• Nenhum resultado encontrado

A censura é tema recorrente para os escritores deste período, é claro. É o modo como a ditadura militar aparece de modo pragmático no jogo do campo literário. Determinando produções. Identificando capitais culturais. Boicotando agentes pelo capital econômico:

Hoje veia a carta do Suplemento de Minas Gerais, para onde eu tinha mandado um conto, dizendo que o conto não pode ser publicado a não ser que cortem ou substituam as palavras merda e tesão. Tudo isso me desorienta. E muito lentamente vou-me dando conta que estou realmente aqui – e que existe um externo diferente do europeu. Mas são pequenas porradas que estonteiam, não é? (MORICONI, 2002, p. 473).

Não se trata de uma censura a manifestações contra o regime militar, a uma literatura engajada, mas, sim, de uma censura moral. Para quem veio de Londres, acostumado a um ambiente de liberdade propagado pela onda power flower, tal modo e modelo de cerceamento das liberdades individuais era um absurdo. Todavia, a censura moral não era só recorrente, como a mais frequente realizada no país nesse período. No livro Eu não sou cachorro não – música popular cafona e ditadura militar (2005), Paulo César de Araújo fala da música brega no Brasil. Faz-se uma relação do preconceito a intérpretes deste gênero com o momento político do regime militar. A censura foi bastante conveniente com as pretensões do governo brasileiro de então, sendo utilizada, muitas vezes, sem uma distinção ideológica do objeto censurado. Os artistas esquerdistas sofreram (ou valorizaram-se no campo, visto que ser censurado representava agregar capital simbólico ao agente) por suas próprias opções políticas inseridas nas obras. Enquanto que os ―bregas‖ foram vigiados e punidos por questões estritamente morais. Adorinan Barbosa, por exemplo, parou de gravar sambas, pois não era permitido registrar canções com ―erros de português‖. Odair José teve a letra da canção ―Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)‖, de 1973, censurada diversas vezes, inclusive sendo proibida de ser executada em suas apresentações. Tudo porque contrariava a política de controle de natalidade do governo militar.

97 Caio também sofreu com a censura moralista. Em carta de outubro de 1976, a Emediato, em relação à peça E se fosse o leiteiro lá fora (que ganhara um dos prêmios de leitura do SNT), o enunciado com a experiência das restrições estatais:

Ainda não foi lida. Deve der agora no fim do ano. Um grilo: eu pretendia encená-la no ano passado, já tinha teatro, data de estréia, equipe, etc.: foi proibida no todo ou em partes, pela Censura Federal. Para ser publicada, acho que tudo bem, não sei – mas para as leituras creio que haverá problemas. Só não mando imediatamente porque não tenho nenhuma cópia, questão de apanhar uma com um amigo, em seguida. Mando agora com mucho gusto (MORICONI, 2002, p. 479-480).

Percebe-se a linha tênue para um autor ser censurado ou não entre as diversas produções culturais do período, além do que é dito, por que meio é dito – variando caso se trate da publicação do texto da peça de teatro ou da encenação. O drama foi encenado apenas com o fim da ditadura. A relação entre censura e agente aparece, mais um vez, em enunciado da carta de agosto de 1983, a Maria Adelaide Amaral:

Depois de 10 anos de proibição pela censura, saiu, vai aí o programa. Sou suspeito, claro, mas acho lindo. Tem tido casa cheia toda noite, crítica boa, aplausos em pé, aquelas coisas. Ando comovido e feliz. Vim pra estréia, aí recebi tanto carinho que fui ficando até hoje. Só volto pro Rio dia 5 (MORICONI, 2002, p. 61).

A ausência de um questionamento maior quanto às restrições impostas, de uma revolta engajada contra a injustiça, por exemplo, levanta questões sobre o enquadramento do agente dentro de uma produção marginal que contestava o governo ou a sobre própria marginalidade como manifestação que se opunha ao regime militar. No caso de Leminski, o mesmo repete-se. Apesar de ser elemento central na abordagem realizada pelos que intentaram pensar o período, é abordado raramente nas cartas do autor de Distraídos

Venceremos. Duas vezes em relação à canção ―Verdura‖ (cf. BONVICINO, 1999, p. 67 e 102), vetada pela censura, e outra em carta de abril de 1981, também referente à música: ―8 letras minhas com ivo, inclusive ‗que eu sou legal eu sei‘, que a censura só liberou (‗que loucura‘, nossa, já gravada, tá retida em brasília, por causa do verso ‗e traga os bandidos‘)‖ (1999, p. 171).

A censura não é problematizada quanto à perversidade que atenta contra a democracia, mas apenas como impedimento para projetos pessoais, de exibição e exposição dos produtos produzidos. Trata-se de uma abordagem restrita do regime, individualista, e não política-coletiva-engajada, como era de esperar-se de escritores da

98 ―geração do sufoco‖ – tal como entendida por Hollanda. A questão básica é que a problematização da censura é pragmática – ou seja, aparece depois de uma problema posto, faz-se a partir de fatos concretos –, e não a partir de teorizações ideologicamente explícitas:

Tô mandando procê o número 3 da Paralelo, que saiu hoje – o primeiro pós- Censura Prévia. Não houve grandes problemas para este número, cortaram pouca coisa. Mas a barra de grana da revista é que tá pesada. E pessoas desanimando, caindo fora do barco. Sei lá, não acredito que vá além do número 5. Uma pena. Parece que os nanicos entraram quase todos em crise (MORICONI, 2002, p. 484).

O fim da censura, todavia, teve suas lamentações (mesmo que indiretas). Com a abertura política, a consequência é o enfraquecimento da imprensa nanica, que acaba sendo assimilada pelas grandes editoras e jornais. A resistência que as nanicas representavam, como visto, não era necessariamente política, mas por espaço de expressão. Nesse sentido, tal resistência pode ser pensada muito menos como oposição ao regime do que como por luta pelo espaço no campo literário.

99

6 INTERTEXTO POR UMA LITERATURA MENOR