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Maleabilidade das Normas de Direitos Fundamentais

5. ESPECIFICIDADES DAS ALTERAÇÕES INFORMAIS DA CONSTITUIÇÃO

5.1 Maleabilidade das Normas de Direitos Fundamentais

Conforme vimos anteriormente, a Maleabilidade não é uma exclusividade das normas de Direitos Fundamentais, sendo uma característica presente em diversas outras normas constitucionais. Em síntese, a maleabilidade decorre da linguagem utilizada no texto constitucional (enunciados normativos deliberadamente sintéticos e com significado amplo); da sua abertura a conceitos extrajurídicos; e da sua estruturação como normas-princípio (formato da maioria das normas de Direitos Fundamentais).

5.1.1 Linguagem sintética e ampla

Vimos189 também que a Constituição é, antes de tudo, um documento político que utiliza uma

linguagem sintética e ampla. Em algumas seções da Magna Carta, em decorrência do caráter técnico de seu conteúdo, a linguagem do texto constitucional pôde ser mais precisa e jurídica, como por exemplo: Da Organização do Estado (Título III), Da Organização dos Poderes (Título IV), Da Tributação e do Orçamento (Título VI). Em outras seções, com especial

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destaque para os Direitos Fundamentais (Título II), a linguagem utilizada foi pouco técnica, ficando tais dispositivos repletos de termos vagos, coloquiais e ambíguos.

Termos “vagos” são aqueles cujo conteúdo é impreciso, nebuloso, mal definido, incerto, indeterminado, ou seja, um termo com pouco sentido denotativo190191. O uso de um termo vago requer sempre uma explicação complementar para delimitar melhor seu sentido192. Ocorre que, tal explicação não existe no texto constitucional, de modo que a determinação do sentido dos termos “vagos” acaba sendo tarefa do intérprete, de modo que um mesmo enunciado pode revelar diferentes normas. Exemplificativamente, a “expressão da atividade artística” (art. 5º, IX) é um termo vago.

Um termo “ambíguo”, por sua vez, tem sentido conotativo193 em excesso, ou seja, ainda que

seu significado seja preciso (e nem sempre é), bem determinado e delimitado, ele comporta múltiplos significados. Uma frase bem construída tende a evitar o efeito da ambiguidade, uma vez que os demais significados (que não aquele objetivado pelo enunciador) ficariam deslocados. Ocorre que nem sempre os enunciados constitucionais foram elaborados com tamanho rigor, sendo vários os exemplos de ambiguidades no texto da Constituição, que devem ser sanados por meio da interpretação. Por exemplo, a expressão “no último caso” (art. 5º, XII) pode tanto significar “a ocorrência do último elemento citado anteriormente” quanto significar “como último recurso” (o que altera substancialmente o sentido do referido inciso).

190 Apesar da eventual dificuldade para a determinação de um termo vago, isso não quer dizer que a linguagem

permite uma fluidez absoluta com relação aos significados, pois existem limites. Celso Antônio Bandeira de Mello aposta a existência de uma zona de certeza positiva (“dentro da qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra”) e uma zona de certeza negativa (“em que seria certo que por ela não estaria abrigada”), e conclui que “as dúvidas só tem cabida no intervalo entre ambas”. Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de.

Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1996. Pág. 29.

191 Luís Alberto Warat , por sua vez, apresenta uma metáfora para exemplificar a “vagueza”: É vago o termo que

“[...] apresenta uma zona de luminosidade (a composta pelos termos onde não existe nenhuma dúvida em relação à inclusão na classe); uma zona de obscuridade (a composta pela classe dos objetos ou situações que, com toda certeza, não entram na extensão do termo); e uma zona cinzenta ou de penumbra, onde existem legítimas dúvidas se o fenômeno, objeto ou exemplar é suscetível de ser chamado de um modo ou outro”. Luís Alberto Warat apud SILVA, Roberto Baptista Dias da. Manual de Direito Constitucional. Barueri, SP: Manole, 2007. Pág. 53.

192 Todo termo detém algum grau de vagueza, que pode ser solucionada conforme o contexto, mas, como aponta

Celso Antônio Bandeira de Mello, nem as expressões vagas “ao serem confrontados com o caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a aplicabilidade ou não do conceito por elas recoberto. Algumas vezes isso ocorrerá. Outras

não”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo:

Malheiros, 1996. Pág. 22.

193 Ainda de acordo com Luís Alberto Warat, a ambiguidade “se apresenta quando um mesmo termo tem mais de

um significado”, “quando sob um mesmo rótulo se agrupam características conotativas basicamente diferentes, impossíveis de precisar, fora do contexto, dada a plurivalência de seus núcleos significativos”. Luís Alberto Warat apud SILVA, Roberto Baptista Dias da. Manual de Direito Constitucional. Barueri, SP: Manole, 2007. Pág. 53.

Por fim, um termo “coloquial” é aquele que não é técnico. Eis que a função da linguagem técnica é evitar a vagueza e ambiguidade, consolidando o significado de um determinado termo. O uso da coloquialidade, além de reforçar a possibilidade de termos vagos e ambíguos, não utiliza os termos pré-determinados, sujeitando o enunciado às variações típicas de qualquer linguagem viva, cujos sentidos modificam-se conforme o tempo, local, origem dos enunciadores etc. Por exemplo, “durante o dia” (art. 5º, XI), não é utilizado de maneira técnica, o que representaria um período de 24 horas, mas sim de maneira coloquial, cujo significado é o período do dia iluminado pela luz do sol, em oposição ao período da noite.

