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on peut bien dire, la majorité des Brésiliens pensent que les Haïtians sont [int.] sont des hommes que non// que non sabe lire et escribir.

Esquecimento e silêncio como recursos de reconstrução identitária de imigrantes haitianos no Rio de Janeiro

Imigrante 6: on peut bien dire, la majorité des Brésiliens pensent que les Haïtians sont [int.] sont des hommes que non// que non sabe lire et escribir.

escrever)

Segundo os informantes, o vocábulo gentílico “haitiano”, aliado ao sintagma nominal “o imigrante”, evoca a ideia de uma população que sofreu ao longo de sua história e que, por isso, fugiu do país, com ênfase no verbo “fugir”, representada pelas letras maiúsculas. Além desse passado trágico, o povo não seria alfabetizado, conforme a segunda resposta [la majorité des Brésiliens pensent que les Haïtians sont [int.] sont des hommes que non// que non sabe lire et escribir.].

No quadro abaixo, transcrevemos um trecho de uma conversa que ocorreu entre a pesquisadora, três haitianos e cerca de dez brasileiros. B1 e B2 são brasileiros que, no início da conversa, estavam explicando que alguns haitianos desejavam retornar para o Haiti, quando se evoca o frame explicitado nos fragmentos acima, por meio da menção à nacionalidade dos imigrantes:

(30/ 06/ 2015)

B1- [...] Porque (2.0) TEM preconceito [inint.], *entendeu*? Tinha// emprego// principalmente homem, entendeu? Por conta de tudo [...] que falava às vezes em voltar, num voltar aqui mais e tal//

B2- mas isso acontece, né, cara? Isso acontece. Isso você vai encontrar em qualquer lugar do mundo. Não é só aqui no Brasil.

B1- Os cara só chamavam ele de africano. Ele não gostava que chamava ele de africano. É haitiano.

P- é que muita gente acha que o Haiti fica na África// B1- é, é, pensa que// acha que é.

P- (para um haitiano) Sabia disso?// H1- O Haiti é longe longe da África.//

P- Mas você sabia que tem gente que acha que o Haiti fica na África?

H1- É, é, é por isso que tem algumas COISAS, algumas notícias ruim que passa lá no África, tem um lugar que se chama TAITI. Tem algumas COISA que passa lá, a gente penso que é Haiti//

P- uhum.

H1- é coisas ruim como como MISÉRIA muito lá. Não é Haiti, é TAITI, lá na África. Longe, longe, longe, longe. Dezessete horas em avião.

Fragmento de entrevista 2- Trecho de uma aula na escola da construção civil.

Na conversa acima, o imigrante faz uma associação do país Haiti com Taiti [É, é, é por isso que tem algumas COISAS, algumas notícias ruim que passa lá no África, tem um lugar que se chama TAITI. Tem algumas COISA que passa lá, a gente penso que é Haiti//] e atribui à semelhança da palavra a causa de haitianos serem associados à miséria [é coisas ruim como como MISÉRIA muito lá. Não é Haiti, é TAITI, lá na África. Longe, longe, longe, longe. Dezessete horas em avião.].

De acordo com esse informante, o campo semântico ligado ao frame do Haiti seria, de fato, característica do país africano. No entanto, nas entrevistas com outros haitianos, na pesquisa etnográfica e de acordo com a

informação comumente veiculada pela mídia, esses problemas são observados no próprio território haitiano. Evidentemente, não é possível afirmar que o informante tenha encontrado uma maneira de repassar para a África o frame de seu país conscientemente, ou se ele, de fato, acredita que o senso comum confunda Haiti com Taiti. Apesar disso, acreditamos que o imigrante, como parte do processo de reconstrução identitária, tenha interesse em apagar as associações negativas relativas ao seu local de origem, para reinventar sua identidade coletiva e, assim, procurar esquecer os atributos que lhe conferem estigma.

