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Segundo os estudos de David Kalat (2005), era um costume do mercado cinematográfico alemão a realização de filmes épicos em duas partes. Para o autor, este processo de adaptação, canibalização e referência-cruzada não é um déficit de produção, muito menos um aspecto que deve ser repreendido, mas sim, trata-se de algo fundamental dentro da linguagem cinematográfica. Assim aconteceu com As Aranhas, Os Nibelungos e também com Dr. Mabuse. A segunda parte, intitulada como Dr. Mabuse, o Inferno do Crime (Dr. Mabuse, Inferno des Verbrechens, 1922) foi lançado alguns meses depois da primeira parte. Enquanto que, para Lang e Thea, a primeira parte era chamada de “um retrato do nosso tempo”, a segunda parte era para o casal “O Inferno característico de nosso tempo”. De acordo com

103 O jornal Gazeta de Notícias (RJ), publicou em 05 de novembro de 1926 uma pequena nota intitulada “Rudolf Klein-Rogge”. A nota afirmava que o conhecido ator alemão, célebre por seu papel como Mabuse, acabava de voltar para Berlim após uma viagem de oito semanas à região dos Bálcãs. A nota afirma também que o ator estava na companhia do diretor Jaap Speyer, que estava realizando um filme chamado Nas alcovas dos exploradores de escravas brancas. No fim daquele mês, o ator iria para Paris para atuar em uma co-produção entre Alemanha e França (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1926b).

104 No original: “a symptom of a Europe that was falling apart...a guiding force, a creator, if only in destruction…”.

105 No original: “I had in mind a monster that controls people. A monster that hypnotizes people and forces them to do things that they don’t want to do at all, to commit monstrous crimes. And afterward they have no idea of what they did”.

Lotte Eisner (1977), dois anos depois, Lang o descreveria como “um documento de seu tempo”.

Ainda que se pararmos para pensar, trata-se, na verdade de uma série de quatro filmes, ao invés de uma trilogia, Dr. Mabuse, o Inferno do Crime não é um filme em si mesmo, mas uma parte incompleta, cuja narrativa só faz sentido junto com a primeira. Ambas as partes foram concebidas e produzidas pela mesma equipe e, ainda que exibidas em momentos diferentes, a intenção sempre foi de que os filmes fossem vistos como um par, em que os espectadores da primeira parte ficassem curiosos o bastante para, um mês depois, retornarem para a exibição da segunda. Quando vistas em sequência, fica claro que o épico narrativo é apenas um filme longo, com quatro horas de duração.

O filme sofreu algumas alterações dos censores da época. Eles haviam decidido que as cenas em que Mabuse está bêbado e o climático final do tiroteio, antes da fuga e do enlouquecimento do personagem, poderiam constituir ameaça à segurança pública e à moralidade. A versão editada foi para a França e para a Inglaterra, onde os distribuidores trabalharam na tradução dos cartões para suas próprias línguas. Também na América, os distribuidores não quiseram gastar tempo e dinheiro reconstituindo os cortes, e o resultado foi, na verdade, uma massa narrativa incoerente nesses países. De acordo com Kalat (2005), a versão original foi considerada perdida durante muitos anos, banida pelos nazistas, mas foi, felizmente, recuperada em 1966106.

A UFA não apenas tinha em sua companhia os melhores diretores estrelas alemães, como também tinha o melhor o departamento de publicidade e propaganda. A serialização da história de Jacques, publicada pelo Berliner Illustrierte Zeitung foi programada para ser feita juntamente com algumas fotografias still do filme de Lang, seguindo a estratégia de marketing multimídia de Pommer. Segundo McGilligan (2013), os roteiros foram trazidos para a estreia do filme, decorados com as fotografias, autografados, encadernados em seda, e presenteados dos convidados mais ilustres. A estreia altamente publicizada de Dr. Mabuse, o jogador aconteceu em 27 de abril de 1922 no Ufa-Palast-am-Zoo. As duas partes do filme, que totalizavam quase 5 horas de exibição, tiveram que ser agendadas para duas

106 Infelizmente, não há maiores informações sobre como se deu a descoberta do filme, ou sobre seu processo de recuperação.

noites consecutivas. Publicações da época considerava no filme como “a mirror of the age”, “an archive of it’s time” e “a document of our time”. Cerca de dois meses depois da estreia, Walther Ratenau, respeitado ministro de Relações exteriores, democrata, homem de estado e judeu, foi assassinado por fanáticos de direita. Enquanto historiadores citam que o crime foi um dos eventos facilitadores da ascensão do nazismo, pesquisadores de cinema notam uma similaridade com o começo do próprio filme, em que um agente do governo é assassinado.