Em decorrência da linguagem utilizada, a fixação das normas de Direitos Fundamentais proporciona (e requer) um amplo espaço para sua determinação, de modo que o real sentido de um Direito Fundamental não é sempre unívoco.

5.1.2 Abertura das Normas de Direitos Fundamentais

Uma vez que a Constituição é um documento que visa regulamentar a vida jurídica, política e social do Brasil, suas normas fazem obrigatoriamente referências a valores e conceitos externos a ela, por exemplo: vida, liberdade, igualdade, segurança (art. 5º, caput). Ocorre que, uma vez inseridos na Constituição, tais valores e conceitos extrajurídicos passam a ter o sentido que é fixado pela Constituição, o que pode ser ligeiramente diferente do seu sentido coloquial. Nas normas de Direitos Fundamentais, tal confluência de valores e conceitos de fora para dentro da Constituição, e vice-versa, ganha especial relevo, uma vez que o conteúdo de tais Direitos Fundamentais são essencialmente políticos e filosóficos, ou seja, mais maleáveis do que os conceitos estritamente jurídicos.

Ainda que os conceitos extrajurídicos fossem claramente determinados e bem definidos (e em muitos casos não são), eles estão sujeitos a alterações de sentido conforme a evolução das áreas em que se enquadram. Exemplificativamente, com a evolução tecnológica, o “sigilo da correspondência” (art. 5º, XII) passa a abarcar também os e-mails (correspondência eletrônica pouco desenvolvida em 1988), enquanto o “sigilo das comunicações telefônicas” incorpora as comunicações diretas via rádio com tecnologia iDEN (Integrated Digital Enhanced Network), à exemplo de rádios Nextel e similares.

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Para lidar com esta abertura é necessária a interpretação evolutiva (Item 3.4) de algumas normas de Direitos Fundamentais.

5.1.3 Normas-Princípio

Em sua ampla maioria, as normas instituidoras dos Direitos Fundamentais são estruturadas como normas-princípio, ou seja, não são aplicáveis mediante subsunção, mas dependem de ponderação ao caso concreto (conforme Item 4.3.2). Em alguns casos mais raros, as normas instituidoras dos Direitos Fundamentais têm estrutura de normas-regra, porém sempre em combinação com normas-princípio, ou seja, uma delimitando a outra. Por exemplo, o inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal contém ambos os tipos de normas, comportando uma norma-regra quando veda a censura ou licença, porém refletindo uma norma-princípio ao prever a liberdade da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação: sendo o Direito Fundamental da liberdade de expressão decorrente da combinação de ambas as normas. Em suma, a estrutura das normas-princípio é um elemento essencial dos Direitos Fundamentais, o que resulta na indeterminação do conteúdo de tais Direitos, uma vez que a estrutura das normas-princípio impõe direitos e deveres prima facie, cujo conteúdo somente é plenamente definido após a ponderação, o que varia caso a caso.

5.1.4 Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais

Apesar da indeterminação do conteúdo dos Direitos Fundamentais, assim como outras normas-princípio, eles têm um núcleo essencial intangível com estrutura de norma-regra (ver Item 1.3.4). É importante destacar que os Direitos Fundamentais têm dupla dimensão: dimensão negativa (abstenção do Estado em interferir em seu usufruto, exceto se for em sua defesa); e dimensão positiva (que dependem da atuação Estatal para sua efetiva realização).

Antes de prosseguir, faremos uma ressalva: não se sustenta o entendimento de que existem direitos com dimensão meramente negativa, visto que todo Direito Fundamental depende, em alguma maneira, da atuação estatal para produzir efeito. Ocorre que, se para os Direitos Sociais a dimensão positiva é bastante visível, o mesmo não é tão claro com relação aos chamados direitos de primeira geração, como as “liberdades individuais” e os “direitos

políticos”. Mas, como aponta Virgílio Afonso da Silva194, trata-se de uma distinção jurídico-

empírica e não jurídico-analítica. Os direitos de primeira geração não se resumem à mera abstenção estatal e também dependem de ação positiva, por exemplo, o direito ao voto depende da existência de um sistema eleitoral ativo, assim como o direito à propriedade depende da existência de um sistema policial e judiciário que a proteja. Por se tratarem de direitos cronologicamente mais antigos, todas as estruturas para a atuação estatal positiva a eles relacionadas já estão prontas, enquanto as estruturas necessárias para a concretização de outros direitos, como os Direitos Sociais (educação, saúde, previdência, por exemplo) ainda estão em construção, ficando mais evidentes. Em suma, trata-se apenas de uma distinção fática e temporal, sendo que todos os Direitos Fundamentais têm dupla dimensão positiva e negativa.

Retomando nosso tema: A margem de determinação de sentido de um Direito Fundamental fica limitada por este núcleo essencial e qualquer sentido que fira o núcleo essencial será

inconstitucional. Sendo que, no caso da dimensão positiva dos Direitos Fundamentais, a

omissão do Poder Público em garantir seu mínimo existencial configura uma afronta ao núcleo essencial deste Direito, o que também legitima a intervenção judicial (para tal, a própria Constituição previu a existência da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, o Mandado de Injunção e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).

Em suma, o conteúdo essencial de um Direito Fundamental, em sua dimensão negativa, é um limite à determinação do sentido, e, em sua dimensão positiva, demanda uma atuação do Poder Público em garanti-lo.