ao passo que foi produzida e reproduzida historicamente junto ao Movimento. O “cultural” e o “político”, atribuídos ao seu entendimento, explicam-se pelo fato de que não há como separar estas duas dimensões no fazer da mística. Analisando o con-junto de fontes selecionadas para realização do trabalho, nota-se que a política se torna uma dimensão fundamental e importantíssima para se compreender os sentidos de sua produção no Movimento.

A luta pela terra é política! Mas não é só isso. Neste sentido, a mística expressa simul-taneamente a dimensão da cultura, pois busca representar como o MST vem construindo o conjunto de mecanismos e regras que regem a sua organização127. Conforme salientou José D’ Assunção Barros, ao analisar as concepções de Chartier, as “práticas culturais” não são apenas a feitura de um livro, uma técnica de determinada sociedade, mas “também os modos como, em uma dada sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros” (2005, p. 131). Para tanto, a mística no Movimento agrega-ria fortemente em seu fazer a dimensão cultural e política, que necessaagrega-riamente não podem ser pensadas em separado, visando a uma melhor compreensão sobre os seus diversos significados e sentidos. A produção de sentidos dependerá essencialmente da realidade em que o grupo estiver vivenciando e dos princípios, objetivos e valores que o MST privilegia em sua organização.

Os estudos de Chartier, sobretudo os que tangem à chamada “história cultural”, que objetiva “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada reali-dade cultural é construída, pensada, dada a ler” (1990, p. 17), foram significativos para criar reflexões sobre a mística128. Os “conceitos complementares” de “práticas” e “representações” sistematizados por Chartier e por Pierre Bourdieu tornaram-se fundamentais para avançar nas discussões129. Quando se salienta “conceitos complementares”, quero dizer que as

“práti-127 A compreensão de cultura no livro está pautada nas ideias de Clifford Geertz, o qual salienta que cultura é um conjunto de mecanismos que regem e normatizam a vida dos grupos sociais. Ver: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S. A., 1989.

128 Ao sistematizar os conceitos de “práticas e representações”, que são as “pedras angulares” de suas reflexões, Roger Chartier enuncia que a “história cultural” se basearia no estudo dos processos pelos quais os grupos constroem sentido ao mundo, ou do seu mundo. A história cultural trouxe em cena novos domínios de investigação para os historiadores, sem deixar de lado os postulados da história social. Essa apropriação de novos territórios pode ser pensada também como uma estratégia da própria disciplina histórica, alargando seus horizontes, no sentido de que não só economia ou política fazem parte das relações. A história cultural contemplaria outras dimensões que fazem parte da vida dos sujeitos, em seus respectivos grupos. Por meio das análises das práticas e representações, os historiadores podem compreender os “modos de fazer” e os “modos de ver” o mundo. Ou seja, como os sujeitos e os grupos sociais estruturam suas formas de viver e conceber o mundo que os cerca.

cas e representações são sempre resultados de determinadas motivações e necessidades sociais” (BARROS, 2005, p. 134). Ou seja, cada grupo social possui suas “práticas” que geram “repre-sentações” e vice e versa, ao passo que estas são motivadas pelas necessidades e interesses de cada grupo social. Sendo uma prática cultural e política no MST, a mística se tornou relevante para a organização do Movimento, pois é “construtora de representações”. Essas representações construídas via mística também podem gerar práticas entre os integrantes.

Todavia, o que se compreende por “representações”? Ao descrever o “mundo como re-presentação”, Chartier salienta que a palavra “representação” atesta para duas definições de sentidos aparentemente contraditórios. Por um lado, representação faz “ver a ausência”, dis-tinguindo o que representa e o que é representado. De outro lado, é a “apresentação de uma presença”, apresentação pública de uma coisa ou pessoa. Em suas palavras:

Representar é, pois, fazer conhecer as coisas mediante ‘pela pintura de um objeto’, ‘pelas palavras e gestos’, ‘por algumas figuras, por marcas’ – como os enigmas, os emblemas, as fábulas, as alegorias. Representar no sentido jurídico e político é também ‘manter o lugar de alguém, ter em mãos sua autoridade’ (2002, p. 165).

Apropriando-me das ideias de Bourdieu e Chartier, compreendo que “representações” são construções sociais da realidade, em que os sujeitos sociais fundamentam suas visões de mundo a partir de seus interesses e de seu grupo. Desta forma, os sujeitos e o grupo ao qual pertencem criam representações de si mesmos e de outros grupos, fundamentando suas visões de mundo sobre a realidade. As representações visam construir o mundo social dos sujeitos, sendo elas matrizes dos discursos e das práticas dos grupos. Assim, compreender as

represen-Entretanto, analisando suas obras, é possível observar que eles sistematizam esse conceito retomando as ideias de Marcel Mauss e Emile Durkheim, sobretudo, as noções de “representações coletivas”. Neste sentido, nota--se que o conceito de representações vem sendo polido e trabalhado há bastante tempo, contribuindo para os pesquisadores compreenderem a dinâmica e complexidade do mundo social. É de suma relevância destacar que este conceito tem sido utilizado em vários campos das Ciências Humanas, por vezes, com perspectivas distintas.

tações dos grupos é compreender como o mundo dos mesmos é construído socialmente. De acordo com Chartier:

O que leva seguidamente a considerar estas representações como as matri-zes de discursos e práticas diferenciadas – ‘mesmo as representações colec-tivas mais elevadas só tem uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos’ – que tem por objectivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua (1990, p. 18).

