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1. Da fotografia ao fotógrafo: antecedentes, expressões e contemporaneidades

1.3. Mais além: fotografia e imagem digital

Uma questão de primeira importância desde meados da década de 1990 mostra-se pertinentemente complementar à da fotografia-expressão: as implicações para o suporte fotográfico de um contexto sociocultural de predomínio da imagem digital (ou do que, no senso comum, costumou-se tratar como fotografia digital). Cabe talvez mesmo registrar a

21Seu modelo paradigmático difere sensivelmente de categorias semióticas mais consolidadas, como o proposto por Winfried Nörth e Lúcia Santaella (1998), classificatoriamente fragmentado nas categorias ​pré-fotográfico​("o universo do perene, da duração, do repouso e espessura do tempo"), o ​fotográfico ("o universo do instantâneo, lapso e interrupção no fluxo do tempo") e o ​pós-fotográfico ("o universo evanescente, em devir, universo do tempo puro, manipulável, reversível, reiniciável em qualquer tempo."). Distinguindo-os assim, entre si, de acordo com a presença ou ausência histórica da fotografia na cultura da imagem, tais autores utilizam-se de seis critérios de ​medium​, da fotografia como meio para uma mensagem comunicativa, naquele seu modelo triádico.

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pergunta-chave: esta outra fotografia ainda é fotografia? Rouillé ( ​2009​) mesmo discorre a respeito do fenômeno contemporâneo da produção (e reprodução) da imagem digital:

É eliminado o sistema químico negativo-positivo, que é a base da fotografia e de sua reprodutibilidade, em prol de um sistema digital onde o arquivo-imagem, produto de algoritmos e de cálculos, acessível por meio de um computador e de um programa específico, não tem mais ligações com a realidade material. De um sistema ao outro, o mundo das imagens capotou. (Roui​llé, 2009)

Em geral, tais imagens digitais são tratadas na literatura como imagens sintéticas. Vilém Flusser (2017) as denomina ​imagens técnicas​, uma vez que o caráter tecnológico não diz respeito apenas ao dispositivo envolvido, mas à própria natureza imagética que altera o curso das transformações sociais em sua interação com as imagens. "Trata-se de uma revolução cultural e não apenas de uma nova técnica."

Flusser (2017) trata como "imagens da imaginação" a fatura representacional resultante do processo de criação de objetos, corpos, marcados imageticamente. Para ele, o modo mais atual de uso do recurso imaginativo humano, que se associa inexoravelmente ao digital, em nada se assemelha ao gênero de imaginação primeiro que nos acompanha desde os registros imagéticos pré-históricos.

O primeiro tipo de imagens faz a mediação entre o homem e seu mundo; o segundo entre cálculos e sua possível aplicação no entorno. O primeiro significa o mundo; o segundo, cálculos. O primeiro é cópia de fatos, de circunstâncias; o segundo, de cálculos. Os vetores significativos das duas imaginações indicam direções opostas, e as imagens do primeiro tipo devem significar coisas diversas das do segundo. Essa é propriamente a razão por que a crítica tradicional nesse campo passa ao largo das novas imagens. (Flusser, 2017) Desse modo, para Flusser (2017), usar a nova imaginação para sintetizar o cálculo de uma imaginação antiga não consome os potenciais intrínsecos das imagens técnicas digitais. Dentre as possibilidades dadas pelo cálculo, seria o ​inesperado que se mostra mais inovativo, enquanto uma versão paralela e alternativa às imagens do mundo dos objetos também é contemplada no conjunto das possibilidades.

Em suma, a nova imaginação permitiria a criação de imagens miméticas, mas, mais além, de todo tipo de variação ou distorção de uma imagem “real”, e seria precisamente

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nesta característica que reside sua ampliação significante. Por conseguinte, as novas possibilidades de criação de imagens seriam mais abrangentes do que antes da revolução digital porque este novo tempo apaga no espaço virtual as objeções às circunstâncias imaginativas ("mesmo que essas circunstâncias sejam bem​abstratas​") , aproximando-as da22 criação de faturas antes impossíveis, alterando a própria significação da imaginação humana. (Flusser, 2017)

As discussões a respeito do digital adentram hoje, em geral, um campo mais amplo das visualidades. Estaríamos diante, como afirma Arlindo Machado (2001), do que ele considera ser uma "estética pura", completa independência da constituição de imagens em relação ao mundo. "O ​realismo conceitual do sistema numérico, malgrado por ser atualizado em imagens que lembram o realismo fotográfico, não mais funciona segundo os cânones do código fotográfico. Agora se representa o que se sabe do objeto e não o que se vê."

