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2 Dinâmica da Vida/O processo de Viver/ A Música

2. Dinâmica da Vida/O processo de Viver/A Música

2.4 Possibilidades de um melhor viver

2.5.2 Música e memória

No que se refere à memória musical, percebe-se que boa parte do que ouvimos nos primeiros anos de vida pode ficar registrado em nossa “mente” ao longo de toda uma existência. Confirmamos essa experiência a partir de nós mesmos. Somos capazes de lembrar músicas que ouvimos na infância, mesmo estando distante em tempo e espaço da experiência vivida.

Sacks (2007) descreve uma experiência com, Jimmie, um dos seus pacientes. “Isolado em um único momento da existência, como um fosso ou

lacuna de esquecimento em toda sua volta [...] é um homem sem passado (ou futuro), preso em um momento que não tem sentido e muda constantemente”. Essa história, “O marinheiro perdido” foi publicada em “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” e serviu de inspiração para Deborah esposa de Clive Wearing, escrever seu relato bibliográfico Forever today (Eternamente hoje). Clive, eminentemente músico e musicologista francês foi acometido por uma devastadora infecção no cérebro relacionada à memória ficando em situação muito mais comprometedora do que a descrita na história acima citada. Jimmie tinha uma duração de memória de aproximadamente meio minuto, enquanto Clive era de poucos segundos. Sua esposa descreve a situação vivida por Clive:

[...] sua capacidade de perceber o que via e ouvia estava intacta. Mas ele parecia incapaz de reter qualquer impressão sobre qualquer coisa por tempo maior que um piscar de olhos. De fato, quando ele piscava seus olhos se abriam para revelar uma nova cena. O que ele vira antes de ter piscado era totalmente esquecido. [...] algo parecido com um filme de má continuidade, o copo quase vazio, em seguida cheio (SACKS, 2007, p.186)

Sacks (2007) observa que além dessa incapacidade de preservar novas memórias, Clive sofria de uma devastadora amnésia retrógrada que apagava praticamente o seu passado.

Apesar de todos os comprometimentos, o grande milagre foi a descoberta de sua esposa Deborah, quando Clive estava no hospital, “desesperadamente confuso e desorientado”, as capacidades musicais que ele possuía, ainda estavam intactas. Déborah descreve o que descobriu ao apresentar-lhe algumas partituras:

[...] eu as segurei para Clive ver. Comecei a cantar um dos versos. Ele ouviu o tenor e cantou comigo. Tínhamos cantado mais um menos um compasso quando de repente me dei conta do que estava acontecendo. Ele era ainda capaz de ler música. Ele estava cantando. Sua conversa podia ser uma confusão que ninguém conseguia entender, mas seu cérebro tinha capacidade para música. [...] fiquei ansiosa para dar a notícia ao pessoal médico. Quando ele chegou ao fim do verso eu o abracei e cobri seu rosto de beijo. [...] Clive podia sentar-se ao órgão e tocar com as duas mãos no teclado, mudar registros, e isso com os pés no pedal, como se fosse mais fácil que andar de bicicleta. Subitamente, tínhamos um lugar para estar juntos, onde podíamos criar nosso mundo fora

daquele hospital. Nossos amigos vinham para cantar. Deixei uma pilha de partituras perto da cama, e os visitantes traziam outras músicas (SACKS, 2007, p. 200).

Sacks (2007) compreende a preservação praticamente perfeita das capacidades e memória musical de Clive. O autor constata que, ao ver as imagens filmadas no período de mais ou menos um ano em seguida à doença de Clive, se fez evidente a revelação intacta do pensamento musical e, também, das habilidades especiais da regência. O autor afirma que Clive não conseguia reter a maioria das memórias de eventos e experiências anteriores à sua encefalite, e questiona como ele retém seus notáveis conhecimentos musicais, sua capacidade de leitura a primeira vista, de tocar piano e órgão, cantar e de reger um coro com a mesma excelência do período anterior a doença.

Sacks (2007) se refere a descrição de Deborah sobre o “ímpeto” da música em sua própria estrutura.

Uma composição musical não é mera seqüência de notas: é um todo orgânico e coeso. Cada compasso cada frase emerge organicamente do que veio antes e indica o que virá a seguir. O dinamismo está embutido na natureza da melodia. E acima de tudo isso estão a intencionalidade de compositor, o estilo, a ordem lógica que o compositor criou para expressar suas idéias e sentimentos musicais. Estes também estão presentes em cada compasso e em cada frase(SACKS, 2007 p. 205- 206).

Seguindo a linha de pensamento de Sacks, consideramos que a música nos fornece estruturas e segredos e mesmo ouvindo-a de modo inconsciente, admitimos não ser, a música, é um processo passivo, mas intensamente ativo. Ouvir música envolve uma série de “inferências, hipóteses, expectativas e antevisões”. Quando uma melodia revive em nossa mente, ocorrem processos de “evocação, imaginação, recategorização, recriação”. Sacks (2007) lembra que o processo de lembrarmos uma nota por vez e as seqüências de notas que formam o todo, é semelhante ao que ocorre quando andamos, corremos ou nadamos: damos um passo ou uma braçada, e percebemos que cada um desses movimentos é parte indissociável do todo, da melodia cinética de correr ou nadar. É notável que quando tentamos nos conscientizar sobre cada

movimento, seja referente ao passo ou a braçada podemos perder o encadeamento, “a melodia motora”.

Pensando em Clive, concluimos qu,e para ele cantar, reger, tocar, não é uma atitude inteiramente racional e pensada. “Lembrar-se de uma música, ouví-la ou tocá-la é algo que ocorre inteiramente presente”. (Sacks, 2007 p.208)

De acordo com Sacks (2007) Clive, desde a encefalite, nada avançou considerando a sua amnésia retrógrada. Em alguns aspectos ele não está em lugar algum, muitas vezes está fora do tempo e do espaço. Não tem nenhuma narrativa interna, não leva uma vida comum como a maioria de todos nós.

Entretanto, só precisamos vê-lo ao teclado com Deborah para sentir que, nesses momentos, ele volta a ser ele mesmo e está plenamente vivo. Não pela lembrança das coisas que passaram de outrora. [...] É a posse, o preenchimento do presente, do agora, e isso só é possível quando ele está totalmente imerso nos sucessivos momentos de um ato. É o agora que faz a ponte sobre o abismo (SACKS, 2007 p. 209).

Um relato interessante que Deborah escreve:

É na familiaridade de Clive com a música e com seu amor por mim que ele transcende sua amnésia e encontra continuidade – não a fusão linear do momento após momento, mas uma continuidade baseada em alguma estrutura ou informação autobiográfica, mas é onde Clive como qualquer um de nós está finalmente, onde ele é quem é (SACKS, 2007 p. 209).

2.5.3 A Música em contexto terapêutico de pessoas portadoras de doença