No que diz respeito à memória, cabe lembrar que esta é sempre suspeita para a história (NORA, 1993, p. 267, apud MENIN, 2015, p. 4). É necessário desconfiar da memória e distanciá-la para se trabalhar com esse objeto em fontes orais, por isso é importante levar em consideração o estudo bibliográfico da cultura em questão, da história desse povo, com o apoio etnográfico. O fragmento de entrevista abaixo ilustra um momento em que um imigrante recorreu à falta de memória como forma de reconstrução identitária:

(44) P: Se você se lembrar, e se você puder me contar, claro, me conta um dia triste no Brasil. (45) I1: ah, mas, que eu lembro tem VÁRIOS, tem vários dias que eu fiquei triste aqui.

(46) P: Me conta alguma coisa que você viveu e que você ficou triste. Se você sofreu preconceito por ser estrangeiro ou por ser negro... não sei.[...]

(47) I1: mas o preconceito (2.0) eu sofri isso MUITO aqui mesmo, mas às vezes eu não lembro. Eu não lembro quando foi, não lembro essas coisas, mas que eu já sei que// o único preconceito que eu sofri aqui

que eu lembro foi num ônibus.

Fragmento de entrevista 3: Informante 1 tem 27anos, homem, residente há 4anos no Brasil. (out/2016)

O informante começa a contar sua história dizendo que se lembra de muitos momentos tristes [ah, mas, que eu lembro tem VÁRIOS, tem vários dias que eu fiquei triste aqui.] No entanto, quando pedimos para contar-nos, ele não se lembra mais dos dias tristes, apesar de afirmar que sofreu muito [eu sofri isso MUITO aqui mesmo, mas às vezes eu não lembro.]. Marcado pelo truncamento do período [mas que eu já sei que// o único preconceito que eu sofri], o discurso se reorienta quando o entrevistado decide “lembrar-se” de um episódio em que fora vítima de preconceito, todavia antecipando à interlocutora que não tem interesse em continuar com esse tópico, apesar de aceitar o pedido e contar um caso [o único preconceito que eu sofri aqui que eu lembro foi num ônibus.].

A memória, conforme escrito por Dadalto e Girão (2013), é uma construção histórica, sociocultural, psicanalítica, coletiva e individual. No mesmo sentido, para Le Goff (1996, p. 477, apud MENIN, 2015), a memória é um elemento essencial da identidade social ou coletiva, cuja busca é uma das atividades

fundamentais dos indivíduos e das sociedades. Portanto, a construção da memória é constantemente ligada à

construção de identidades. O esquecimento e o silêncio também representam uma estratégia de negociação de identidades, conforme o exemplo a seguir.

(29) P: Foi difícil pra você viajar para o Brasil e depois foi difícil pra você viajar para os Estados Unidos? (30) I2: sim, os dois foi muito difícil e (2.0) mas (pausa longa) tinha muita dificuldade. E eu não sei como explicar, eu não sei.

Fragmento de entrevista 4: Informante 2. Homem, 25anos. Residiu durante 3anos no Brasil. Mudou-se para Miami. (out/2016)

Como se pode perceber, após uma pausa média e uma longa, o informante opta por não relatar os momentos difíceis que vivenciou na migração. Da mesma forma, o informante abaixo recorre ao silêncio quando confrontado sobre os motivos que o levaram a deixar o Brasil.

(27) P: E por que você escolheu os Estados Unidos? (28) I3: [Pausa longa].

Fragmento de entrevista 5- Outubro/ 2016. I3 é homem, viveu 1 ano e 10 meses no Brasil e atualmente mora nos Estados Unidos.

O silêncio verificado em alguns fragmentos narrativos pode ser considerado uma tentativa de esquecimento ou de apagamento das marcas de identidade associadas a estereótipos negativos. O informante abaixo deixa clara a sua indisposição para falar sobre o preconceito vivenciado no Brasil, verificável pela ênfase na palavra “CLARO” e pela declaração negativa reiterada que remete ao silêncio, com que abriu o seu turno [eu não preciso nem falar [2.0] de ser negro, de ser haitiano.]. O silêncio aparece como uma marca paralinguística recorrente neste par conversacional ([2.0]), contribuindo para o efeito de sentido desejado pelo imigrante. Após uma sucessão de cinco pausas médias e duas pausas longas, o imigrante declara: [eu não quero falar sobre disso.].

