• Nenhum resultado encontrado

Música e Iluminismo: consolidação da entidade/autoridade do autor na

No documento INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA (páginas 57-60)

Capítulo 2 – As relações entre as inovações tecnológicas em música e os

2.2 Meios e música: dinâmicas entre os paradigmas de autor e ouvinte e os

2.2.2 Música e Iluminismo: consolidação da entidade/autoridade do autor na

Figueiredo (2010, p. 23), ao abordar o surgimento e o desenvolvimento do conceito de autoria no Ocidente, explicita que, conforme Foucault (1992, p. 50), a atribuição de autoria de um discurso é uma “operação complexa que constrói certo ser racional a que chamamos o autor”. A noção de autoridade do criador remete à Antiguidade, ainda em Aristóteles, segundo o qual os autores possuem autoridade devido a sua virtude, fornecendo exemplos que devem ser seguidos pela emulação (CASTRO, 1982 apud FIGUEIREDO, 2010).

Porém, na Idade Média, por volta do ano 1300, “o compositor é tão artesão quanto o sapateiro” (LOWINSKY, 1964, p. 478). Nessa época, pouco valor de se atribuía à originalidade, o autor apenas transmite a palavra divina ou se limita a desenvolver aquilo que já está presente na tradição. Com o Renascimento, em um ambiente filosófico humanista, a postura se diferencia: “criar é fazer algo novo, algo que o mundo não tenha visto antes, algo fresco, original e pessoal” (LOWINSKY, 1964, p. 494).

Terry Eagleton (1990, p. 9) argumenta que as concepções de unidade e integridade da criação artística são lugares-comuns desde a Antiguidade Clássica. Porém, é com a ascensão econômica e política da burguesia que os conceitos estéticos começam a exercer um papel central e intensivo na construção da ideologia dominante. Conforme o autor, é no final do século XVIII que emerge “a curiosa a ideia da obra de arte como uma espécie de sujeito”. Apesar de recém-definido, trata-se de um sujeito. As pressões históricas que possibilitaram essa maneira de pensar de forma nenhuma podem ser rastreadas até a época de Aristóteles.

Nicholas Cook (2013, p. 39), se refere ao Iluminismo como

[...] o período durante o qual o modelo capitalista de produção, distribuição e consumo tornou-se completamente arraigado na sociedade; toda a Europa vivia um momento de urbanização, com uma grande parte da população emigrando da zona rural em busca de emprego na indústria, enquanto, no interior das cidades, as classes médias (ou a burguesia) desempenhavam um papel econômico, político e cultural cada vez mais relevante.

Nesse momento, a música distanciou-se do mundo e se tornou relacionada à expressão pessoal, ao indivíduo: isso é parte da construção da subjetividade burguesa. Cook afirma que Ludwig van Beethoven e o mito criado a sua volta refletem essas circunstâncias. Assim, “muitas das ideias mais profundamente arraigadas nas nossas reflexões sobre a música, hoje, remontem à efervescência de ideias que envolveram a recepção da música de Beethoven” (2013, p. 45).

Nesse ponto, a idade da razão – e paralelamente a ascensão da burguesia e da sua estética – transformou a música basicamente em uma música sinfônica. Esta tornou-se a elaboração de uma complexa harmonia, intimamente ligada às evoluções físicas sobre o som e suas características, aplicada a um número reduzido de timbres: os instrumentos musicais.

A evolução da técnica musical escrita, a partitura, é fruto da ascensão estética e social da Razão. A teoria que regia a composição musical tornou-se o sistema harmônico e racional que temos hoje. Socialmente, já no Iluminismo, esse sistema tendia a marginalizar as culturas musicais orais. Aceitava-se a noção de que havia um compositor genial que fazia música no papel, usando de toda a lógica do sistema da partitura como meio para a criação musical. Cabia ao intérprete recriar o escrito pelo autor da forma mais idêntica possível. Assim, “sujeito à autoridade do pedagogo musical (uma autoridade obtida novamente por empréstimo àquela do compositor), o ouvinte – ouvinte ‘comum’ – é firmemente situado no grau mais baixo da hierarquia musical” (COOK, 2013, p. 48).

A teoria da afinação e temperamento foi especialmente desenvolvida por autores do século XVIII na Alemanha. [...] Durante o século XIX, [...] quando um sistema cromático e enarmônico tonal expandido tornou-se o quadro de referência para a composição musical, as teorias generalizadas de afinações musicais foram desenvolvidas43 (RASCH, 2002, p. 193, trad. minha).

Nas culturas orais, a tecnologia disponível para perpetuação das tradições musicais é a memória biológica. De forma oral, a música é passada de geração à geração em um formato coerente com o seu meio, ou seja, em forma de temas, danças, rituais, etc. Com a ferramenta da escrita musical, também uma inovação tecnológica no tempo, autores passaram suas obras para o papel, levando consigo os ideais racionais de criação e perpetuação da obra de arte.

Assim, na cultura DJ, os paradigmas tanto harmônicos quanto timbrísticos são diferentes e não podem ser analisados sobre o mesmo foco que historicamente analisa-se a música sinfônica. Boa parte das noções sobre os conceitos de autor e ouvinte na sociedade ocidental foram construídas socialmente no período da ascensão da burguesia na Europa. E, assim, são justamente essas concepções que foram abaladas com o surgimento da cultura DJ.

A música da cultura DJ é marcada pela repetição, pela composição com base na contínua adição de sons uns sobre os outros (MCCLARY, 2004, p. 295; ENO, 2004, p. 129) e pela capacidade de criar uma nova música a partir de outra música, com as técnicas de sampleamento e reaproveitamento de sons previamente gravados (REYNOLDS, 2012, p. 462). Possui diferentes parâmetros que definem os paradigmas de autoria e de recepção/consumo da música. Trata-se de uma música construída com sequências de loops, a partir de um arsenal de batidas, padrões, samples e outros componentes. Tudo isso em sincronia rítmica na qual cada componente pode ser modificado com diversos efeitos sonoros capazes de: equalizar, fazer ecoar e reverberar, modular, aumentar ou diminuir afinação, entre outros.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

43 Do original: “Tuning and temperament theory was especially developed by eighteenth-century German

authors. [...] During the nineteenth century, when an expanded chromatic/enharmonic tonal system had become the frame of reference for musical composition, generalized theories of musical tunings were developed”.

Ouvintes, para além da pista de dança, se relacionam com os produtores de música e com a própria música, nesse caso o arquivo de música em formato digital, de forma diferente. Fazem contato via rede sociais com os DJs, possuem um perfil para apreciar e compartilhar música, baixam arquivos da internet, fazem suas seleções pessoais de música. Estaria, então, esse paradigma de autoria superado pelos DJs interlocutores desta pesquisa? Essa pergunta será respondida no próximo capítulo. Antes, observa-se o percurso que transformou o laboratório, onde antigamente se faziam gravações, em um estúdio caseiro, no qual o computador é a principal ferramenta de criação.

2.2.3 Do laboratório ao estúdio caseiro: dos cilindros ao DAW (digital audio

No documento INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA (páginas 57-60)