O caráter conceitual do real simulado digitalmente, apesar de estranho à tradição ocidental na produção de imagens, nos força, curiosamente observa Machado (2001), à lógica de tradição oriental da "representação como ​diagrama estrutural do objeto e a imagem como visualização do ​conceito​ que forjamos desse objeto." 23

As mandalas orientais são exatamente isso: um esquema pictórico do que sabemos sobre o mundo e não o que vemos nele através da modelação luminosa. Num certo sentido, as imagens do sistema digital são mandalas conceituais, destituídas entretanto do fundo místico das mandalas orientais, ou então informadas pela verdadeira mística de nosso tempo: a ciência. (Machado, 2001)

Diante dos desafios práticos do novo contexto, em que os aspectos tecnológicos não são facilmente deixados de fora do processo criativo, Julio Plaza e Mônica Tavares (1998) sistematizaram uma compreensão acerca das poéticas possíveis ao digital. Segundo os autores, estas práticas são essencialmente coletivas, no entendimento de que "os participantes são tanto o artista quanto o conjunto estruturado pelos ​hardwares e ​softwares que viabilizam a produção de novas representações." Cada etapa da criação, constitutiva dos novos meios, é um acontecimento rotineiro de intertradução (entre cores, formas e qualquer outra linguagem) que não se apaga; permanece como memória da máquina.

22 Grifo do autor. 23 Grifos do autor.

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O indivíduo criador articula "conceitos" que representam os modelos mentais dos processos necessários para a produção das imagens. O número e a linguagem da máquina se apresentam como intermediadores entre o modelo mental e a imagem produzida, transcodificando em forma de imagens as rotinas contidas no interior da máquina. Esta nova forma de gerar a imagem digital se situa na dialética entre uma ideia mental, visual e o raciocínio matemático. O artista não só mantém uma relação sensorial com o produto que está a realizar, mas também, e sobretudo, uma relação conceitual. (Plaza; Tavares, 1998)

Diante disto, Plaza e Tavares (1998) valem-se de três métricas de procedimentos poéticos - quanto à utilização dos meios, quanto à pragmática e quanto à produção de sentidos - para elencar os principais processos de composição em obras que utilizam os recursos digitais: a hibridização (por combinação imediata de linguagens diversas com as imagens); a relação de complementação entre os artistas e os meios eletrônicos à frente das questões pragmáticas ("A máquina viabiliza aquilo que o idealizador sugere. O homem é quem propõe as significações. A máquina dilata a atividade de invenção."); por fim, a abertura para uma interação mais ativa do observador com a obra, considerando uma acentuação maior no processo ante tão apenas o resultado.

Retornando à proposta teórica de André Rouillé ( ​2009​), resta mencionar a virtualidade do ​alhures​: "lugar sempre inassinalável, onde eu estou ficando, aqui e agora, no meu lugar atual", uma onipresença permanente que mistura "de múltiplas e complexas maneiras os espíritos e os corpos." O corpo, antes ​moldado​, pela virtualidade do alhures, pode agora ser ​modulado​.

Embora possamos acaso (não necessariamente) imprimi-las em papel, sua superfície de aparecimento são as telas do computador, e, como área de circulação, as redes. Da pintura à fotografia e, depois, desta para as imagens digitais, as imagens diminuíram de matéria, ampliaram-se os lugares de apresentação, e aumentaram consideravelmente as velocidades de circulação. A fotografia analógica tem como territórios os álbuns, os arquivos das galerias ou suas paredes (mas não os livros ou a imprensa, que dependem de uma aliança entre a fotografia e a tipografia). Ao contrário, a fotografia digital é desterritorializada: instantaneamente acessível em todos os pontos do globo via redes de internet ou correio eletrônico. (Rouil ​lé, 2009)

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