(23) P: Você pode me contar alguma vez que você sofreu preconceito por ser haitiano ou por ser negro? (24) I4: eu não preciso nem falar [2.0] de ser negro, de ser haitiano. [pausa longa], CLARO que eu vou sofrer

várias vezes preconceito, várias vezes, nem precisa nem falar. Isso aqui eu não preocupa sobre disso. [2.0] é

que você já sabe que negro, e de ser haitiano, é ser [pausa longa] muito preconceito [2.0], muito. Várias vezes.

Mas [2.0] eu [2.0] eu não quero falar sobre disso.

Fragmento de entrevista 6- Outubro/ 2016. I4 é homem, 27 anos e vive há 3 anos e meio no Brasil.

Enquanto um informante recorre ao silenciamento para demonstrar sua insatisfação pelo tópico da entrevista, o outro se cala diante do reconhecimento do estigma que sofre, recorrendo a gestos e, finalmente, falando muito baixo, como se pode ler na transcrição abaixo.

(125) : E, vem cá, você já sofreu preconceito por ser haitiano? (126) I7: uhm?

(127) P: Preconceito, por ser haitiano? (128) I7: uhum.

(129) P: Já sofreu, prejugé? Já?

(120) I7: (acenou que sim com a cabeça). (121) P: Muito ou pouco?

(123) P: Muito? Deve ser difícil, né? (124) I7: *difícil. Difícil*

Fragmento de entrevista 7- Junho/ 2015. I7 é homem, de aproximadamente 30 anos, e estava há oito meses no Brasil, no momento da entrevista.

O informante 4, no par conversacional abaixo, faz uma pausa longa ao tentar responder nossas indagações sobre o futuro e uma pausa média após o advérbio de tempo [Hoje, amanhã [2.0] não sei.]. Neste caso, o silêncio pode ser uma estratégia de tempo para pensar em quais identidades ele deve trazer para a interação e, após hesitar, decide pela sua indefinição.

(35) P: E você pensa em ficar no Brasil pra sempre, assim, morando?

(36) I4: Não sei ainda. Não sei [pausa longa]. Não sei o que pode acontecer o futuro. Hoje, amanhã [2.0] não sei.

Fragmento de entrevista 8- Outubro/ 2016. I4 é homem, 27 anos e vive há 3 anos e meio no Brasil.

Finalmente, no caso do imigrante 6, a negação aparece como uma estratégia para o novo projeto de identidade, conforme podemos verificar no excerto abaixo:

(45) P: Quand vous etiez arrivé au Brèsil, est-ce que vous aviez eu des problèmes, des dificultes, au Brèsil? (Quando você chegou ao Brasil, você teve dificuldades no Brasil?)

(46) I6: je n’ai pas aucune problème avec les Bresiliens, les Bresiliennes. Je vivais ma vie tranquillement, rien a (reprocher). Felicitations, pour les Bresiliens, Bresiliennes!

(Eu não tenho nenhum problema com os brasileiros, as brasileiras. Eu vivia minha vida tranquilamente, nada a (reprovar). Felicitações, para os brasileiros, brasileiras!)

(47) P: Mais, est-ce que il’ y a des choses que vous avez pensez avant de voyager au Brèsil, sûr les Brasiliens, sûr le Brèsil et que, quand vous avez vécu deux ans au Brésil vouz aves changé votre mentalité?

(Mas, há coisas que você pensava antes de viajar ao Brasil, sobre os brasileiros, dobre o Brasil e que, quando você viveu dois anos no Brasil você mudou a sua mentalidade?)

(48) I6: dans à mon avis, rien le peut me changer parce que j’ai déjà un objectif, ok? Mon objectif est déjà se// arriver à la perfection. Ok?

(Na minha opinião, nada pode me mudar porque eu já tenho um objetivo, ok? Meu objetivo já é se // chegar à perfeição. Ok?)