Ao descrever sobre noções de “região, identidade e representação”, Bourdieu procu-ra identificar o “poder das representações” na construção de uma realidade social, à medida que estas podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito e designado. Explicando o conceito de representação, Bourdieu discute o mesmo partindo da realidade construída e dos “enunciados performativos”, que visam tornar reais os discursos produzidos pelos grupos. Des-ta maneira, é possível pensar que todos os discursos são socialmente construídos, objetivando agir no real. Ao pensar no “campo social”, Bourdieu destaca que há um jogo em que se produ-zem as representações e uma existência de crenças que as sustentam (2006, p. 107-132). Nesta perspectiva, no campo social haveria uma luta constante por representações ou classificações, em que os grupos criam suas representações para se fazerem ver, serem vistos e até para domi-nar uns aos outros. Logo, as sociedades são constituídas por grupos distintos, que manifestam diferentes representações do mundo.

Os grupos criam representações que objetivam agir na realidade. Deste modo, “o mundo social é também representação e vontade, e existir socialmente é também ser percebido como distinto” (BOURDIEU, 2006, p. 118). As representações estão localizadas no tempo e são social e historicamente construídas pelos sujeitos e seus respectivos grupos. Neste processo, nas tensões que envolvem as relações sociais, as representações criadas pelos grupos podem forjar uma realidade social. À medida que os grupos constroem representações de si mesmos e dos outros, elas podem ser elaboradas para submeter e oprimir. Sendo assim, em meio à sociedade haveria “lutas por representações”, que por sua vez visam à hierarquização da própria estrutura social.

Depois de explanar um pouco sobre o entendimento que faço do conceito de “repre-sentações”, volto à questão da mística ser uma “construtora de representações” no MST. Como uma prática cultural e política no interior do Movimento, o celebrar da mística se configura como um momento privilegiado em que se processam “construções de representações”, de-vendo ser praticada em distintos espaços e circunstâncias. Através da mística o Movimento constrói suas visões de mundo, estabelece seus valores e crenças, expressa o que espera de seus integrantes, legitima a luta pela terra, ressalta quem são seus aliados e inimigos nas lutas, e cons-trói sua memória histórica. Enfim, representa o seu mundo e o mundo que está por vir com a luta dos trabalhadores e trabalhadoras.

A mística se tornou relevante e necessária ao MST, principalmente, porque ela se confi-gura como um momento em que a organização do Movimento consegue se comunicar eficaz-mente com seus integrantes, evocando e ressoando representações que contemplem os valores, objetivos e interesses de sua organização. É preciso salientar que na organização do Movimento, existem outros meios e práticas em que se constroem representações, como, por exemplo, os di-versos símbolos, as músicas e os materiais que são publicados por sua organização. Toda produ-ção pode ser geradora de representações, e a mística, desde o seu princípio, caracteriza-se como um momento privilegiado e fundamental na construção de representações no MST, tanto em relação a si mesmo, quanto em relação aos “Outros”. No fazer da mística, as representações se encontram nas falas, nos gestos, nos símbolos, nas canções e hinos de luta, bem como em todos os elementos utilizados em seu desenvolvimento.

Como “construtora de representações”, no transcorrer do processo histórico, a mística se consolidou como um “elemento estratégico” para a organização do MST. Por este viés de interpretação, não é complexo compreender porque ela é tão valorizada e cultivada pelo Movi-mento, chegando ao ponto de ser considerada sua “alma”. Ao tentar apreender alguns sentidos objetivos da prática da mística no MST, que evidenciam sua relevância enquanto um elemento estratégico em sua organização, discutirei, nos próximos tópicos, dois aspectos fundamentais que perpassam toda a sistemática do fazer da mística, e que são responsáveis em grande parte pelo êxito desta prática na relação do Movimento com seus integrantes.

Estes aspectos se referem à construção de representações sobre sua “memória histórica”, sob a qual o MST edifica sua imagem e a de seus inimigos na luta pela terra. E, construindo

sua memória histórica através da mística, o Movimento também processa a edificação de uma “identidade coletiva Sem Terra”, em que os sujeitos incorporam os valores, as visões de mundo e os modos de ser particulares ao grupo. A construção de uma memória histórica e de uma identidade coletiva Sem Terra se caracteriza como essencial para resistência e sustentação do Movimento.