A Alemanha daquela época estava centrada em retratar uma série de monstros de todos os tipos: o Golem, o vampiro Nosferatu, o louco Dr. Caligari, etc. Contudo, uma das inovações de Dr. Mabuse foi o fato de ser o primeiro filme alemão da época a se passar totalmente em dias modernos. Para Kalat (2005), o final da segunda parte é outra manifestação surpreendente do chamado “O Princípio de Mabuse”. Para o autor, talvez existisse um grande poder trabalhando pela derrota de Mabuse e que, com certeza, não estava a cooperar junto com a polícia. O promotor Von Wenck não consegue capturá-lo, na verdade é Mabuse que, enlouquecido, não oferece mais resistência.

Enquanto Lang afirmava que teria deixado aspectos elementares do livro fora da adaptação fílmica, a maior parte do filme segue os eventos do livro, exceto no começo da parte um e ao final da parte dois. O Inferno do Crime começa exatamente onde O Jogador havia terminado. A Condessa Told havia sido raptada por Mabuse, enquanto o Conde se suicida depois de ter sido forçado a roubar em jogo de cartas, graças aos poderes hipnóticos do vilão. Ironicamente, o Conde só vem a conhecer Mabuse, enquanto psiquiatra, porque Von Wenck havia lhe aconselhado a pedir sua ajuda. Até que Von Wenck possa, finalmente, ir ao encalço do vilão, acontecem muitas mortes, suicídios e até mesmo um ataque a bomba ao seu escritório, a mando de Mabuse. A derrota do vilão só é possível porque o Comissário é praticamente imune a seus poderes hipnóticos.

No filme, Mabuse, o psiquiatra, consegue ganhar a confiança do promotor e o convida para assistir a uma performance de Sandor Weltmann, um mágico e hipnotizador. Weltmann nada é mais é que Mabuse disfarçado, utilizando-se dos seus poderes para subjugar os atos de Von Wenck. Este personagem aparece tanto no romance, quanto no filme, e em ambas as versões, o promotor consegue

perceber que os dois são a mesma pessoa somente um pouco antes de cair sob efeito hipnótico. No livro, no entanto, Von Wenck torna-se prisioneiro de Mabuse, enquanto o vilão consegue escapar de avião. No filme, esta versão final desaparece completamente.

Ao final do filme, o promotor, hipnotizado, dirige seu carro veloz e perigosamente em direção a um despenhadeiro e é resgatado segundos antes de cair. Igualmente, Alfred Hitchcock – que claramente prestou diversas homenagens a Lang ao longo de sua carreira –, filmou uma cena muito parecida em seu filme de 1934, O Homem que sabia demais (The man who knew too much) em que Peter Lorre, de M, faz o papel de vilão. Também Carol Reed se inspirou em Lang no filme O terceiro homem (The third man, 1949).

De acordo com Jansen (1969), assim como em A morte cansada e O gabinete do Dr. Caligari, uma única figura representativa é capaz de dominar tudo ao seu redor. É pela vontade de Mabuse que as pessoas agem, e é através de sua grande, onipotente e desconhecida organização criminosa que ele muda completamente a vida de pessoas que ignoram sua existência. Mabuse personifica todas as ameaças e perigos que não podem ser explicados. Ainda que se trate de um único indivíduo, ele permanece agindo como uma força anônima graças a sua habilidade em ter múltiplas identidades, que são capazes de penetrar em todas as camadas sociais e o permitem se esconder atrás de fachadas inocentes. Em suma, ele é retratado como uma ameaça cuja existência borra os limites da realidade, e sugere que perigosas forças sociais, emocionais e psicológicas possam existir debaixo de uma superfície de inocência.