(49) P: Est-ce que vous pouvez me raconter un jour que vouz avez souffri prejuger, ou un jour difficile pour vous au Brésil?

(50) I6: no, je ne (souffri) pas la prej//la prejugé. Mais pour moi la prejugé n’est n’est n’est pas une chose importante. Les gens que fasse eh la prejugé n’a rien comme exemple pour le peuple.

(não, eu não (sofri) o pre// o preconceito. Mas para mim, o preconceito não é não é não é uma coisa importante. As pessoas que fazem eh o preconceito não têm nada como exemplo para o povo.)

Fragmento de entrevista 9- Outubro/ 2016. I6 é homem, 29 anos, viveu 2 anos e 9 meses no Brasil e atualmente mora nos Estados Unidos.

À primeira pergunta, se o imigrante teve dificuldades em seus primeiros dias no Brasil, o informante responde que não [je n’ai pas aucune problème avec les Bresiliens, les Bresiliennes. Je vivais ma vie tranquillement, rien a (reprocher)], recorrendo à reiteração da negação [ne/ pas/ aucune], dizendo que vivia tranquilamente e que não há nada a reprovar. Em seguida, perguntamos se, após a experiência neste país, ele mudou alguma opinião sobre a sociedade de acolhimento, ao que responde com uma asserção: [dans à mon avis, rien le peut me changer parce que j’ai déjà un objectif, ok?]. Se o imigrante afirma que nada pode mudar a sua opinião, implicitamente pode-se compreender que houve circunstâncias nas quais ele poderia repensar suas crenças sobre o Brasil, caso não tivesse um objetivo anteriormente definido.

Na sequência, perguntamos ao entrevistado se ele teria sofrido preconceito, ao que responde negativamente [no, je ne (souffri) pas la prej//la prejugé.]. Em seguida, reitera [n’est n’est n’est pas] que o preconceito não é algo importante [Mais pour moi la prejugé n’est n’est n’est pas une chose importante.] e que as pessoas preconceituosas não podem servir de exemplo para o povo [Les gens que fasse eh la prejugé n’a rien comme exemple pour le peuple.]. Semelhantemente à resposta anterior, o informante sugere, implicitamente, que não se deve dar importância ao preconceito, levando-nos a crer que a sua negação é constituinte do seu processo de reconstrução da identidade.

Como os exemplos demonstraram, além das pistas linguísticas materializadas nas escolhas lexicais, na reiteração de ideias e na repetição de palavras, os elementos paralinguísticos também agregam sentidos nos discursos analisados. Dentre eles, a hesitação, as pausas e o silêncio contribuem para o projeto de esquecimento dos símbolos culturais coletivos de fracasso e de sofrimento, rumo a construção de novas identidades pós- migração.

Referências

COSTA, D. Negociação de identidades e formação de novas representações sociais em narrativas de migração: uma proposta metodológica. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem)- Faculdade de Letras. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 280p. 2018 (no prelo).

DADALTO, M.; GIRÃO, I. Narrativas da migração de retorno. In.: Simbiótica. Espírito Santo: UFES, dez/2013.

GAVIRIA MEJÍA, M. Sonhos que mobilizam o imigrante haitiano: biografia de Renel Simon. Lajeado: Univates, 2015.

LAKOFF, G; JOHNSON, M.. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

MENIN, A. Imigrantes (in)visíveis? Memória, representação e identidade de haitianos, ganeses e senegaleses em Caxias do Sul – RS entre 2010 e 2014. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015.

Índice de sinais de transcrição das entrevistas: I: informante.

P: pesquisadora.

Negrito: destaque do fragmento.

Itálico: palavra estrangeira, code-mixing. [2.0]: pausa média.

[Inint.]: trecho ininteligível.

// ou /: truncamento de oração com novo tópico ou truncamento de sintagma com retomada do tópico. CAIXA ALTA: aumento de volume da voz, ênfase.

{abc}: Fragmento originalmente escrito, via chat. *abc*: diminuição da voz, sussurro.

[abc] : sobreposição de turnos [abc]