Enquanto a Condessa Told é a heroína do livro de Jacques, na adaptação de Lang e Thea, ela tem menos significância. Essa, na verdade, é uma atitude atípica do diretor, pois em toda sua filmografia somos apresentados a mulheres dominantes e a homens de peso menor: Maria em Metropolis, Sonya em Espiões, Kriemhilde em Os Nibelungos, Friede em A Mulher na Lua, etc. Para Kalat (2005), a redução da importância da Condessa é na, verdade, uma questão relacionada à luta de classes. A Condessa nada mais é do que uma representação da aristocracia decadente e seu triunfo heroico no livro seria a vitória da antiga ordem vigente sobre o espírito revolucionário de Mabuse. Jacques, em seu livro, permite que Mabuse possa

transitar livremente entre as classes sociais. Uma vez que as classes mais baixas já estão mesmo falidas, Mabuse pode invadir o círculo das classes sociais mais altas. Lang teria nascido em um berço mais “plebeu” pois, apesar do relativo conforto em que viveu durante infância e juventude, foi uma criança filha da classe trabalhadora que fingia ser rica. Ao invés de enxergar o personagem como uma ameaça à aristocracia, Lang via seu vilão como uma ameaça à democracia. Consequentemente, a Condessa e o mundo que ela representa não derrotam Mabuse.

Para Jansen (1969), foi em um período de grande incerteza econômica que Lang realizou o primeiro Dr. Mabuse, e o qual ele também tenta retratar. Ele usa o personagem como símbolo de união de todos os fatores negativos da Alemanha naquele momento. Os surtos de violência são retratados como controlados e planejados por uma única figura, mesmo que aconteçam de uma forma aleatória. Toda a decadência bem como as atividades criminais estão ligadas entre si através da figura de Mabuse. Os problemas econômicos são provenientes também de sua fábrica de dinheiro falso. A manipulação que o personagem faz da bolsa de valores lhe dá crédito para suas flutuações erráticas. Seu poder hipnótico força o milionário Edgar Hull a apostar e perder todo seu dinheiro.

Ao final do segundo filme, apesar de inicialmente não anteciparem uma continuação, Lang e von Harbou deixaram aberta a possibilidade da sobrevivência de Mabuse, ainda que tomado pela insanidade. Uma década mais tarde, os censores nazistas fariam uma objeção contra aquilo que eles consideraram como um caráter subversivo presente no filme: não há a vitória da ordem sobre o caos, mas apenas a autodestruição do caos.

Aqui surge mais uma possível inverdade a respeito do diretor: segundo David Kalat (2005), o diretor soviético Sergei Eisenstein seria um grande fã do diretor alemão, e teria se encarregado de fazer uma reedição dos primeiros Mabuse. Ao invés de uma reedição mal cuidada, Eisenstein teria feito o melhor trabalho possível com o material que tinha disponível. O corte final de do diretor teria ficado insignificantemente diferente da versão original. Porém, esta história é mais uma falácia, pois, na época, Eisenstein era ainda um aprendiz de edição de Ester Shub, aprendendo a arte de remontar filmes estrangeiros para o mercado soviético. Na

verdade, as autoridades soviéticas teriam ordenado que Shub e sua equipe “corrigissem” os aspectos pré-revolucionários dos filmes russos e também os filmes estrangeiros. Eles teriam feito cortes significativos em Dr. Mabuse de modo a alterar o ponto de vista ideológico, reduzindo as duas partes a um único filme intitulado Putrefação Dourada (Gilded Putrefaction).

Segundo McGilligan (2013), no futuro, os críticos de cinema freqüentemente iriam comparar Lang e Eisenstein. Enquanto Hitchcock expressaria pouco entusiasmo pelo trabalho de Lang em entrevistas ao longo dos anos, o próprio Lang detestaria as comparações, sentindo que, no que diz respeito a filmes de suspense, os críticos tenderiam a defender o diretor inglês, que ao final de tudo, teria roubado algumas ideias suas. Por mais incrível que pareça, quando o diretor visitou o set de filmagem de Lang, demonstrou pouco desejo de realmente conhecer seu colega alemão. Já Eisenstein chegou em Neubabelsberg quando Lang estava fotografando uma vinheta que antecede a cena de dilúvio em Metropolis. O diretor queria que audiência experimentasse a explosão de águas subjetivamente, para que desse impressão daquilo que os atores estariam sentindo com impacto da pressão. Para alcançar esse efeito, ele havia amarrado a câmera a espécie de balanço, que replicava a sensação de uma concussão.

Ainda de acordo com McGilligan (2013), na biografia de Sergei Eisenstein, Maria Seton Escreveu que Sergei ficou genuinamente curioso pelos métodos que que diretor alemão usava para liberar sua câmera de ângulos estáticos. Ele e Lang teriam conversado brevemente sobre os prós e os contras de câmeras estáticas e câmeras em movimento. Lang teria planejado encontrar o diretor soviético novamente, mas não conseguiu, pois este deixou Berlim alguns dias depois.

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